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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Devastação, de Eduardo Pitta

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Uma edição elegante, com ilustração na capa que anuncia que há sangue na narrativa, sangue com uma faca afiada pronta a dilacerar um corpo, uma alma, interromper um destino. São contos, arte em que Eduardo Pitta, já com vasta obra publicada, se tornou Mestre.

Neste conjunto, que é pequeno na escolha, abrem-se vidas grandes. Não grandiosas, perderiam a devastação sofrida, mas grandes na amplitude da escolha: memórias variadas, da infância a um tempo presente que as guardou, sem resguardar, ou mesmo directamente actuais, de modo coloquialmente descrito, nos termos que são os de hoje, (mudou tanto o modo de falar) podia estar-se à mesa do café, simplesmente contando factos da vida real que por um detalhe que pode parecer despiciendo devastam a vida de cada um dos intervenientes. Vidas que decorrem por vezes entre um Moçambique ainda colonial ou a caminho da Revolução e um Portugal post Revolução, a caminho de um progresso rápido e nem sempre bem sucedido. Não é optimista a visão oferecida nestes contos, é mesmo por vezes fria e muito realista.

Narrativa contida, rápida, como se houvesse uma obrigação de tempo e de espaço, ou compromisso de entrega, diria quase jornalística, Eduardo Pitta mesmo quando retoma memórias ou escolhe antes a ficção procurada,  confronta-nos com factos, datas, locais precisos e só então se permite a surpresa da conclusão abrupta do ponto final: no conto, e na vida narrada.

Li estes contos como se pudessem ser experiências de guião, para filme ou novela televisiva. Há personagens definidas, situações bem caracterizadas, que evoluem (não se arrastam, como em tantas que vemos nas produções nacionais) cenários reais onde o possível tem a verosimilhança pedida por Aristóteles, até que surge o desfecho, trágico e anunciado já nos pequenos detalhes que vão compondo o quadro.

Também não falta, no exercício contido (que pode ser ampliado, se a decisão for essa) para além do facto real, a carga emocional, em cada um dos contos e sua personagem condutora. Porque embora tudo seja anotado com um realismo que descreve e indica (daí o ser ou poder ser guião) a emoção do que é sentido e vivido está presente, e é  transmitida ao leitor, como devastação do ser: o ser profundo, o que se esconde e cala, ou o que leva  ao suicídio – e assim humaniza a condição descrita, a nossa, a condição humana a que nunca se escapa.

Termino com um pormenor: o gosto de Eduardo em descrever os menus que são servidos, o requinte que também ao leitor fará crescer água na boca, e de que já temos o hábito de ver no facebook…

São seis contos que entre a descrição por vezes crua se esconde um certo humor, Eduardo escritor lido e vivido é assim que deixa a sua marca: entre a mancha maldosa do sangue no vestido da debutante e a atracção fatal do suicídio do homem que não luta, não sabe lidar com o tempo presente e o abandono, e a à vida real prefere o suicídio.

 

Eduardo Pitta

Devastação
D. Quixote

2021


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