A Grécia e a Europa assistiram recentemente às celebrações do fim da intervenção financeira que lhe foi imposta pela UE, ou talvez mais prosaicamente, como escreveu o PUBLICO, a «A troika sai da Grécia, mas a austeridade continua» e esta é, seguramente, uma boa oportunidade para reflectirmos sobre o assunto e sobre os modelos de administração passados e futuros.
Ultrapassada a tentação de regressar à listagem das medidas aplicadas pela formidável troika – CE/BCE/FMI – ou a mais uma crítica da sua utilidade, tentemos levar a reflexão um pouco mais além… Num cenário de uma UE em crise e a ser posta em causa pelos Brexiters e outros movimentos populares, o exemplo da actuação da troika nos países europeus intervencionados (Grécia, Irlanda, Portugal, Chipre e Espanha) foi revelador da uma cada vez mais clara influência de organismos não eleitos na condução dos destinos dos cidadãos em detrimento dos poderes democraticamente eleitos.
A origem dos actuais modelos de administração remonta aos ancestrais tempos das sociedades tribais cujo crescimento determinou a formação de reinos e impérios, enquanto o desenvolvimento de tecidos económicos cada vez mais complexos criou as condições para a acumulação individual e o aparecimento do conceito de cidadão. O feudalismo (um modo produtivo baseado na posse da terra) estava a dar claros sinais de esgotamento e daí à necessidade de novas estruturas políticas foi um passo e os cidadãos (uma burguesia em expansão grassas ao crescimento do comércio) contribuíram determinantemente para transformar as monarquias absolutistas nos estados modernos, ou seja um estado constitucional com separação de poderes (a ideia do estado de direito) e uma democracia parlamentar, baseada até hoje no monopólio do uso da força.
Este modelo político, inaugurado com a Revolução Francesa nos finais do século XVIII, deu origem a uma forte dinâmica baseada na libertação das forças económicas que através da actividade económica desses estados-nação, da emigração, da colonização e da posterior libertação das colónias, levaram à exportação dum modelo do qual muitas vezes surgiram estados artificialmente criados. Mas enquanto dentro destes estados-nação foi mantida uma relativa paz e estabilidade (indispensáveis a qualquer actividade económica bem-sucedida), nas relações entre estes continuou a imperar a opção bélica como principal forma de negociação, mesmo quando algum deles conseguiu ascender a uma posição imperial, como foi o caso da Grã-Bretanha ou dos EUA.
Este processo culminou no século XX com as duas guerras mundiais, não pelo número astronómico de baixas mas devido ao desenvolvimento tecnológico trazido pelo armamento nuclear que tornou impraticável um terceiro conflito daquela natureza e dimensão. A partir daí passámos a assistir a muitas guerras regionais, guerras por procuração, guerras civis, terrorismo e também ao aumento da violência dentro das sociedades.
A ONU, organismo de topo da ordem mundial global que resultou da II Guerra Mundial e em cujo Conselho de Segurança pontificam as cinco potências nucleares oficiais (EUA, Rússia, China, Grã-Bretanha e França), foi-se revelando cada vez mais como a expressão do impasse nuclear e a famosa pax americana como um processo imposto pela divisão do mundo em dois campos equipados com armas nucleares.
Mas do caos europeu surgiu a iniciativa dum processo de integração e em 1957, através da assinatura do tratado de Roma e o estabelecimento da Comunidade Económica Europeia, uma Europa ainda mal recuperada das ruínas e dividida por uma cortina de ferro com a sua parte oriental sob o domínio soviético, voltou-se decididamente (pese embora as limitações sempre impostas pelas elites políticas existentes que não queriam perder seu domínio) para uma experiência negocial de integração com o objectivo de prosperar e de criar instituições e uma administração para ir além dos estados-nação europeus.
Sempre amarrada a uma política de consensos, dirigida por líderes sem uma visão ousada e uma preparação adequada para entenderem e anteciparem cada nova mudança, a UE é, na actualidade, o resultado de uma versão limitada da governação continental sem capacidade de antecipação e de visão arrojada, confrontada com grandes mudanças e reagindo através de meras respostas tecnocráticas.
Um acontecimento como a queda do Muro de Berlim libertou novas forças económicas que foram reforçadas por dois outros grandes desenvolvimentos: a digitalização (a transformação das sociedades através dos computadores, iniciada nas máquinas de descodificação da II Guerra Mundial que deu um salto gigantesco em 1981 com o lançamento do primeiro PC pela IBM, outro salto em 1990 com a Internet, outro ainda com o lançamento do primeiro iPhone em 2007 e em 2008 com a primeira publicação sobre Bitcoin ou oito anos depois quando a Inteligência Artificial bateu o melhor Go-player do mundo), sem cujas ferramentas a intensa actividade económica global de hoje não seria possível e a multipolarização, quando a aparente hegemonia norte-americana se viu confrontada pela multiplicação de poderosos actores, como a UE fortalecida pelo seu mercado único e a sua moeda única, uma China economicamente forte e a transformação de parte do “terceiro mundo” em potências emergentes.
Esta economia globalizada, potenciada pela digitalização e pela multipolarização, com suas interacções económicas e monetárias, originou a sua própria administração tecnocrática (onde pontificam estruturas como o FMI, o Banco Mundial, a OMC, o BIS, e a própria UE), mega-actores globais, muitos deles mais poderosos do que Estados-nação, que por não integrarem o modelo de administração e sem qualquer elemento democrático facilitaram o aumento exponencial do sistema de influência lobista e o crescimento económico nas regiões em desenvolvimento originou um aumento populacional muito forte em regiões ainda incapazes de dele tirar partido e a propaganda de um opulento modelo de vida ocidental, fizeram surgir tendências migratórias de forma não regulamentada para países que prometem um futuro melhor.
E se o desenvolvimento tecnológico juntamente com um enfraquecimento das potências dominantes contribuiu para o surgimento de populações como actores políticos (a chamada Primavera Árabe foi um dos primeiros exemplos e o Brexit outro) trouxe também estados e actores terroristas com as suas redes de financiamento, o perigo da proliferação nuclear e poderosas redes de crime organizado global, que entre outras actividades dominam e exploram a migração não regulamentada e uma situação em que o futuro neste planeta está ameaçado pela acumulação de problemas ambientais, por mudanças descontroladas e muitas vezes negativas na biosfera que todos partilhamos.
Este acumular de problemas e situações e o relativo fracasso das actuais instituições da governação transnacional (UE, ONU, G7, G20, OMC, etc.) – todas instituições da era dos estados-nação, baseadas nos mesmos princípios, seguindo os mesmos procedimentos e compostas pelos mesmos políticos –, apontam para a necessidade de pensar e desenhar uma nova forma de administração para o século XXI, que, depois do fracasso da abordagem mais estruturada e hierarquizada, poderá até resultar duma abordagem de natureza mais ágil e flexível, mas seguramente mais integradora e globalizada que o “trabalho em rede” já hoje permite.
Existem já hoje propostas mais ou menos estruturadas para a criação dum modelo de e-administração – a gestão da coisa pública segundo os actuais modelos de digitalização (internet, smartphones, inteligência artificial, …) –, combinado com ferramentas de última geração (videoconferências, tradução automática, multitarefa) e sistemas de votação seguros (ver, por exemplo, ELECTION-EUROPE), que no todo ou em parte poderão ser combinados com comissões de cidadãos seleccionados aleatoriamente ou com profissionais experientes (investigadores, técnicos e empresários) e cujos resultados poderiam então ser objecto de decisão pelos órgãos constitucionais, porque em caso algum a e-administração, criada para o fortalecimento do poder dos cidadãos e para contrariar a influência e poder do sistema lobista, se deverá sobrepor aos sistemas constitucionais existentes.
Este mecanismo poderia ainda ser ampliado em rede aos governos, aos chefes de estados e a agências da administração, definindo um esquema de cooperação inter-governamental e pan-europeu, que ajudasse à construção duma Europa dos cidadãos.
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