A tomada de posse administrativa de 57 construções nas ilhas-barreira da Ria Formosa, no Algarve, começou, esta semana, envolta em fortes protestos por parte dos residentes. A Sociedade Polis, responsável pelo programa de regeneração ambiental local, avançou com a sinalização das habitações a demolir no núcleo do Farol, na ilha da Culatra, e no início de Março prosseguirá no núcleo de Hangares.
A população tenta resistir, entre providências cautelares, protestos e ânimos exaltados. Os responsáveis pelas associações de moradores garantem que algumas das casas sinalizadas pertencem a pescadores, mariscadores, ou são a única habitação. Não entendem a “presença musculada” da Polícia Marítima, que fez chegar à ilha cerca de meia centena de agentes, para “garantir a segurança no local”, e sentem-se “perseguidos”.
António Costa garantiu esta quinta-feira no Parlamento, durante o debate quinzenal, que “tudo foi feito em intenso diálogo com as populações e com o município de Olhão”, e que “não há negócios imobiliários” previstos para a ilha.
Em resposta às interpelações de bloquistas e comunistas, o Primeiro-Ministro disse ainda que as intervenções só serão efectuadas em zonas de risco e de domínio público e em construções pertencentes a viveiristas ou que não sejam primeira habitação.
O Bloco de Esquerda (BE), que continua a querer travar todo o processo de demolições, entende que “a protecção, conservação e valorização da Ria Formosa não é incompatível com uma ocupação humana controlada e responsável” e espera que o Governo “dê ordens à Sociedade Polis para recuar” ainda durante esta semana.
Em entrevista ao TORNADO, o deputado João Vasconcelos, eleito pelo círculo de Faro, diz que o Governo está a violar o que foi aprovado na Assembleia da República. Em Outubro do ano passado, foi votada favoralvelmente uma recomendação que reconhecia os valores económico, social e cultural dos núcleos populacionais das ilhas-barreira da Ria Formosa.
Referindo-se à especulação imobiliária como uma realidade, o deputado não tem dúvidas: “os apetites são vorazes e querem abocanhar todo aquele paraíso ali existente”.
“A especulação imobiliária é real e concreta”
Jornal Tornado: Na sua opinião, os moradores da ilhas-barreira da Ria Formosa ainda vão conseguir reverter o processo de demolição das 57 casas referenciadas?
João Vasconcelos: Não sei se os moradores dos núcleos populacionais vão conseguir impedir as demolições previstas, mas o que é certo é que tem sido a sua luta determinada e poderosa que tem impedido a demolição da esmagadora maioria das habitações.
Inicialmente as demolições previstas chegavam a várias centenas?
Recordo, que o anterior Governo do PSD/CDS previa a demolição de mais de 600 casas nas ilhas-barreira e foi a forte luta dos ilhéus que travou essas demolições. O actual Governo reduziu essas demolições para 81 casas há uns meses atrás, mas a continuação da luta das associações e das populações obrigou o Executivo a recuar, suspendendo o processo.
O que defende o Bloco de Esquerda?
O BE ao longo de todo este tempo apresentou na Assembleia da República vários projectos de resolução que, entre outras medidas, propunha a suspensão das demolições. PSD, CDS e PS reprovaram estas propostas, lamentavelmente. Mas com o contributo do Bloco foi aprovada na Assembleia da República, em Outubro passado, uma Resolução que recomendava ao Governo, entre outras medidas, que reconhecesse os valores económico, social e cultural dos núcleos populacionais das ilhas-barreira da Ria Formosa, e que reconhecesse a existência dos núcleos históricos dos Hangares e do Farol.
A Resolução foi insuficiente para travar o processo?
Agora o Governo, através da Sociedade Polis, quer ainda demolir cerca de 60 casas, o que é grave e viola o que foi aprovado na Assembleia da República. Portanto, os moradores têm de continuar a lutar, até porque amanhã, outras casas poderão estar na calha para demolir. O BE continuará a estar do seu lado e cumprindo o seu lema na campanha eleitoral: “As lutas do Algarve ao Parlamento”.
Certo é que esta semana a Sociedade Polis iniciou a tomada de posse administrativa com a sinalização de três dezenas de casas no núcleo do Farol da ilha da Culatra. Que passos se seguem?
Esperemos que esta semana o Governo dê ordens à Sociedade Polis para recuar, não fazendo a tomada de posse administrativa das casas, o que a acontecer, só contribuirá para provocar mais injustiças perante os mais indefesos da nossa sociedade, só contribuirá para aumentar a oposição a este Governo, só contribuirá para aumentar a contestação das populações e para acirrar o clima de tensão na zona. O Governo só tem de cumprir o que o Partido Socialista prometeu antes e durante a campanha eleitoral – dialogar com as populações e suspender as demolições. Caso contrário, a palavra dos dirigentes socialistas será igual à palavra dos dirigentes do PSD e do CDS – não vale nada! Só servirá para enganar as populações.
“É preciso que haja respeito por toda esta gente”
As denúncias do BE referentes a processos especulação imobiliária na ilha da Culatra são baseadas em factos concretos ou são meras suspeições?
A especulação imobiliária é real e concreta e não se baseia em especulações – não é nada inventado e tem vindo a público. A lei tem de ser igual para todos, mas não é o que se passa. Os apetites são bem vorazes e querem abocanhar todo aquele paraíso ali existente. Veja-se o que se passa na ilha Deserta, mesmo ao lado do Farol – há uns anos foram demolidas todas as casas dos pescadores que ali havia e agora temos na ilha um restaurante de luxo, servido por uma carreira de barco privada e que recebe a visita de certos magnatas, que vivem no mundo de negócios obscuros, como o Abramovich que ali aporta com o seu luxuoso super iate. E que dizer do condomínio de luxo Delmar Village, com cerca de 90 apartamentos construídos na Fuzeta em Domínio Público Marítimo e colocados à venda entre 800 mil e 1 milhão de euros, cada? São apenas alguns exemplos e que são públicos, mas pelos vistos muita gente desconhece. São casos que provocam muita revolta e com razão por parte das populações das ilhas-barreira.
Não admite nem acredita que existam razões baseadas em argumentos ambientais ou de segurança para avançar com a renaturalização?
As associações e as populações das ilhas, o que pretendem é que não haja discriminações e têm direito à legalização das suas habitações. São já algumas gerações de ilhéus que ali têm vivido e que se dedicam a atividades de pesca, outros são viveiristas e mariscadores, alguns já reformados e até doentes. É preciso que haja respeito por toda esta gente. Desde finais do século XIX e inícios do século XX os seus antepassados para ali foram chamados pelos governantes, outros ali encontraram o sustento do dia-a-dia. A protecção, conservação e valorização da Ria Formosa não é incompatível com uma ocupação humana controlada e responsável, pois complementam-se num equilíbrio necessário e sustentável.
E quanto ao argumento de que se trata de construções ilegais, que comentário lhe merece?
Os ilhéus até pagam impostos e taxas, logo foram autorizados pelos responsáveis políticos a ali terem as suas casas. O que é necessário é que a requalificação da Ria Formosa seja feita através de um plano integrado que contemple o combate efectivo à poluição, dragagens adequadas, adoptadas medidas estruturais de combate à erosão costeira, que se regularize as situações de casas existentes não tituladas através da concessão de título de utilização e que se implemente, sem demora, o que foi aprovado no Parlamento – o reconhecimento de todos os núcleos históricos, procedendo-se à revisão do Plano de Ordenamento da Orla Costeira mas em diálogo com as populações.
SOS Ria Formosa escreve texto de revolta
O grupo “SOS Ria Formosa” escreveu na sua página do Facebook que “os Ilhéus com presença centenária nas Ilhas-barreira da Ria Formosa são perseguidos, despojados dos seus bens e marcados para morrer”. Num texto intitulado “Holocausto no século XXI em Portugal”, lamenta que enquanto são sinalizadas as casas para demolir nas ilhas-barreira, “alguns estão no recato dos seus lares, no mesmo Domínio Público Marítimo como Tróia, Vale do Lobo, Quinta do Lago, Fuzeta e por aí fora”.
“Ninguém diz nada, ninguém faz nada, é deixá-los a sofrer, é gente que não interessa a ninguém, é gente que não merece respeito”, acrescenta ainda o texto de revolta.
O movimento “SOS Ria Formosa” lamenta por fim: “São portugueses de segunda, não têm o poder dos Espíritos Santos com casas nas dunas da Comporta, nem o poder das Sonaes e Pestanas desse mundo com construção em massa na Península de Tróia, nem mesmo o poder dos Almeidas com Hotéis em cima da praia de Monte Gordo. Para esses, as leis são diferentes, para esses, tudo é permitido, os desgraçados que estão aqui há muito mais tempo não têm direito a nada. São tratados como assassinos. Hoje sentimos uma enorme vergonha deste país”.
Recorde-se que o processo de renaturalização da ria Formosa, lançado pelo Ministério do Ambiente, através do programa Polis, criada em 2008, prevê uma operação integrada de requalificação e valorização da orla costeira na Ria Formosa, entre Vale do Lobo, no concelho de Loulé, e Vila Real de Santo António.