E se a pandemia for usada para precipitar o mundo numa espiral de desemprego em massa, falência e desespero?
Ainda está bem fresca na memória de todos o colossal crescimento da dívida pública justificado pela necessidade de financiar os processos de resgates e ajudas económicas despoletados pela crise do subprime em 2008 e continuados com a crise das dívidas soberanas, em 2010, algo que agora se poderá repetir, mas a uma escala ainda maior. Agora, como então, a lógica dos resgates é semelhante e se em 2008 o sistema financeiro foi o grande beneficiado pela necessidade de financiar o seu próprio resgate, pode voltar agora a lucrar com a necessidade de resgatar a economia em geral e nem sequer ser o maior beneficiado.
A caminho da privatização do Estado
A paragem forçada das economias empobrece os países em geral, desenvolvidos ou em desenvolvimento, destruindo literalmente as economias nacionais; desestabiliza todo o cenário económico, mina instituições sociais, incluindo as de ensino e saúde, e conduz pequenas e médias empresas à falência.
Quando o BCE já assume que a recessão na Zona Euro poderá chegar aos 12%, de pouco consolo nos servirá saber que Bruxelas está mais optimista para Portugal do que o FMI devido a alterações na curva epidémica, pois fácil se torna perceber a dimensão dos valores que começam a desenhar-se em termos de custos para a recuperação e a repetir-se agora a mesma lógica que presidiu à “solução” para a crise de 2008, os governos – especialmente os europeus e em particular os do sul da Europa – vão ficar ainda mais dependentes do sector financeiro e mais limitados pela crescente dívida. Tão limitados que se pode facilmente antever a enorme pressão dos poderosos interesses financeiros para uma nova vaga de privatização de quase toda a estrutura do estado, respeitando, evidentemente, a ficção da manutenção dos “governos soberanos” ao serviço dos interesses dos eleitores.
Claro sinal de riscos desta natureza pode encontrar-se nesta notícia do jornal Le Devoir, segundo a qual várias grandes cidades canadianas se apresentam actualmente à beira da falência, ou na confirmação das crescentes dificuldades na cobrança de impostos que em 2019 levaram a dívida da cidade de Nova York aos 91,56 mil milhões de dólares, o que representa um aumento de 132% desde o ano fiscal de 2000, sem falar que na sequência da crise financeira de 2008 existem já municípios norte-americanos parcial ou totalmente privatizados, com foi o caso de Detroit em 2013; enquanto isto e paralelamente às crescentes dificuldades públicas, disparavam as dívidas pessoais dos norte-americanos, com a estimativa para o endividamento acumulado em cartão de crédito pelas famílias a atingir um bilião de dólares em finais de 2019.
Este cenário de crescimento rápido da dívida, em que se conjugam debilidades públicas e privadas, não constitui apenas um déjà vu, antes a repetição de uma conjunção mais que perfeita dos factores que fundamentaram a desastrosa solução aplicada pela UE para resolver a crise da dívida europeia.
É verdade que há agora quem veja na natureza da actual situação um sinal da derrota do neoliberalismo e até um vislumbre de tempos diferentes, com os mais entusiastas a falarem numa oportunidade para “construir o socialismo” ou “restaurar a social-democracia europeia” após a reactivação das economias. Mas atenção, as evidências também podem revelar precisamente o oposto; o neoliberalismo está longe de derrotado e a globalização do sistema capitalista mantém intacta a sua dinâmica; enquanto persistirem o medo e o pânico no lugar da frieza e ponderação continuaremos a assistir à proliferação de formas autoritárias de governo (veja-se o exemplo das democracias iliberais do leste europeu ou a situação para que parece deslizar o Brasil) que historicamente sempre foram o sustentáculo dos mecanismos de acumulação e concentração da riqueza.
A confusão em torno do tema é de tal ordem que à tradicional corrente que vem denunciando as intenções das elites transnacionais – Clube de Bilderberg, Fórum de Davos e quejandos – e há muito lhes atribui a intenção de criar uma nova ordem mundial, se juntam hoje os que do mesmo acusam ora a Rússia ora a China. Inegável parece ser a associação entre esse conceito de nova ordem e Henry Kissinger, o ex-secretário de estado da administração Nixon, a quem há muito se atribui a afirmação que assegura que quem controlar o petróleo controla as nações e quem controla a comida controla os povos, algo que neste momento ganha especial relevo.
De forma mais pragmática e focando especial atenção na situação da UE e da sua Zona Euro, parece perfeitamente sustentável antever a repetição daquilo que assistimos durante a crise das dívidas soberanas e logo que abrande a emergência sanitária provocada pela covid-19 voltaremos a ouvir e aplaudir as teses e os discursos das soluções austeritárias. Tal como sucedeu em 2012 recuperar-se-ão os dogmas dos equilíbrios orçamentais e os argumentos da inexistência de alternativas à indispensabilidade das políticas austeritárias a cujo fracasso assistimos e sentimos em primeira mão. Se não veja-se que às afirmações pretensamente tranquilizadoras do primeiro-ministro António Costa prontamente se seguiram notícias de que os portugueses já decidiram apertar o cinto e antevisões onde se assegura que os comerciantes a grosso e a retalho estão hoje mais pessimistas quanto às vendas futuras do que no pico da crise de 2012?
Dos apertos orçamentais ao regresso às políticas fiscais altamente lesivas do factor trabalho (mas largamente beneficiadoras e fortemente incentivadoras do factor capital), das limitações ao investimento público à descarada proposta de privatização de tudo o que possa aparentar uns cêntimos de imediata poupança orçamental (os inevitáveis prejuízos de milhares de milhões a médio e longo prazo serão naturalmente esquecidos), tudo servirá para acentuar a tendência de aniquilação do papel do Estado que persiste há décadas e que se conheceu algum abrandamento nos últimos dias foi por os seus mentores estarem perfeitamente conscientes da completa incapacidade do tão idolatrado sector privado para enfrentar uma crise sanitária da dimensão da actual.
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