Ou para tirar o foco da entrega do pré-sal no leilão de hoje, ou para abafar as suspeitas rumorosas das investigações do assassinato de Mariele Franco, ou por conta das duas coisas, Bolsonaro e sua trupe abriram ontem o saco de maldades, mentiras e propostas destrutivas.
Um dia de cão, síntese dos 300 dias de infortúnio que ele festejou ontem como se vivêssemos momento de prosperidade, paz e confiança no futuro. Por seu lado, o ministro Paulo Guedes apresentou seu AI-5 econômico, pois o político, ainda “é preciso ver como fazer”, como disse o general Heleno.
Mais uma vez os brasileiros tiveram que ouvir Bolsonaro defender a ditadura, afirmando que naquele tempo o “Brasil voava”, crescia a 10% ao ano, tinha paz, prosperidade e pleno emprego. Difícil saber o limite entre a ignorância e a cretinice. Ele devia saber que, esgotado o milagre econômico onde houve mesmo crescimento, mas às custas de um brutal endividamento público, especialmente externo, sobreveio a recessão agravada pelo choque do petróleo. O Brasil que a Nova República recebeu ao fim da ditadura tinha inflação galopante, dívida externa estranguladora e economia estagnada.
E como não produz metáfora que não fale de sexo ou casamento, Bolsonaro emendou que “alguns probleminhas” sempre acontecem, como entre os casais. Devia se referir a coisas para ele secundárias, como a tortura disseminada, quatro centenas de mortos e desaparecidos, centenas de cassados e milhares de prisões arbitrárias, afora a censura, o confisco do habeas corpus e outras garantias fundamentais. Não há país no mundo que, tendo vivido uma ditadura, tolere que se fale bem da tirania. Só no Brasil isso acontece, e vem da boca do presidente da República. Aqui ao lado mesmo, o presidente chileno Sebastián Piñera é um direitista mas não ousa fazer a defesa de Pinochet. Como faz Bolsonaro, por sinal.
Ontem eles parecem ter combinado produzir uma chuva de fatos e factoides capazes de atordoar o país na véspera do grande leilão e no meio de tantos escândalos. O ministro Sérgio Moro, através de sua Polícia Federal, tentou resgatar o espírito ofensivo da Lava Jato, em seu momento de maior descrédito. A PF quis prender a ex-presidente Dilma, o ex-presidente do Senado Eunício Oliveira, o ex-ministro Mantega e o ministro do TCU Vital do Rego. Seria a volta aos dias triunfais, à exibição de autoridades algemadas diante das câmeras. O ministro do STF Luiz Fachin não autorizou, assim como a PGR. Não viram qualquer fato que justificasse a medida extrema. São os novos ares do STF, que no passado recente atendia a todos os caprichos da Lava Jato.
Isso foi mais tarde. O dia começou com o presidente e seu filho Carlos transpirando ódio numa rede social, atacando o PT e a oposição porque levaram ao STF uma representação contra ambos, por terem “pegado” a memória dos registros de entrada no condomínio em que moram e têm como vizinho um dos assassinos de Mariele.
No final da manhã, sem ter agendado a visita, Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes foram ao Congresso levar o alardeado pacote de medidas econômicas. Começaram a entrega pela parte mais palatável: a revisão do pacto federativo, com promessa de destinação de mais recursos, inclusive do pré-sal, a estados e municípios. Mas a borduna estava lá: municípios pequenos, que não gerem mais de 10% do que gastam, serão anexados a outros. E a voz do moradores, que votaram a favor da emancipação em plebiscitos? Ora, o povo é sempre um detalhe. Às vezes incômodo. O plano de Guedes “aprimora” a PEC do teto de gastos: põe ordem no arrocho geral, engessa não apenas gastos da União como também dos entes federados, desvincula receitas que garantem os serviços públicos e desvaloriza os servidores. As desonerações vão atingir também o Simples, e por tabela os milhões de trabalhadores pejotizados e os microempresários.
Distribuindo maldades, Guedes aderiu ao populismo religioso do chefe usando pulseira com versículo bíblico. Hoje ele entregará a proposta de reforma administrativa, uma bordoada nos servidores públicos, um desmanche de carreiras e da estabilidade que garante ao Estado um corpo técnico comprometido com o interesse público. Não podia faltar uma inconstitucionalidade: servidores filiados a partido político não terão estabilidade. “São militantes, não servidores”, disse Guedes. Se o sujeito passou no concurso e atende aos requisitos, tem a garantia constitucional da livre filiação partidária, desde que isso não afete seu desempenho. Se passar, cai no STF.
O AI-5 político que Eduardo Bolsonaro ainda não veio, “é preciso ver como fazer”, disse o general Heleno. Mas o AI-5 econômico, Guedes já providenciou.
Nesta quarta-feira pela manhã ele vai tomar café na casa do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, com todos os senadores (os que tiverem estômago). Ali verá se estão dispostos a engolir o prato amargo tal como apresentado.
Texto original em português do Brasil
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