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Sábado, Dezembro 21, 2024

Diminuição do poder de compra: Função Pública e Setor Privado

Eugénio Rosa
Eugénio Rosa
Licenciado em economia e doutorado pelo ISEG

O poder de compra dos trabalhadores da Função Pública e do Setor Privado diminuiu entre 2011 e 2022, as “valorizações remuneratórias” propostas pelo Governo aos Sindicatos Função Publica são ridículas, e vão continuar os obstáculos à contratação de trabalhadores com as qualificações que Administração Pública precisa.

Neste estudo, utilizando dados divulgados pela DGAEP e pelo Ministério do Trabalho, mostro a redução significativa do poder de compra dos trabalhadores quer das Administrações Públicas quer do setor privado, nomeadamente dos mais qualificados, o que impede que o Estado consiga contratar os trabalhadores com as qualificações que necessita, e que milhares de trabalhadores qualificados emigrem em busca de uma carreira e de remunerações dignas que o Estado e as empresas privadas recusam no nosso país. Também analiso os projetos de Portarias apresentados pelo governo aos sindicatos da Função Pública sobre “valorizações remuneratórias” e sobre “procedimentos concursais” que são ridículos pois não alteram nada de significativo.

 

Estudo

O poder de compra dos trabalhadores da Função Publica e do Setor Privado diminuiu entre 2011 e 2022, as “valorizações remuneratórias” propostas pelo Governo aos Sindicatos Função Publica são ridículas, e vão continuar os obstáculos à contratação de trabalhadores com as qualificações que Administração Pública precisa

A Direção Geral de Emprego e Administração Pública (DGAEP) publicou estatísticas sobre o emprego publico e remunerações referentes já a 2022 que estão disponíveis no seu “site”. Vários órgãos de informação publicaram comparações entre remunerações nominais brutas de anos diferentes, esquecendo que com um euro em 2022 adquire-se muito menos bens que com um euro, por ex., em 2011. E entre 2011 e 2022, os descontos nas remunerações dos trabalhadores da Função Publica e do setor privado sofrerem aumentos significativas (por ex. na Ad. Pública a contribuição para ADSE aumentou 133%, passou de 1,5% para 3,5%, e Vítor Gaspar fez um enorme aumento do IRS que ainda não foi totalmente revertido). Se juntarmos a isto o efeito corrosivo da inflação, conclui-se rapidamente que é errado e enganador utilizar as remunerações brutas (ilíquidas) para a avaliar a situação dos trabalhadores em anos diferentes. É esse erro que engana que vamos corrigir neste estudo começando pela Administração Pública.

Quadro 1 – Variação do nº de trabalhadores, da remuneração base média nominal e real entre 2011 e 2022

Entre 2011 e 2022, o número de trabalhadores de todas as Administrações Públicas (Central, Local e Regional) aumentou apenas em 0,85% (+ 6.195 trabalhadores), embora variando de categoria para categorial (numas numas categorias registaram-se aumentos, em outras diminuições) como mostra o quadro 1 com dados da DGAEP.

Em relação às remunerações nominais ilíquidas (antes de quaisquer descontos e antes também de deduzir o efeito da inflação) se comparamos os valores de 2022 com os de 2011 (colunas a amarelo, 4 e 6) conclui-se que se verificou um aumento médio de 11,8% naquele período, embora não em todas as categorias profissionais (por ex. a remuneração media ilíquida – bruta- dos médicos diminuiu de 2.694,8€ para 2.639,2€). Se a análise for feita com base nas remunerações líquidas, ou seja, depois de deduzir todos os descontos (CGA/SS, ADSE, IRS) a subida da remuneração media líquida dos trabalhadores da Função Publica é já apenas de 3,7% entre 2011 e 2022. E há categorias em que se verifica mesmo uma diminuição (exs. técnico superior -5,3%; médicos -9,1%; técnico superior de saúde -12,6%). E se deduzirmos o efeito corrosivo da inflação entre o início jan.2011 e jun.2022, a perda de poder de compra da remuneração base media liquida dos trabalhadores das Administrações Publicas (inclui todas as categorias profissionais), é de -8,9%. Mas há categorias profissionais onde a perda de poder de compra é maior. Por ex., a dos dirigentes a perda de poder de compra varia entre -10,7% e -17%; a dos técnicos superiores -16,9%; a dos assistentes técnicos -15%; a dos informáticos, tão necessários, a diminuição foi de -12,2%; a do pessoal de investigação científica, vitais para o desenvolvimento do país, a perda foi de -28,2%; a dos professores entre – 6,7% e 10%; a dos médicos de -20,2%; etc. É esta também uma forma de destruir a Administração Pública, pois deixou de ser atrativa para os trabalhadores mais qualificados e com maiores competências, e expulsa os com maiores competências. Situação semelhante se verificou no setor privado segundo os dados dos quadros de pessoal divulgados pelo Ministério do Trabalho, da Solidariedade e Segurança Social

Quadro 2 – Variação das remunerações ilíquidas e líquidas e do poder de compra dos trabalhadores do setor privado- 2011/19

Entre 2011 e 2019, os trabalhadores mais qualificados do setor privado também sofreram uma redução do seu poder de compra (entre -.9,3% e -11%). Só os menos qualificados é que tiveram aumentos reais, por força da subida do salário mínimo. É por esta razão que os mais qualificados continuam a emigrar e Portugal é um país salários mínimos.

A PROPOSTA RIDÍCULA CONSTANTE DO ANTEPROJETO DE DECRETO-LEI SOBRE “VALORIZAÇÕES REMUNERATÓRIAS” NA FUNÇÃO PÚBLICA APRESENTADO PELO GOVERNO AOS SINDICATOS

O governo apresentou aos sindicatos uma proposta a que pomposamente chamou “Valorizações remuneratórias” com apenas três pequenas alterações na Tabela Remuneratória Única da Administração Pública. São elas. (1) Os técnicos superiores com grau de doutor são posicionados no nível 23 da Tabela, ou seja, passam a receber 1632,8€ ilíquidos ou seja, antes de quaisquer descontos (o liquido é 1107,04 €); (2) Os técnicos superiores da 1ª posição (a de entrada na Administração Pública) cuja remuneração ilíquida era apenas de 1007,49€ passam para 1059,59€ (814,32€ liquido), e os da 2ª posição que recebem 1215,93€ ilíquidos sobem para apenas 1268,04€; (3) Os assistentes técnicos, com ensino secundário, cuja remuneração de entrada era de 709,6€ , praticamente igual aos dos assistentes operacionais, com o ensino básico, pois estes tem sido aumentados devido à subida do salario mínimo nacional, a remuneração ilíquida de entrada dos assistentes técnicos passa de 709,46€ (a atual da tabela) para 757,1€ (608,71€ liquido). Eis ao que se resume a proposta ridícula, devido aos valores, sobre “valorizações remuneratórias” e ainda por cima deixa de fora mais de 95% dos trabalhadores das Administrações Públicas.

É evidente que, com esta política de remunerações, o resultado objetivo é a destruição da capacidade da administração pública para atrair trabalhadores qualificados e com as competências necessárias para prestar os serviços públicos essenciais que a população necessita (saúde, educação, segurança social, transportes, habitação, etc.). E isto porque não é possível atrair licenciados com um mínimo de competências pagando uma remuneração líquida de 814,32€ e doutorados de 1107€ associada ao facto que para mudar de nível remuneratório ser necessário, em média, 10 anos devido a um sistema de avaliação anacrónico, o SIADAP. Assim só se promove, o negócio privado, como sucede já na saúde, com consequências dramáticas para os portugueses e aumentando enormemente as desigualdades. O que a Administração Pública precisa não é destes remendos enganadores, mas de uma verdadeira reestruturação de remunerações e carreiras que a torne atrativa para os trabalhadores mais qualificados e com maiores competências, e também para os mais empenhados sem os quais verificar-se-á uma profunda degradação e incapacidade para responder aos desafios futuros e às necessidades dos portugueses em serviços públicos vitais para a sua vida.

UMA ALTERAÇÃO NOS CONCURSOS QUE NÃO MUDA NADA DE ESSENCIAL, E SÓ CONSOLIDARÁ E AGRAVARÁ OS OBSTÁCULOS PARA CONTRATAR OS TRABALHADORES QUALIFICADOS E COM AS COMPETÊNCIAS NECESSÁRIAS

Para além da falta de atratividade das remunerações outro aspeto bloqueador é o sistema burocrático, complexo e pesado dos procedimentos concursais em que intervêm sempre duas tutelas, que têm de dar autorização prévia, sendo uma delas o Ministério da Finanças que bloqueia durante meses tudo com o objetivo reduzir a despesa e assim o défice.

E isto apesar da contratação estar prevista no mapa de pessoal e a respetiva verba para pagar as remunerações constar do orçamento anual aprovado pelo governo. Em média, qualquer concurso leva dois anos para se fazer, e vários nem chegam ao fim. Dois exs. comprovativos. Em 2019, o Ministério das Finanças decidiu centralizar a contratação de todos os técnicos superiores para o Estado e anunciou, em julho desse ano, um megaconcurso para a contratar 1000 técnicos superiores. Inscreveram-se mais de 20000 candidatos. Só no fim de 2021 é que conseguiu finalizar o concurso tendo selecionado menos do que os 1000 pretendidos. A ADSE que tinha pedido 10 técnicos recebeu 2 e não das áreas de competência que mais necessitava. Situação semelhante aconteceu com um concurso lançado pela ADSE para a contratação de 23 assistentes técnicos (12º ano) há quase dois anos. Inscreveram-se 3000 candidatos. A ADSE não tem recursos internos para fazer as provas de conhecimento e psicológicas que são obrigatórias por lei. Fez contratos com o INA e com a DGAEP. Mas também estas entidades publicas foram incapazes de realizar. E até a esta data não conseguiu terminar o concurso nem contratar um único assistente técnico externo.

A ADSE tem um mapa de pessoal aprovado pelo governo com 279 postos de trabalho, mas atualmente só tem 184 trabalhadores. E o número de beneficiários não para de crescer com o alargamento aos trabalhadores com contratos individuais de trabalho (já ultrapassam o 1,3 milhões). Há áreas críticas fundamentais, como o acompanhamento da implementação e utilização das novas tecnologias de combate à fraude, em que ADSE não consegue contratar ninguém. Os seus sistemas de informação estão totalmente dependentes de empresas privadas há dezenas de anos, o que representa um grave risco, e a quem tem de pagar (aos seus técnicos) honorários várias vezes superiores às remunerações que paga aos seus trabalhadores. Para colmatar as graves faltas de pessoal na área do reembolso aos beneficiários no Regime livre, a ADSE tem sido obrigada, todos os anos, a “comprar pacotes de dezenas de milhares de horas”, uma espécie de contrato à hora, a empresas de trabalho temporário a quem paga menos de 8€/hora por imposição do Ministério das Finanças (e estas empresas pagam aos trabalhadores que contratam menos 20% a 30% do que recebem da ADSE, pois querem ter lucro). Eis a Agenda de trabalho digno de Costa. O que sucede na ADSE deve ser o mesmo em toda a Administração Pública. A ADSE é apenas um exemplo. E não é financiada pelo Orçamento do Estado, mas sim com os descontos dos beneficiários, tendo depositado no IGCP (o banco Estado) muitas centenas de milhões € (se revelasse o montante certamente chocaria os 930 mil beneficiários titulares que todos os meses descontam 3,5% das suas remunerações e pensões, pois a mim também me choca) que praticamente não rendem nada (0,1% ano) e que, com a escalada de preços, estão a perder valor. Mesmo numa pequena despesa de um curso de formação precisa de autorização do Ministério das Finanças. A tutela bloqueou a compra de um edifício pela ADSE que está a pagar uma renda leonina a uma empresa do Estado por edifícios que não têm o mínimo de condições. É impossível assim uma gestão eficiente.

Neste contexto paralisante e bloqueador reconhecido por todos que está a destruir a Administração Pública, o governo tinha prometido alterar a legislação para simplificar tornando o procedimento concursal mais rápido e menos burocrático. Apesar das expectativas criadas o governo apresentou aos sindicatos um projeto de Portaria que “regulamenta a tramitação do procedimento concursal” que não altera em nada de significativo a Portaria n.º 125-A/2019. Apenas as notificações previstas passam ser feitas “preferencialmente por plataforma ou correio eletrónico, com recibo de entrega da notificação.” Tudo o resto se mantém praticamente igual. E o Capitulo VI (o Cap. V desapareceu) do da Portaria inclui a obrigação da DGAEP de “submeter a aprovação dos membros do governo competentes o mapa anual global consolidado dos recrutamentos a autorizar” (art.º 41º), o que significa que todos os concursos terão de ser previamente aprovados não só pelo Ministério da tutela mas também pelo Ministério das Finanças (porquê?), apesar dos mapas de pessoal, cujos postos de trabalho se pretende preencher e a respetiva despesa, terem sido já aprovados pelo governo e pela Assembleia da República aquando do Orçamento do Estado do respetivo ano. E a experiência revela que o Ministério das Finanças bloqueia durante meses qualquer aprovação de despesa. Tudo isto gera enormes ineficiências, desmotivação, pois para tudo é necessário duas autorizações – tutela e Ministério das Finanças- apesar do governo já ter aprovado o orçamento no inicio do ano. Triplicar a necessidade de autorização para a mesma coisa é um absurdo.

Enquanto as entidades publicas não poderem fazer uma primeira seleção com base numa avaliação curricular, selecionando aqueles cuja formação académica e experiência se adequam melhor ao posto de trabalho que pretendem preencher, e depois submeter estes então a uma prova de conhecimento, e não obrigar a fazer prova de conhecimentos a milhares e milhares de candidatos, e seguidamente submeter os com melhores resultados na prova de conhecimentos a uma prova psicológica e a uma entrevista até completar o número de postos de trabalho a preencher, a contratação publica de trabalhadores sem vinculo público continuará bloqueada. E se o Ministério da Finanças, não digo da tutela, continuar a interferir e a bloquear tudo, levando anos para que um concurso termine, a degradação da Administração Pública agravar-se-á ainda mais para benefício dos privados.

A DEGRADAÇÃO E A CRISE PROFUNDA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO ESTÁ A ACONTECER NO SNS É TAMBÉM UMA CONSEQUENCIA DA QUEBRA ENORME DO INVESTIMENTO PÚBLICO COM OS GOVERNOS PSD/CDS E PS/COSTA

Para reduzir o défice e “brilhar” em Bruxelas os sucessivos governos têm cortado no investimento. O quadro 2 mostra isso.

 

Quadro 3 – Investimento (FBCF) e Consumo de Capital Público durante os governos de Passos Coelho/Portas e António Costa

Segundo o INE, entre 2011 e 2021, o Investimento Público (FBCF) foi inferior ao Consumo de Capital Fixo Público, ou seja, àquilo que desapareceu devido ao uso e à obsolescência, em 13960 milhões €. Deste total, 9511 milhões € foram com os governos de Costa/Centeno/Leão. Neste período (2011/2021), com os governos de Passos/Portas e de António Costa, o novo investimento publico nem foi suficiente para substituir o que desapareceu ou se degradou ou mesmo se arruinou. Eis as causas da degradação do SNS com hospitais que não se fizeram, ou não se recuperaram, com faltas de instalações mínimas, como camas nos corredores, com equipamentos profundamente degradados ou ultrapassados, com falta de novos equipamentos, etc., etc. A falta de condições mínimas de trabalho associadas a remunerações indignas estão a levaram muitos profissionais de saúde a abandonar o SNS e a irem trabalhar para os privados. Mas foi desta forma que Costa/Centeno/Leão reduziram o défice e Medina quer fazer o mesmo, pois como está a ficar claro o governo só muda em palavras.


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