É no próximo dia 25 que se vai desenrolar o referendo para a independência do Curdistão iraquiano e o mesmo tornou-se no mais importante e incontornável facto político do momento, numa região que continua totalmente submergida por uma intensa guerra e em que as principais vítimas são as populações civis indefesas.Acompanhei ao longo dos últimos catorze anos a forma como foi tomando forma o Curdistão iraquiano e como a região se tornou um oásis de estabilidade, paz, tolerância e progresso numa região devastada pelas limpezas étnicas, crimes em massa contra a humanidade e total desprezo pela vida humana.
Gestão política e proteger as populações. Possível ou uma utopia?
Será fácil apercebermo-nos dos pontos menos positivos em qualquer domínio do que tem sido a gestão política do Curdistão iraquiano, e talvez a mais óbvia tenha sido a forma como as suas forças foram incapazes de proteger as populações – e muito em particular minorias como a dos Yazidi – do genocídio feito pelo Califado.
Numa altura em que pela primeira vez os líderes da facção xiita iraquiana que controlam o poder no país se distanciam de Teerão, em que a questão curda é o principal cimento que pode unir as tiranias concorrentes do Irão e da Turquia, em que a unidade aparente das muitas facções curdas (dentro e fora do Iraque) se apresenta como mais aparente do que real, é também fácil compreender como razoáveis as razões pelas quais a comunidade internacional – e nomeadamente as Nações Unidas aqui apoiadas pela diplomacia americana – pensam que o referendo deveria ser adiado por dois anos.
Foi também por isso que, até hoje, não vim a público exprimir a minha opinião sobre o assunto mesmo quando instado a fazê-lo, mas faço-o agora por três razões maiores.
Porque falar do referendo do Curdistão
O terceiro princípio da Carta do Atlântico negociada durante a segunda guerra pelos dirigentes britânicos e norte-americanos – carta sobre a qual se fez toda a arquitectura do direito internacional moderno – estipula o direito à autodeterminação dos povos, e se há um caso em que esse direito à autodeterminação é claro, é o do Curdistão.
Se a comunidade internacional ignora esse princípio no caso em que a sua aplicação é mais óbvia, o que poderemos dizer do resto do mundo? Reafirmar o direito do Curdistão à sua autodeterminação é um dever incontornável para quem pretenda defender os princípios básicos de uma ordem humana internacional.
A independência de um povo – se bem que não possa ser vista à margem de uma análise racional – é inevitavelmente um facto passional, no qual a razão tem as suas limitações, e a oportunidade política da paixão não é passível de ser absolutamente subordinada à da razão. Quem garante que em dois anos a racionalidade política da independência será mais sólida do que ela é hoje? E como é possível congelar um sentimento tão importante quanto este?
Por último, a questão essencial parece-me ser agora a de que os dados estão lançados, e não vejo forma de neste últimos dias encontrar qualquer solução aceitável que não passe pelo respeito da decisão do eleitorado curdo. Se quando o anúncio foi feito era legítimo pensar num espaço para um debate interno sobre a oportunidade do referendo, hoje isso já não corresponde à verdade.
O que temos é a clara ameaça por parte da tirania iraniana em união provável com a turca e com a bênção russa de fazer no Curdistão o que tem feito em toda a região, ou seja, realizar operações militares de grande escala contra quem quer que seja que se lhe oponha com massacres massivos da população.
As principais razões do referendo são..
Há ainda neste contexto que responder a duas das principais questões que se têm colocado na opinião pública internacional no contexto do referendo.
A primeira é a de que seria primeiro necessário terminar as operações militares de desmantelamento do ISIS. É verdade que, mesmo tendo perdido Mossul – à custa de provavelmente muitas dezenas de milhares de vidas de civis, incluindo reféns do jihadismo – e estando em recuo em todo o resto do território, o ISIS controla ainda grande parte dos territórios iraquiano e sírio.
Pensar que a luta contra o jihadismo se vai resolver com a conquista desses territórios, mais a mais feita principalmente por quem inventou esse movimento – o regime iraniano – é rigorosamente nada entender do que se passa. Ninguém com o mínimo de bom senso pode considerar a questão sob este prisma.
A segunda questão prende-se com o ostensivo apoio de Israel à independência do Curdistão. É verdade que para os curdos – e o mesmo é verdade para todas minorias étnicas ou religiosas da região – Israel é o símbolo da almejada libertação, e isto só não é óbvio e natural para a generalidade dos ocidentais (e mais ainda para o mundo muçulmano) pelas massivas doses de desinformação antissemita que os nosso canais de informação projectam.
Daí a fazer da independência do Curdistão a usual conspiração sionista universal, vai um passo. Mas o problema aí não é o Curdistão, mas a incapacidade que os nossos analistas têm de se separar dos seus profundos preconceitos ideológicos e ver a realidade com inteligência, conhecimento e distância.
A diplomacia ocidental
Penso que a diplomacia ocidental, e em particular a americana, deveria entender isto, e tornar claro que respeita o direito dos curdos a determinar o seu destino e o inequívoco apoio que está disposta a dar ao Curdistão em caso mais do que provável de agressão directa ou indirecta por parte dos regimes tirânicos vizinhos, quer utilizem para isso o ressuscitado ISIS, as milícias os guardas revolucionários iranianos ou qualquer outro meio.