Para falar sobre a importância das eleições de 2022 no Brasil, sob o ângulo dos interesses dos trabalhadores, precisamos considerar todo o contexto político que se desdobra há quinze anos, as mudanças no mundo do trabalho e a relação que há entre a instabilidade política que afeta o país e a manutenção do regime democrático.
Neste sentido, podemos analisar o atual momento como resultado dos efeitos da crise de 2008 e de uma espécie de busca pelo resgate da normalidade política que se desconfigurou pouco a pouco desde então (imperceptivelmente até 2014 e com muito mais intensidade de 2014 em diante).
Seguiram-se àquela crise, após um desarranjo em cadeia das economias locais e da disseminação de smartphones e das redes sociais, protestos massivos como os eventos que ficaram conhecidos como A Primavera Árabe, a partir de dezembro de 2010, o Occupy Wall Street, em 2011, e o junho de 2013 no Brasil (além de outras pelo mundo, como na Ucrânia, em 2014). Se por um lado aquelas manifestações pareciam apenas populares, por outro, o tempo deixou claro que boa parte delas foram cooptadas por organizações privadas e de direita, assumindo um caráter essencialmente antissistema e antipolítica.
Cabe aqui pontuar que o advento dos smartphones, como computadores de bolso, e das redes sociais, que de uma hora para outra deixou a população conectada todo o tempo, impactou fortemente na condução da crise. Os aparelhos e seus dispositivos, as redes sociais (grandes impulsionadoras dos eventos), aprofundaram ainda mais o caráter liberal das megamanifestações que se espalharam pelo mundo, tomando o lugar mobilizador de partidos e movimentos.
No Brasil, as jornadas de junho de 2013 foram um marco a partir do qual foi deflagrada uma ofensiva antipolítica, e também contra a esquerda e os movimentos sociais. Os protestos pela livre passagem de ônibus na capital paulistas desencadearam uma onda de manifestações por todo o país, com maior concentração em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Ainda estávamos no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff e o governo, atônito, demorou para perceber a magnitude daquele evento e a reagir. Dilma se reelegeu em 2014 por uma margem apertada e sofreu forte oposição desde o início de sua segunda gestão. A ascensão da extrema direita e da agenda neoliberal foi rápida a partir daí.
Da crise de 2008 e da catarse social de junho de 2013 no Brasil, nasceram as condições para se viabilizar o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o advento do governo de Michel Temer que promoveu reformas liberais com ampla retirada de direitos sociais. Foi este o cenário que pavimentou, em 2018, a eleição de Jair Bolsonaro, um deputado que se vendeu como antissistema.
A despeito dos interesses que alimentaram tal ofensiva, a maior parte do eleitorado projetou na imagem de outsider de Bolsonaro a resposta para a intensa propaganda de condenação à política e aos movimentos sociais.
As eleições de 2018 foram trágicas para o povo trabalhador e para o campo progressista. Com uma campanha que se baseou em promessas de reformas liberais na economia e pautas conservadoras nos costumes, além de uma um discurso falacioso que pregava o combate à corrupção e ao próprio sistema político, Bolsonaro se elegeu em outubro de 2018, no segundo turno, contra Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT). Sua vitória representou a consagração da extrema direita brasileira.
A reforma trabalhista e seu caráter escravocrata
Ainda no governo Temer, a reforma trabalhista foi promulgada em 2017 na esteira de ataques ao papel do Estado, à política e sobretudo ao movimento sindical. Ela chegou com uma fachada de modernização, desburocratização e geração de empregos, mas seu conteúdo sintetiza o projeto retrógrado que já estava em curso. Foi o maior desmonte da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) de uma só vez desde seu advento em 1943, sendo um expressivo golpe da elite do mercado financeiro contra o povo trabalhador.
Não houve resistência no parlamento capaz de conter a reforma e a resistência popular foi baixa, já que os movimentos vinham de um processo de perdas e de desmobilização.
Mas hoje, depois de mais de 5 anos de reforma, resta evidente a falsidade do discurso que permeou sua implantação. O Brasil descambou para a marca de mais de 9 milhões de desempregados, o trabalho informal bateu recordes, resultando em trabalho precário (como o trabalho de entregadores por aplicativos), rebaixamento do rendimento médio da população, e disseminação da fome e da exclusão.
Os defensores da reforma que atacaram a CLT para impor a agenda liberal, acusaram a legislação brasileira de velha e ultrapassada. Mas, na história do Brasil a Legislação Trabalhista de 1943 representou um rompimento com a mentalidade escravista que persistia nos coronéis e empresários mesmo após a abolição da escravatura em 1888.
Vivemos ainda com sequelas dos mais de 300 anos de escravidão. Sequelas que se manifestam tanto como forma de racismo, quanto na concepção de que os trabalhadores não precisam de direitos e não devem ascender socialmente. Há uma desproporção do tempo de existência da CLT com a duração da escravidão no Brasil.
A conclusão é que CLT não é velha. Ao contrário, ela é resultado da organização de trabalhadores em torno da defesa de direitos e marca um processo de industrialização, de urbanização e modernização do país. Em maio de 2023 a CLT completará 80 anos. São apenas 80 anos em que o trabalhador tem acesso a segurança e proteção social contra mais de 300 anos em que a massa de trabalhadores braçais não tinha nenhum direito porque eram escravos, ou seja, propriedade do patrão.
Se por um lado a CLT proporcionou a formação de uma classe média consumidora de produtos e serviços e conferiu cidadania ao povo trabalhador, por outro, seu desmonte, congregado principalmente na reforma trabalhista, fez o caminho inverso, retirando a população da classe média e a jogando-a na pobreza.
Desindustrialização
A reforma trabalhista de 2017 produziu um efeito contrário à modernidade que pregava. A começar pela industrialização brasileira, que perdeu fôlego e ficou ainda menor no cenário mundial, como mostram diversos estudos.
Dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO) mostram que entre 2005 e 2020 o Brasil deixou o grupo dos dez maiores parques industriais do mundo passando do 9ª para o 14ª lugar no ranking de industrialização global.
Um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) para o jornal O Estado de São Paulo revelou o chocante dado de que entre 2015 e 2020 o Brasil perdeu 36,6 mil estabelecimentos industriais, sendo os casos da Ford, a Mercedes-Benz, a LG e a Sony e toda a cadeia produtiva em torno delas, os mais gritantes.
Preocupantes dados sobre a desindustrialização também foram revelados por um estudo do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo o estudo, entre 2016 e 2020 caiu de 196 para 167 o número de indústrias competitivas instaladas no país, ao passo que a participação dos produtos primários ligados ao agronegócio aumentou de 37,2% para 44,3%.
Um estudo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), divulgado em setembro de 2021, mostrou que, ao contrário do que aconteceu no Brasil, não se verificou no mundo um processo generalizado de desindustrialização. Governos de países altamente industrializados como EUA, China e países da União Europeia, que sofreram grandes perdas com a pandemia, investiram em planos de recuperação para superar a crise e reforçar o dinamismo econômico.
Na contramão de ações como estas, as medidas do governo Bolsonaro, baseadas na falta de incentivos, na baixa efetividade das ações voltadas à inovação, produtividade, competitividade e integração internacional e na falta de infraestrutura, espantaram investimentos, esfriando o mercado e empobrecendo a sociedade.
Enquanto a indústria 4.0 e a preocupação com empregos verdes já são realidades em países com os quais disputávamos lugares entre os dez mais industrializados, os governos de Temer e Bolsonaro ficaram marcados por reforçar a posição do Brasil no mundo como exportador de commodities e importador de tecnologia. Trata-se não de uma vocação, mas de uma opção de governo pela contenção do crescimento e pelo rebaixamento de trabalhadoras e trabalhadores uma vez que é a indústria o setor que gera melhores empregos, com rendimentos maiores e maior segurança legal.
Crescimento da fome
Todo esse movimento que se desenvolveu desde a crise de 2008 teve uma base robusta com capilaridade em vários países, conseguindo favorecer um projeto de poder. Mas ele esbarrou na realidade e tropeçou nas dificuldades que criou.
Uma pesquisa da Oxfam Brasil, publicada em junho de 2022, mostrou que 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil. Segundo a pesquisa, os problemas decorrentes da pandemia e da má gestão do governo Bolsonaro foram agravados pelas reformas liberais, como a reforma trabalhista.
Ou seja, o crescimento da extrema-direita e da agenda neoliberal não ofereceu soluções aos problemas mais básicos e imediatos da população. Ao contrário, agravou os problemas. E hoje vemos o retorno de ideias mais progressistas no centro do debate público.
Uma pesquisa divulgada pelo Instituto Datafolha em junho de 2022 mostrou que a identificação dos brasileiros com a esquerda cresceu e alcança hoje 49%, enquanto a direita caiu e representa 34%.
Em 2014, quando esse processo de expansão da direita e de megamanifestações insufladas pelas redes sociais estavam no ápice, 45% eram identificados com a direita e 35% com a esquerda.
A pesquisa também mostra que subiu de 38 para 47% o número de pessoas que acham que os sindicatos são importantes para defender os interesses dos trabalhadores. Ou seja, depois da reforma, melhorou a imagem dos sindicatos.
Necessidade de um novo tempo
Este foi o pano de fundo das eleições de 2022. A construção de uma frente ampla foi fundamental para eleger uma chapa comprometida com geração de empregos decentes, valorização do salário mínimo, dos serviços públicos – especialmente o Sistema Único de Saúde (SUS), incentivo às empresas, com destaque para as micro e pequenas, políticas afirmativas de inserção social, participação nos acordos e nas decisões globais de preservação ambiental e com a manutenção da democracia.
Com sua capacidade de articulação o presidente Lula tem conseguido diminuir a resistência em setores que antes se opunham a ele, como órgãos da grande imprensa e até personalidades do mercado. Pessoas e setores que perceberam que esse movimento era enganoso, era errado, que levou ao Bolsonaro, que foi um desastre, e reviram suas posições também.
A cerimônia de posse em 1º de janeiro de 2023, com forte representação popular, marcou a mudança que o país precisa. É espantoso, todavia, sendo o Bolsonaro a pessoa abjeta que é, que o presidente Lula tenha sido vitorioso por uma margem pequena. Isso mostra que ainda vivemos em um ambiente instável, marcado por forte antagonismo. Os últimos meses mostraram que a democracia venceu, mas que a extrema direita sai do governo Bolsonaro mais forte e organizada.
Movimento sindical
O movimento sindical perdeu muito em todos esses anos de decadência política, econômica e social. Foi um tempo de enorme resistência, de muito trabalho e muita articulação, que exigiu das centrais sindicais brasileiras ainda mais união. Mas mesmo com o desmonte que representou a reforma trabalhista, o movimento sindical conseguiu se manter atuante graças ao compromisso dos sindicalistas com os trabalhadores.
Durante todo esse período, desde a queda do governo petista através de um impeachment duvidoso, até a eleição de Lula em 2022, os sindicalistas, e em especial as centrais sindicais, trabalharam muito no combate ao golpismo, para garantir a democracia e, sobretudo, pelo desenvolvimento do país com base nos interesses do povo.
Neste momento de mudança a perspectiva é que parte da luta política seja de recuperação de perdas frente aos retrocessos que castigaram o Brasil nos últimos anos. O combate à carestia e à pobreza, e o estabelecimento da segurança alimentar devem ser prioridades sindicais nesse período que se iniciou, assim como combate à desindustrialização, a geração de emprego decente e a valorização do salário mínimo.
Sobre a reforma trabalhista, as medidas tomadas pelo presidente espanhol, Pedro Sánchez, são um exemplo para o Brasil. Sánchez buscou reverter os pontos que prejudicavam com os trabalhadores através de uma negociação com governo trabalhadores e empresários, fortalecendo o papel dos sindicatos, da negociação coletiva e dos contratos por tempo indeterminado. Esse é um caminho para o Brasil.
Com menos de um mês de governo, ainda é cedo para qualquer prognóstico. O clima de instabilidade e as ameaças à democracia ainda estão muito presentes. Depois de apenas uma semana da posse presidencial, o Brasil foi aterrorizado por uma grande manifestação francamente golpista, que já vinha se organizando desde a derrota de Bolsonaro. As articulações para tais atos são preocupantes pois revelam que há um movimento no país que visa o atraso, o autoritarismo e o aprofundamento da desigualdade social.
Cabe a nós agora trabalhar para que esse movimento regressivo não prospere, assim como trabalhamos arduamente pela da vitória democracia nas urnas. E, apesar das manifestações golpistas, pela primeira vez desde a queda de Dilma Rousseff os ventos sopram a favor das forças progressistas, com grande disposição internacional em apoiar a democracia brasileira.
A compreensão sobre a atualidade é a de que chegamos ao fim de um ciclo que começou há dez anos, se considerarmos os efeitos das manifestações de junho de 2013, ou há 15, se considerarmos a crise internacional de 2008. Seja como for, houve tempo para a tempestade se formar, se instalar, sacudir a sociedade e promover grandes estragos. Houve tempo também para que a população, de uma forma ou de outra, entendesse as artimanhas políticas que forjaram esse processo. Tanto que, depois de toda a perseguição que sofreu como o maior líder do campo progressista no Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente novamente.
Iniciamos agora um novo ciclo, com mais maturidade e força para seguir em frente.
por Miguel Torres e João Carlos Juruna | Texto em português do Brasil
- Miguel Torres, Presidente da Força Sindical e do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo
- João Carlos Juruna, Secretário Geral da Força Sindical e vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo
Artigo publicado originalmente na revista marxista alemã Marxistische Blätter de fevereiro de 2023