O anúncio, em finais de Agosto, que o FMI iria disponibilizar aos países-membros cerca 650 mil milhões de dólares para responder a necessidades urgentes de tesouraria, apresentado pela sua directora-executiva, Kristalina Georgieva, como uma oportunidade única no combate à pandemia, carece de explicações que enquadrem a medida e clarifiquem o seu verdadeiro alcance, algo que nem a imprensa especializada teve o cuidado de fazer.
Depois de termos tentado traçar um quadro rápido da situação geral proporcionada pela “oferta” do FMI, foquemos a atenção na situação nacional e nos 1.960 milhões de unidades de DES, estimados em proporção da nossa quota e que equivalem a cerca de 2.373 milhões de euros.
Nos termos definidos pelo próprio FMI, que incluem medidas para aumentar a transparência e a responsabilização no reporte do seu uso, esta “oferta” deverá ajudar os estados a suavizar as necessidades de ajustamento (leia-se, políticas restritivas) e a financiar o aumento da despesa originada na necessidade de resposta à covid-19 e ao processo de vacinação. Descodificando a novilíngua neoliberal, isto significa que as disponibilidades de liquidez facultadas se destinam a aumentar os lucros das grandes farmacêuticas que desenvolveram as salvíficas vacinas com enormes participações de fundos públicos e, se sobrar alguma coisa, a apoiar uma ou outra compensação económica com as medidas de confinamento generalizado.
Transpondo para o caso português e tomando por base a informação que só em 2020 as medidas extraordinárias de apoio às empresas e famílias atingiram os 4.658 milhões de euros, fácil se torna concluir a reduzida expressão da benemerência. Mesmo cientes do real objectivo da iniciativa, importa não perder a noção da sua efectiva dimensão e ainda menos da verdadeira necessidade de abordagem da questão da dívida, quando ao longo dos tempos pouco ou nada tem mudado para os países mais endividados, que continuam sem encontrar as respostas adequadas de instituições financeiras internacionais como o FMI e o BM (Banco Mundial), que enquanto herdeiras do espírito de Bretton Woods resistem a qualquer inversão nos princípios que lhes deram origem.
É que nunca como agora foram tão reais e fundamentados os argumentos em apoio de decisões de suspensão unilateral do pagamento das dívidas públicas; os estados de emergência declarados e aplicados sobre as populações não registaram semelhante efeito sobre o capital e até as moratórias decretadas sobre as dívidas (nos locais em que o foram) resumindo-se às domésticas, ampliaram ainda mais o fosso para a intocabilidade (impunidade) dos capitais transnacionais.
A questão do insustentável peso económico e social da dívida pública não se resume a Portugal (ou aos países da Europa do Sul) nem aos países em vias de desenvolvimento (grupo das economias que apresentam padrões de vida entre o baixo e o médio e que inclui os países da lusofonia, como o Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor), porque, como o mostra o quadro seguinte:
o problema é mais vasto e generalizado, veja-se na perspectiva dos volumes de endividamento ou em termos relativos ao PIB de cada país:
Mas a mais clara e evidente imagem da inevitabilidade da abordagem do problema global do endividamento é transmitida pela enormidade de uma dívida mundial que ascende a quase três centenas de biliões de dólares…
…montante que representa mais de 3,5 vezes a riqueza produzida mundialmente. Perante a dimensão destes valores e em especial a mais recente tendência do seu agravamento, haverá ainda quem duvide que não existe outra hipótese prática de resolução além de uma anulação, total ou parcial, que devolva às economias as disponibilidades financeiras de que necessitam para enfrentar a adaptação que a emergência climática exige.