Quero falar sobre a minha tacanha capacidade de expressar as coisas.
Eu que só sei escrever se houver um interlocutor.
Explico: eu escrevo para que o meu braço alcance. Nasci assim, pequena e sem expressão. Por isso o que escrevo é um modo de ficar de pé, de colocar o rosto em meio à multidão.
Veja que angústia. Nascer sem voz e sem estatura. Minha mãe dizia que eu não vingava. Tão fina e transparente. Todo mundo me via através e por isso me habituei a ser paisagem. E seria bom o destino de quadro não houvessem me dado um lápis e um papel. Mas não é disso que quero falar. Não sou nenhuma Cora Coralina. Não possuo a sua bonita resiliência. Sou rebelde e de um egoísmo devastador. Quero viver. Viver muito. E do meu jeito. Pois criei um mundo onde tudo é possível.
Insisto. E no insistir me dou conta de que sou falha. Não se força a espontaneidade que dorme no peito. Ou ela explode ou não. Na escrita é assim. Não se elabora, não se usa artifícios. Somos patéticos quando o fazemos. Tolice querer preencher o vazio com a truculência das palavras. Que elas saiam da tua boca à tua revelia e surpresa ou não saiam. E quando o silêncio chegar que ele seja respeitado. Era o que deveríamos fazer. Mas somos impacientes e vaidosos. Eu sou.
E só admito para angariar simpatia.
Odeio quando acordo sem substância. Quando me arrasto pelo dia impaciente e vã em busca de uma frase que me dê sentido. É a agonia do existir.
Poderia subtrair-me desse estado de tortura com alguma rápida alienação, dessas que já veem embaladas e prontas para serem aquecidas no micro-ondas. Mas nem isso consigo. A escrita me arruinou a placidez dos dias.
Estou condenada a ser a mulher que olha pela janela a manhã que se estende pela tarde. A neblina na calçada, os passantes a se locomoverem como pontos difusos e inquietos. E essa mulher também é difusa. Seu rosto se confunde com o vapor que se acumula no vidro da janela.
Sou irremediavelmente extrema. E é ruim quando o gosto das coisas cotidianas te escapa à boca. Ou quando se quando ele não escapa, ele não te basta. Teu paladar então vira uma colcha de mistérios. Tudo em você vira um grande e inexorável enigma e você coloca os ouvidos no próprio peito, como um médico que asculta o paciente para tentar se decifrar.
É isso. Vivo tentando auscultar meus decibéis.
“Quantos pontos na Escala Richter?” Pergunto ao universo dentro de mim. Pode imaginar quantos eclipses eu já presenciei em meu peito? Muitos. Depois ainda existem as ondas, as marés intermináveis que só acabam quando querem ou que só amansam depois que escreverem tormentas na areia.
Vivo mareada de mim mesma. Mas é uma náusea boa. É sim.
Te contei que estou grávida? Sim. Sempre estive. A vida inteira prenhe. E assim percorrerei todos os dias da minha existência. Prenhe e farta.
Mas não falemos de mim. Acho tão cafona só falar de si mesmo.
Falemos de ti.
Olha, eu nunca entendi, e por isso te peço desculpas, a imensa responsabilidade que é ser homem. Porque a mulher precisa sentir e nisso ela não encontra nenhum obstáculo. Enquanto que o homem precisa ser. E nem todos querem ou podem ser. O que fazer com o resto da população de homens que não quer ser nem o pai de família nem o Casanova nem o herói ou o bandido? O que fazer do homem se ele quiser apenas ir para um canto e ficar quieto?
A mulher pode dizer “não sei.”
Às mulheres foi dado todo o privilégio da obliteração.
Ela pode declarar que seu estado formal de espírito é instável e etéreo.
Dirão que é culpa dos hormônios e ficará tudo certo.
Mas para o homem, ficar só num canto remoendo a existência é feio. E se ele não for um gênio ou algo parecido, o chamarão de preguiçoso. O que é uma alcunha terrível para um homem.
Te peço desculpas então por nunca ter compreendido e ainda não compreender a enorme complexidade que é a obrigação de ser simples e objetivo. Ao homem, o dever da eficácia.
À mulher, a mais profunda subjetividade.
É isso. Peço desculpas. E volto à mim. Volto ao meu corriqueiro egoísmo.
Estava para te dizer que me havia me
dado conta de que à mim foi dada a sina da interrogação. Sou como a esfinge que rumina os próprios mistérios e que esqueceu a resposta do grande enigma. Há uma fila imensa diante dela que espera inquieta. Alguns trazem notícias urgentes, outros tentam a sorte e lhe dão respostas para perguntas que ela ainda não aprendeu a fazer. Outros dizem:
“Devora-me.” E é quando ela descobre que esqueceu como usar os dentes.
E as pessoas partem decepcionadas.
Que coisa.
Somos todos um só espanto, não somos? Todos querem a grande resposta.
Mesmo que ela não exista. Precisam inventar uma.
Mas hoje estou assim. Sou aquela mulher que olha pela janela e sua silhueta se confunde com a paisagem desfocada do lado de fora. Aquela mulher que procura ansiosamente um apetrecho culinário na gaveta da cozinha e que para isso faz um barulho insuportável. Ela retira as conchas, as espátulas, os garfos. Esse algo que ela busca é de extrema importância embora ela nem saiba como esse algo se chama.
É isso. Sou a mulher que revira a cozinha do avesso para procurar algo que ela nem sabe como se chama ou para o que serve. E que ninguém interrompa a sua busca. Ou diga que ela é em vão pois esse é o seu maior medo.
Te conto. Essa tarde eu tive uma visão. E queria te descrevê-la. Mas parei logo que comecei, pois eu estava começando a te desenhar um comercial de margarina ou a cena final de um filme épico. E isso seria uma mentira. É incrível como elaboramos o que vemos para não sofrer.
Vou além então. Vou nas costas da visão que tive. Ando com essa mania de avesso agora.
E a visão que tive foi: eu era. Eu era sem precisar de artifícios ou catalogação. E dentro dessa visão, eu tive outra que era como a explicação da primeira, que me veio como um pedido burro, pois sou burra no apenas ser. Por isso a primeira visão me deu um glossário para que eu, na minha burrice, catalogasse o apenas ser.
Veja como foi;
Na maternidade, logo que fui tirada da mãe, me levaram para o berçário e ali por conta de um fenômeno assombroso esqueceram de mim. A enfermeira não colocou a pulseira que me definiria e como o pai e a mãe também haviam esquecido o porquê de ali estarem, ninguém foi reivindicar a minha existência. E digo que foi a melhor coisa que me aconteceu. Nossa, eu estava tão livre! Ali, entre outras crianças, com nome, identidades e cores que ditariam seus passos no mundo, eu era escandalosamente livre.
Com o tempo, aprendi a tomar banho sozinha e me alimentar de mim mesma. Cresci com uma robustez de gigante. Andava pelas ruas e parques, fui à países distantes, morei em tantos sorrisos… Meus dias e noites eram de uma alegria absoluta. E só eram assim porque eu não sabia que eles eram assim.
Eu voava, corria e nadava sem que ninguém houvesse me ensinado nada daquilo.
O mais curioso é que durante todo esse tempo, durante essa minha existência, eu jamais pronunciei uma palavra sequer. Pois que as palavras são fruto da urgência e eu não ansiava nada. Nem mesmo gesto eu era. Embora eu fosse a coisa mais bonita e vibrante que alguém poderia testemunhar.
No final dessa visão, eu morria preenchida de uma plenitude, algo comparado à placidez canina no final de uma tarde amena.
Nessa visão eu morria sem ter vertido um protesto que fosse, elaborado uma pergunta que fosse, ao mundo.
Foi bonito o que vi.
Já imaginou que liberdade não ser para só assim realmente ser?
Sei que pareço confusa. Por isso volto a remexer as gavetas da cozinha e a praguejar baixinho por não encontrar o objeto que busco. E poderia terminar esse raciocínio dizendo que afinal o objeto que busco sou eu, mas isso seria banal demais.
Volto então, já que não sei ser, à inquietação dos dias. E às minhas ponderações que são muitas, volumosas e impertinentes.
Que grande vaidade.
Esses dias saí na rua contrafeita por ter perdido meus óculos. Estava tão nervosa que até ralhei com o carteiro. Que chato o prosaico quando estamos próximos de realizar uma grande descoberta. Andava de passo duro na calçada quando ao passar as mãos nos cabelos descobri que os óculos estavam ali o tempo todo.
Talvez Deus seja isso. Talvez ele seja tão óbvio e tão próximo que não o reconhecemos. Pois adoramos o mistério e o drama.
E ao me dar conta disso decidi que vou ser boa plácida. Vou.
“Deus é a virtude exercitada.”
Escrevi isso ontem. Uma frase sozinha num grande pedaço de papel. O que é inédito pra mim, pois gosto de abusar das palavras.
“Deus é a virtude exercitada.”
Te convence? À mim não.
Uma pena, porém.
Olha, as perguntas são muitas. E a esfinge para mim está definitivamente velha e sem dentes. Estamos todos sós nesse vasto lugar.
E desconfio que inventamos perguntas e dramas e também pequenas e infantis alegrias apenas para não morrermos antes do tempo…
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