Les Mythes Hébreux, de Robert Graves e Raphael Patai (Fayard, 1987) são um cuidadoso levantamento de várias fontes, de mitos e símbolos que estão na origem das várias civilizações do médio-oriente e tomaram forma mais definida no Antigo Testamento como o conhecemos hoje em dia.
No artigo anterior falei de Lilith, a grande-mãe, primeira mulher de Adão, que a repudiou. Deus fez então mais algumas tentativas. Mas comecemos pela criação de Adão, visto que Eva foi criada em especial para ele, para lhe agradar, ao contrário do que sucedera com Innanna. Passo a descrever:”Ao sexto dia, por ordem de Deus, a terra pariu Adão. O fogo, a água, o ar e as trevas, – todos estes elementos se combinaram nas entranhas da terra para produzir os seres vivos que foram surgindo ao longo do terceiro dia, do quinto e do sexto, em que junto com o homem foram criados os animais terrestres e os répteis. “Deus não usou uma terra qualquer, mas escolheu um pó de grande pureza, para que o homem pudesse ser a coroação da Criação. Agiu verdadeiramente como uma mulher que mistura a farinha com a água, e de uma parte da massa criou o homem, que se tornou a primeira das oferendas do mundo”.
Há outras versões, sobre o local e o tipo de terra que foi usado por Deus, na criação do homem. O nome Adão derivaria da argila vermelha de que foi feito, segundo alguns, segundo outros o nome significa Homem porque a matéria de que foi feito é do Monte sagrado no qual Abraão mais tarde se dispôs a sacrificar o seu filho Isaac, estabelecendo assim um elo sagrado com a humanidade inteira. Outra versão: Deus terá utilizado duas espécies de pó para a criação de Adão: uma do monte Moriah ( o monte sagrado, umbigo do mundo), e a outra uma mistura retirada dos quatro cantos do mundo e molhada com água de todos os rios e mares existentes. E para garantir a saúde de Adão usou um pó macho e uma terra fêmea.
Ao usar o pó de todos os cantos do mundo Deus garantiu que fosse qual fosse o país em que morressem os descendentes de Adão seriam sempre recolhidos pela terra. Adiante na descrição do processo de criação deste primeiro homem, conta-se que era ele de tal modo grande que quando se deitava cobria a terra de uma ponta a outra; e quando se punha de pé a sua cabeça tocava no trono divino. Era de uma beleza estonteante, de tal modo que a seu lado Eva, ainda que bela, mais parecia um macaco. Contudo Adão, ao pé de Deus, embora tivesse sido feito à sua imagem, parecia ele mesmo um macaco.Todos os seres vivos que rodeavam Adão julgaram que ele fora o seu criador e lhe prestaram homenagem. Este foi um dos mitos, e uma das primeiras versões do que ia acontecendo no Éden, quando Anjos e animais conviviam com o primeiro homem (Graves, pp.77-79).
Não deixa de ser interessante, contudo, verificar que para além dos quatro elementos que o formam é referido um quinto, a treva: uma treva primordial que é também substância do seu corpo moldado. Há logo ali um indicação do negro da alma, uma imperfeição que se revelará depois como uma quase maldição imposta ao ser humano. Segue-se então a série de companheiras com que este Adão foi sendo confrontado, a seu pedido. Para que Adão não fosse o único dos seres criados a não ter uma companheira Deus mergulhou-o num sono profundo, tirou-lhe uma costela a que deu forma de mulher e fechou a ferida. Adão acordou e disse: esta criatura será chamada “mulher” porque foi extraída do homem.
Homem e mulher serão uma única carne. Eva significa “Mãe de todos os vivos”. Em algumas versões diz-se que Adão pediu a Deus que lhe desse uma companheira depois de ver que todos os seres tinham um par, de ter tentado unir-se às fêmeas que passavam diante de si, mas sem prazer algum. Deus criou primeiro Lilith, de que já falei noutro artigo. Aqui criou-a com lama e lixo em vez de terra pura. Desta união, que seria depois desfeita, nasceram demónios como Asmodeu e outros, que atormentam a humanidade. Lilith acabou expulsa para o que se definiria como região das trevas. Deus fez então uma nova tentativa: “moldou perante Adão o corpo de uma mulher usando ossos, tecidos, músculos, sangue, e secreções glandulares, cobriu o todo de pele, e colocou tufos de pelos em algumas partes. Ao vê-la Adão sentiu um tal nojo que mesmo quando ela se ergueu na sua plena beleza diante dele a repugnância foi invencível.
Então Deus percebeu que mais uma vez tinha falhado e levou esta primeira Eva embora. Para onde foi? Ninguém sabe ao certo” (pp.82-83). Deus fez uma terceira tentativa, mas agiu com mais cuidado. À costela que retirou de Adão, adormecido, deu a forma de uma mulher. Fez-lhe umas tranças e ornamentou-a, como se fosse uma noiva, com vinte e quatro jóias, antes de acordar Adão. Este ficou deslumbrado.
Noutras versões diz-se que ao princípio Deus tinha pensado em criar dois seres humanos, macho e fêmea; mas acabou por desenhar um único, rosto masculino virado para a frente, e um rosto feminino virado para trás. Depois mudou de ideias tirou o rosto que olhava para trás e fez para este último um corpo de mulher. E há mais: há versões em que se julga que Adão foi criado como um andrógino, cujos corpos, masculino e feminino, estavam unidos pelas costas: “Visto que esta posição tornava difíceis as deslocações, e não tornava cómoda a conversa, Deus dividiu o andrógino e deu a cada uma das metades umas costas novas. Colocou estes dois seres, separados, no Éden, proibindo-os de copular” (Graves, 83).
Deus encheu as suas criaturas adâmicas de proibições. Seriam para ser quebradas e justificar assim o mal da existência? A verdade é que foram quebradas, por incitação de uma serpente que por ali andava, junto delas, com um grande à vontade. Como se fosse um terceiro membro da família…
Gilbert Durand explicava que um mito era “uma narrativa fundadora”. Através do mito adivinhava-se um corte, uma mudança civilizacional, antecipando modelos que deixavam de parte os antigos existentes até aí: transições do paganismo politeísta para um monoteísmo de rituais próprios, dedicados a um só Deus, por exemplo; ou abandono do sacrifício humano em prol da imolação de animais como oferendas; ou reflexão sobre a mortalidade do homem, com a Queda de Adão e Eva expulsos de um Éden perfeito, de luz e pedrarias, em que não seria permitido procriar – com a expulsão surge o castigo infligido a Eva de parir em dor e sofrimento.
Deus criador, neste fragmentos antigos, está muito próximo do homem que criou: engana–se, repete as tentativas de acertar com o gosto de Adão ao moldar a mulher, um corpo que o complete e que lhe agrade…e finalmente, ao descansar no sétimo dia, também se engana, pois o seu Éden tinha ab initio, junto com Adão (no sexto dia) criado uma serpente que se tornou íntima companheira, conversando, interferindo com as ordens do criador, e levando por fim a que caíssem na tentação de comer do fruto da árvore proibida, o que causou a sua expulsão do paraíso.
Eva foi a culpada: mulher curiosa, desafiadora, querendo saber mais, quase forçando um Adão mais ingénuo a cometer o pecado. Nestas versões antigas o jardim do Éden é algo de maravilhoso, jardim de luz, árvores cujos frutos são pedrarias, e colocada entre elas a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. O primeiro homem depois de Adão a ter entrado vivo no paraíso, segundo outras versões que Graves vai citando, foi Hénoch (p.87). Viu a Árvore da Vida, à sombra da qual Deus muitas vezes descansa. Feita de “ouro e carmim, ultrapassa em beleza todas as outras coisas criadas; frondosa, cobre o jardim inteiro, e há quatro rios- de leite, de mel, de vinho e de azeite- que saem das suas raízes. Um coro de trezentos anjos ocupa-se deste paraíso, do qual há quem diga que não se situa na terra, mas no terceiro céu. Isaac, que foi o visitante seguinte, estudou lá durante três anos; e mais tarde o seu filho, Jacob, teve licença para lá entrar.
Mas nem um nem outro contaram o que lá tinham visto” (p.87).Estas descrições mais se parecem com visões, ou revelações dadas aos eleitos, do que descrições de uma espaço divino em que os fiéis pudessem de facto acreditar. Moisés também é referido, mas levado a este Éden pelo seu Anjo da Guarda, Shamshiel, que lhe mostrou, entre outras maravilhas, setenta tronos cravados de jóias, destinados aos Justos e pousados em pés de ouro fino, flamejantes safiras e diamantes. No maior e mais rico estava sentado o Pai Abraão.A seguir a Moisés mais nenhum mortal foi julgado digno do Paraíso, excepto o Rabbi Jehousha ben Lévi, Mestre de excepcional piedade, que entrou graças a uma artimanha, que é a seguinte: quando o Rabbi já estava muito velho, Deus ordenou ao Anjo da Morte que lhe inspirasse o desejo de morrer; então Jehoshua pediu que lhe mostrassem o lugar que lhe estava reservado, mas antes de se porem a caminho pediu ao Anjo que lhe desse a espada- pois podia, de caminho, haver algum acidente que o fizesse morrer de medo.
O Anjo deu-lhe a espada, e quando chegaram ao paraíso sentou o Rabbi no alto do muro e mostrou-lhe o lugar que lhe estaria reservado. Jehoshua saltou abaixo do muro e declarou que ia ficar ali. Os Anjos queixaram-se a Deus: este homem tomou de assalto o paraíso! Mas Deus permitiu que ele ali ficasse, por nunca ter faltado a um juramento, durante a sua vida (Graves, p.88). Esta narrativa continua, mas o que nos interessa aqui é verificar como havia comunicação entre Deus, os homens, os Anjos, e que ora um, ora outros, podiam ser perturbados nas suas decisões, revelando ou alguma inocência ou alguma ignorância que viriam a determinar a continuação do que era suposto acontecer.
O que se discute? Qual o poder de Deus, e dos seus Anjos, sobre as suas criaturas? Abençoadas ou malditas? Um poder afinal limitado, porque contornável pela astúcia, neste caso, de um Rabbi Santo, ou por uma serpente malvada, no Génesis. Um conquista um lugar no paraíso, os outros são miseravelmente expulsos e castigados, embora Deus tenha, ao sétimo dia, louvado a sua obra e descansado, confiante.Como Robert Graves aponta nas suas notas (é uma obra que recomendo não apenas pela leitura directa, mas sobretudo pela riqueza de informação que acrescenta nas notas finais), há muitos elementos da Queda do homem que remontam a épocas muito mais antigas do que os relatos do Antigo Testamento como o conhecemos. Só que a sua sistematização é mais tardia, e até contém, por vezes, elementos de influência grega.
A epopeia de Gilgamesh – de que eu já me ocupei em posts anteriores deste blog – datada de 2000 A.C. numa primeira versão, descreve como a deusa suméria do amor, Aruru, fez com argila um selvagem de nobre porte, Enkidu, que cresceu entre gazelas e animais selvagens, até ao momento em que uma sacerdotiza enviada por Gilgamesh o levou para a cidade de Uruk e o iniciou nos mistérios do amor (Graves, p. 94). Irmãos de sangue, os dois heróis não voltam a separar-se e a narrativa segue com a busca de uma planta da imortalidade que lhe será depois roubada por uma serpente, no fundo mar, fazendo com que Gilgamesh acabe por aceitar a sua mortalidade.
Estas e outras narrativas, que Graves refere , todas se ocupam da questão da mortalidade do homem e do erro, ou abuso e arrogância, que levou à expulsão do paraíso oferecido. Curioso é ver que em outros mitos, um cretense, outro lídio, contado por Plínio, é dito que as serpentes possuíam uma “erva da imortalidade” (Graves, p. 95).Neste conjunto que estivemos a ler, pela mão de Graves, uma transição se verifica, nas lendas e mitos hebreus: a passagem de um matriarcado politeísta, do culto das deusas em grutas escondidas ou templos misteriosos a um patriarcado monoteísta, de julgamento severo sobre o papel da mulher na sociedade, um papel que a reduzia a uma função menor e de quase anulação.
Os mitos são o que são: memórias de um imaginário antigo, em que permaneceram até aos nossos dias figuras e temas fundamentais. Porque sumarizam mistérios ainda não desvendados: o do mal, o da morte, o da esperança de alguma ressurreição. Que uma serpente seja veículo, um par primordial remeta sempre para o feminino o negativo do mito, e Adão seja a vítima perpétua – quem diz Adão diz, como se sabe, o Homem, a Humanidade criada – o ser que nos primórdios tinha um corpo que cobria a terra inteira, quando se deitava no chão…tudo isto nos interpela, ainda hoje, sobre o nosso destino e o destino do mundo, causa ou efeito do que nós outrora, com ou sem Deus teremos praticado…A caixa de Pandora, (que é um Vaso) que tem inspirado múltiplos artistas, permanece aberta, ou mal fechada e deixando sair todas as vilezas possíveis e imaginárias. Só muito lá no fundo uma esperança, que mal se vê, ou adivinha.
Que mão poderá, algum dia, selar de vez a tenebrosa caixa? Nos mitos o castigo surge como a quebra de uma ordem, um juramento, uma promessa feita. Uma desobediência, em suma. O que deseja o mito, na sua lição, ensinar? Que a ordem não pode ser quebrada? Que se tal acontecer o regresso ao caos será irremediável? E de que ordem e de que caos se fala então nos mitos? Ainda não temos resposta.
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