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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

Desmascarando o braço norte-americano da Lava Jato

O Brasil e a América Latina conhecem bem o papel dos agentes quintas-colunas, instrumentalizados por figuras que se ocupam de funções diplomáticas para tramar golpes e promover saques.

Num longo texto publicado simultaneamente na revista Época, do Grupo Globo, e no site Poder360, o diplomata de carreira norte-americano, Thomas A. Shannon, Jr., expõe sem meias palavras as tramoias políticas e ideológicas da Operação Lava Jato nos Estados Unidos. As duas publicações integram o controvertido Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), que conduziu a entrevista com Shannon para o projeto Bribery Division (Divisão de Propinas).

De jornalismo investigativo, a matéria não tem nada. Apenas repete as falácias do representante de Washington que, informa o texto, serviu pela primeira vez no Brasil entre 1989 e 1992 e voltou, quase duas décadas depois, como embaixador dos Estados Unidos, no último ano do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ficou no posto até 2013, acompanhando o início do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff – possivelmente tramando com os golpistas a marcha da fraude do impeachment de 2016.

O texto divaga sobre preferências musicais do diplomata e suas avaliações vazias sobre o Brasil pós-ditadura militar, e informa que depois de sair de Brasília Shannon foi para Washington assumir o prestigioso posto de conselheiro do Departamento de Estado, cargo que ocupou de 2013 a 2016, período em que continuou observando de perto o que acontecia no Brasil — especialmente os desdobramentos da Operação Lava Jato, iniciada em 2014. O tom chapa-branca, com meras reproduções do peculiar vocabulário dos chavões de Sérgio Moro e seus comandados da força-tarefa, prossegue até chegar à retórica que traduz na essência a natureza ideológica do regime norte-americano.

Mentira sórdida

Segundo o texto, o diplomata é um “adepto do cumprimento da Constituição e do fortalecimento de instituições”, argumento bem típico do cinismo dos que louvam a Lava Jato e outras operações que afrontam o Estado Democrático de Direito, a soberania do voto popular e a autodeterminação dos povos. Sem falar no desprezo pelo mais elementar dever do jornalismo – investigar, pesquisar e avaliar o conteúdo das informações publicadas.

Sem cumprir essa regra básica, o texto diz que segundo Shannon o Brasil não queria que Cuba só recebesse investimentos de China e Venezuela, o que deu origem ao Porto Mariel em Havana, inaugurado com a presença de Dilma Rousseff. Como consultor do escritório de advocacia global Arnold & Porter, o diplomata afirma que os Estados Unidos observavam a Odebrecht como parte do projeto de poder do PT e da esquerda latino-americana, uma mentira primária, sórdida; o que eles dizem agora é de conhecimento público desde o início da década de 1990 e nada tem a ver com a intenção atribuída ao PT (veja aqui).

O texto afirma também que a relação do Brasil com a Venezuela já era observada com lupa pelos Estados Unidos, em especial pelo plano brasileiro de transformar o Mercosul em um projeto sul-americano. Nisso há verdade. O Brasil, como casa de força da região, se esforçou para unir a região numa época em que a Europa e os Estados Unidos estavam se fundindo em dois grandes mercados. Mais ainda: o governo brasileiro entrou no BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do o Sul, o bloco de países em desenvolvimento – com o peso corresponde à sua posição na geopolítica.

Doleiros premiados

O próprio texto diz que para os americanos esse projeto “petista” se opunha à ideia de eventualmente reavivar uma integração comercial do Alasca à Patagônia, nos moldes da Área de Livre- Comércio das Américas (Alca), o conhecido tratado neocolonial que o então presidente dos Estados Unidos, George W, Bush, tentou impor à região. Se utilizando de uma retórica bem conhecida pela repetição goebbeliana do bolsonarismo, Shannon disse que, mais do que uma ideia originalmente comercial, a união pregada nos anos Lula mirava a formação de um bloco político “que compartilharia a mesma mentalidade progressista do Foro de São Paulo”.

O texto revela, além das formulações grotescas e do raciocínio que explica bem a lógica da Operação Lava Jato – típicos da ideologia obtusa da extrema direita –, casos que podem ser considerados comprometedores envolvendo os comandados de Sérgio Moro. Diz, por exemplo, que pouco mais de um ano depois do primeiro aniversário da Lava Jato, ainda em 2015, procuradores do Ministério Público Federal (MPF) brasileiro e representantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) firmaram parceria para compartilhamento de informações.

O acordo, sobre o uso de offshores e contas bancárias situadas nos Estados Unidos para pagamentos ilegais, foi celebrado depois de longas reuniões entre americanos e brasileiros na sede da força-tarefa em Curitiba, e tratado, sem explicar por que, com o mesmo sigilo aplicado nas reuniões com investigados que estavam negociando uma colaboração com os principais nomes da força-tarefa – a conhecida indústria da delação premiada, que favoreceu doleiros comprometidos com evasão de divisas e lavagem de dinheiros, pelo menos um deles (Alberto Ypussef) beneficiado também no caso Banestado.

As conversas da Lava Jato com autoridades estrangeiras, de acordo com o texto, ocorriam em Curitiba, mas contavam com o aval do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que se encontrou com representantes do Departamento de Justiça, do FBI e com o órgão que investigava se a “corrupção na Petrobras” tinha causado prejuízos a investidores americanos, a Securities and Exchange Comission. Esse caso evoluiria para o escândalo da fundação que Deltan Dallagnol – o chefe da força-tarefa – tentou instituir para administrar recursos advindos do acordo nos Estados Unidos.

Eixo do mal

É importante considerar que essa questão está relacionada a um histórico de ingerência dos Estados Unidos na América Latina´(veja aqui). São conhecidas a sua participação no processo político que levou ao golpe militar de 1964 (com o envolvimento direto da embaixada norte-americana no assalto ao poder – veja aqui – e a instrumentalização da prática do jornalismo brasileiro – veja aqui) e as razões das suas hostilidades a Cuba, desde a Revolução de 1959, e mais recentemente à Venezuela. É importante lembrar que o sequestro do presidente venezuelano Hugo Chávez, em 2002, ocorreu no auge de uma ofensiva belicista do regime de Washington, que tinha Cuba como um dos alvos principais.

Em meados de 2002, desembarcou em Havana, vindo dos Estados Unidos, James Cason, anunciado como o novo chefe do Escritório de Interesses dos Estados Unidos em Cuba. Era amigo de longa data de Otto Reich, o comandante das operações da “guerra suja” travada contra a Revolução Sandinista na Nicarágua. Ali, os dois atuaram juntos. Reich era o responsável por redigir proclamações e manifestos em nome dos grupos organizados por eles e que empreendiam a “guerra suja”. Cason atuava como recrutador de mercenários.

Com o caso “Irã – Contras”, um escândalo de corrupção e tráfico de armas para financiar os “contras” nicaragüenses, ambos foram afastados das operações por decisão do Senado dos Estados Unidos. Reich ficou atuando nas sombras até que em um momento de recesso do Congresso, já no governo Bush, foi nomeado subsecretário de Estado para Assuntos da América Latina. E uma de suas primeiras providências foi a de enviar Cason a Cuba para “sondar o terreno”.

Damas de Blanco

O momento era delicado para a ilha socialista. O governo dos Estados Unidos trabalhava febrilmente para convencer o mundo de que um “eixo do mal” preparava ações para atacar o império. E, para se defender, a melhor defesa seria o ataque. O Iraque foi o primeiro país a entrar na alça de mira de Bush — a invasão do país começou no dia 19 de março de 2003. Cuba poderia ser a próxima vítima a qualquer momento.

Em setembro de 2002, antes de assumir oficialmente a chefia do Escritório de Interesses dos Estados Unidos em Cuba, Cason fez algumas viagens de exploração pelo país. Fez contatos, propostas e muitas reuniões. Com as informações levantadas, montou um plano de ação. A primeira atividade foi a convocação de uma manifestação para o dia 24 de fevereiro de 2003, quando se comemora na ilha o início da última guerra de independência contra a Espanha, em 1895. O ato ocorreu no apartamento de Martha Beatriz Roque — organizadora do grupo “Damas de Blanco” —, em Havana, com a presença de cerca de 30 pessoas. Tudo às claras, com declarações públicas.

Em uma entrevista coletiva, Cason anunciou o plano de intensificar os esforços pela “transição democrática” em Cuba e pronunciou verdadeiros impropérios contra o líder revolucionário e então presidente cubano, Fidel Castro. Quando um jornalista lhe perguntou se a sua presença no ato não confirmava a denúncia do governo cubano de ingerência em assuntos internos, Cason disse: “Não, porque acredito que aqui convidaram todo o corpo diplomático e, como convidado, não tenho medo.”

Invasão do país

Em seguida ele revelou a verdadeira intenção da reunião. “Infelizmente, o governo cubano, esse sim, tem medo. Medo da liberdade de consciência, da liberdade de expressão, medo dos direitos humanos. Os grupos (de “dissidentes” organizados por ele) estão demonstrando que há cubanos que não têm medo”, disse. E finalizou a declaração: “Estou aqui como convidado e vou percorrer todo o país, visitando todas as pessoas, que, sim, querem liberdade e justiça.”

Os cubanos presentes eram pessoas que os norte-americanos capturavam no mar e mandavam de volta à ilha — geralmente com antecedentes criminais ou com problemas legais que as impedem de serem enquadradas nas regras para um visto de saída conforme o acordo migratório entre Cuba e Estados Unidos. Cason agrupou essas pessoas em uma “organização de ex-balseiros” e deu-lhes a denominação de “dissidentes”. Outro grupo foi organizado como “jornalistas independentes”.

Logo depois da reunião, Cason viajou para Miami — onde intensificou os ataques a Cuba e a Fidel Castro. Nos dias seguintes, ele fez um intenso vai-e-vem entre Havana e Miami. E sempre concedia entrevista coletiva, matéria prima que alimentou uma onda anticubana ignominiosa pela mídia. O objetivo era provocar a sua expulsão ou algum outro tipo de atrito para criar um fato que justificaria a invasão do país. O assunto foi debatido pela Assembleia Nacional, que chegou à conclusão de que o país estava diante de uma armadilha.

Cinco heróis

Outra medida que complementaria o plano Reich-Cason foi a transferência dos “Cinco Heróis da República” cubanos, então presos nos Estados Unidos em missão para combater o terrorismo contra a ilha, para unidades especiais, no dia 6 de março de 2003. Foram tomadas medidas rigorosas contra eles, como o confinamento em celas solitárias. No dia 10 de março, o Ministério das Relações Exteriores de Cuba entregou uma nota diplomática de protestos a Cason.

A situação já havia chegado a um ponto crítico. No dia 12 de março de 2003, foi realizada, na residência de Cason em Havana, uma atividade com 18 “dissidentes”. No dia 14, o grupo votou a se reunir. E, desde então, passaram a se encontrar regularmente. A invasão do Iraque estava próxima. E uma atmosfera de guerra tomou conta do país.

Duas horas antes de começar a invasão do Iraque, no dia 19 de março de março de 2003, um avião da ilha da Juventude, fazendo a última viagem do dia, foi sequestrado por seis pessoas e desviado para os Estados Unidos com mais um grupo de “dissidentes” a bordo, onde receberam permissão para ficar em virtude da imoral Lei de Ajuste Cubano. Os demais passageiros foram incitados e ficar e, diante da recusa, foram hostilizados e devolvidos a Cuba.

Pena capital

No dia 31 de março de 2003, outro avião foi sequestrado, com 45 passageiros a bordo. O líder dos sequestradores anunciou que desviaria o voo para Miami, mas o combustível não dava. O avião pousou na ilha da Juventude e iniciou-se uma tensa negociação, comandada pessoalmente por Fidel Castro. O próprio piloto se recusava a voar, indignado com a ousadia dos “dissidentes”. Foi preciso uma longa conversa de Fidel Castro para convencê-lo a levar o avião para as Bahamas.

No dia seguinte, 1º de abril, na baía de Havana, houve o sequestro de uma embarcação cheia de passageiros — alguns, turistas — por um grupo de onze ou doze “dissidentes”. De novo, Fidel Castro comandou pessoalmente as negociações, que resultaram na prisão do chefe dos sequestradores e na liberação da embarcação. Duas turistas francesas se jogaram na água. Na distração do líder do bando, um membro do Ministério do Interior que estava a bordo se atracou com ele e o dominou.

Diante da situação, a Assembleia Nacional aprovou a aplicação de penas previstas na legislação do país, de acordo com decisões da Justiça. Três “dissidentes” receberam a pena capital. Outros tantos foram apenados de acordo com os mais rígidos preceitos do Estado de Direito e das regras judiciais internacionais. Logo em seguida, começou a campanha internacional da direita pela libertação dos “presos políticos”. No ato do 1º de maio de 2003, Fidel Castro falou do assunto.

Veja no vídeo:


por Osvaldo Bertolino   | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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