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Sábado, Dezembro 21, 2024

Discurso do papa que critica a perseguição política

Apenas uma semana depois de escrever uma carta a Lula, preso político, o papa Francisco criticou de forma contundente nesta terça-feira 4 perseguições políticas como a que foi feita contra o ex-presidente. “O lawfare, além de colocar a democracia dos países em sério risco, é utilizado para minar os processos políticos emergentes e incentivar a violação sistemática dos direitos sociais”, disse o pontíficeO Papa Francisco fez nesta terça-feira (4) um pronunciamento enfático contra a prática do ‘lawfare’ ao falar a juristas de toda a América. “O lawfare, além de colocar a democracia dos países em sério risco, é utilizado para minar os processos políticos emergentes e incentivar a violação sistemática dos direitos sociais”. Para Francisco, é preciso “neutralizar” operações que são uma “nova forma de intervenção externa nos cenários políticos dos países” em “em combinação com operações midiáticas paralelas”.

O discurso é feito apenas uma semana depois de o pontífice escrever uma carta em resposta ao ex-presidente Lula, se solidarizando com sua situação. Lula foi alvo da perseguição política descrita no pronunciamento do papa feito nesta terça e a Lava Jato está dentro das características exatas descritas por Francisco.

Confira a íntegra de sua fala, em português:

Discurso do Santo Padre Francisco na cúpula dos Juízes Panamericanos sobre Direitos Sociais e Doutrina Franciscana

Casina Pío IV – Terça-feira, 4 de junho de 2019

Senhoras e senhores, é motivo de alegria e também de esperança encontrá-los nesta Cúpula onde os presentes não se limitam apenas a vocês, mas que evoca o labor que realizam conjuntamente com advogados, assessores, procuradores, defensores, funcionários, e evoca também a vossos povos com o desejo e a busca sincera de garantir que a justiça, e especialmente a justiça social, possa chegar a todos. Vossa missão, nobre e pesada, pede consagrar-se ao serviço da justiça e do bem comum com o chamado constante a que os direitos das pessoas e especialmente dos mais vulneráveis sejam respeitados e garantidos. Desta maneira, vocês ajudam a que os Estados não renunciem a sua mais sublime e primária função: cuidar do bem comum de seu povo. “A experiência ensina que – afirmava João XXIII – quando falta uma ação apropriada dos poderes públicos nos âmbitos económico, político e cultural, se produz entre os cidadãos, sobre tudo em nossa época, um maior número de desigualdades em setores cada vez mais amplos, resultando assim que os direitos e deveres da pessoa humana carecem de toda eficácia prática” (Carta enc. Pacem in terris, 63).

Celebro esta iniciativa de se reunir, assim como a realizada no ano passado na cidade de Buenos Aires, na qual mais de 300 magistrados e servidores judiciais deliberaram sobre os Direitos sociais à luz de Evangelii gaudium, Laudato si’ e o discurso aos Movimentos Populares em Santa Cruz de la Sierra. Dali saiu um conjunto interessante de vetores para o desenvolvimento da missão que têm em mãos. Isto nos lembra a importância e, porque não, a necessidade de nos encontrar para afrontar os problemas de fundo que vossas sociedades estão atravessando e, como sabemos, não podem ser resolvidos simplesmente por ações isoladas ou atos voluntários de uma pessoa ou de um país, mas que demanda a geração de uma nova atmosfera; ou seja, uma cultura marcada por lideranças compartilhadas e valentes que saibam engajar outras pessoas e outros grupos até que frutifiquem em importantes acontecimentos históricos (cf. Exhort. apost. Evangelii gaudium, 223) capazes de abrir caminho às gerações atuais, e também futuras, semeando condições para superar as dinâmicas de exclusão e segregação de modo que a iniquidade não tenha a última palavra (cf. Carta enc. Laudato si’, 53.164). Nossos povos reclamam este tipo de iniciativas que ajudem a deixar todo tipo de atitude passivo ou expectadora como se a história presente e futura tivesse que ser determinada e contada por outros.

Nos é dado viver uma etapa histórica de mudanças em que se coloca em jogo a alma de nossos povos. Um tempo de crise – crise: o caractere chinês, riscos, perigos e oportunidades; é ambivalente, muito sábio isto – tempo de crise em que se verifica o paradoxo: por um lado, um fenomenal desenvolvimento normativo, por outro, uma deterioração do gozo efetivo dos direitos consagrados globalmente. É como início dos nominalismos, sempre começam assim. E mais, cada vez, e com maior frequência, as sociedades adotam formas anômicas de fato, sobretudo em relação às leis que regulam os Direitos sociais, e o fazem com diversos argumentos. Esta anomia está fundamentada, por exemplo, em insuficiências orçamentárias, impossibilidade de generalizar benefícios ou o caráter mais programático do que operativo destes. Preocupa-me constatar que se levantam vozes, especialmente de alguns “doutrinários”, que tratam de “explicar” que os Direitos sociais já são “velhos”, estão fora de moda e não têm nada a aportar a nossas sociedades. Deste modo, confirmam políticas econômicas e sociais que levam nossos povos à aceitação e justificação da desigualdade e da indignidade. A injustiça e a falta de oportunidades tangíveis e concretas por trás dessa análise incapaz de colocar-se na situação, nos pés do outro – e digo pés, não sapatos, porque em muitos casos essas pessoas não os têm –, é também uma forma de gerar violência: silenciosa, mas, no fim das contas, violência. A normatividade excessiva, nominalista, independentista, desemboca sempre em violência.

“Hoje vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas. Cidades – orgulhosas de sua revolução tecnológica e digital – que oferecem inúmeros prazeres e bem-estar para uma minoria feliz… mas se nega moradia a milhares de vizinhos e irmãos nossos, inclusive crianças, chamados, elegantemente, de “pessoas em situação de rua”. É curioso como no mundo das injustiças abundam eufemismos” (Encontro Mundial de Movimentos Populares, 28 de outubro de 2014). Parece que as Garantias Constitucionais e os Tratados internacionais ratificados, na prática, não têm valor universal.

A “injustiça social naturalizada” – ou seja, tida como algo natural – e, portanto, invisibilizada, que só lembramos ou reconhecemos quando “alguns fazem barulho nas ruas” e são rapidamente catalogados como perigosos e ofensivos, termina por silenciar uma história de postergações e esquecimentos. Permitam-me dizer, isto é um dos grandes obstáculos que encontra o pacto social e que debilita o sistema democrático. Um sistema político-econômico, para seu desenvolvimento são, precisa garantir que a democracia não seja só nominal, mas que possa se ver plasmada em ações concretas que cuidem da dignidade de todos seus habitantes sob a lógica do bem comum, em um chamado à solidariedade e uma opção preferencial pelos pobres (cf. Carta enc. Laudato si’, 158). Isto exige os esforços das máximas autoridades, e por certo do poder judicial, para reduzir a distância entre o reconhecimento jurídico e a prática do mesmo. Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade.

Quantas vezes a igualdade nominal de muitas de nossas declarações e ações não faz mais que esconder e reproduzir uma desigualdade real e subjacente e revela que se está diante de uma possível ordem ficcional. A economia das ações, a democracia adjetiva, e a mídia concentrada geram uma bolha que condiciona todos os olhares e opções desde o amanhecer até o pôr do sol[1]. Ordem ficcional que iguala em sua virtualidade mas que, no concreto, amplia e aumenta a lógica e as estruturas da exclusão-expulsão porque impede um contato e compromisso real com o outro. Impede o concreto, ou a assumir responsabilidade pelo concreto.

Nem todos partem do mesmo lugar na hora de pensar a ordem social. Isto nos questiona e nos exige pensar novos caminhos para que a igualdade frente à lei não degenere na propensão da injustiça. Em um mundo de virtualidades, mudanças e fragmentação – estamos na época do virtual –, os Direitos sociais não podem ser somente exortativos ou apelativos nominais, devem ser olfato e bússola para o caminho pelo qual “a saúde das instituições de uma sociedade tenha consequências no ambiente e na qualidade da vida humana” (Carta enc. Laudato si’, 142).

Pedem-nos lucidez de diagnóstico e capacidade de decisão frente ao conflito, pedem-nos não nos deixarmos dominar pela inércia ou por uma atitude estéril como quem olha, nega ou anula e segue em frente como se nada tivesse acontecido, lava as mãos para poder continuar com suas vidas. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem horizontes e projetam nas instituições as próprias confusões e insatisfações. O convite é olhar de frente o conflito, sofrê-lo e resolvê-lo transformando-o em elo de um novo processo (cf. Exhort. apost. Evangelii gaudium, 227).

Assumindo o conflito fica claro que nosso compromisso é com nossos irmãos para dar operacionalidade aos Direitos sociais com o compromisso de buscar desarticular todos os argumentos que atentem contra sua concretização, e isto por meio da aplicação ou criação de uma legislação capaz de alçar as pessoas no reconhecimento de sua dignidade. Os vazios legais, tanto de uma legislação adequada como da acessibilidade e do cumprimento da mesma, põem em marcha círculos viciosos que privam as pessoas e as famílias das necessárias garantias para seu desenvolvimento e bem-estar. Estes vazios são geradores de corrupção que encontram no pobre e no meio-ambiente os primeiros e principais afetados.

Sabemos que o direito não é somente a lei ou as normas, mas também uma práxis que configura os vínculos, que os transforma, em certo modo, em “fazedores” do direito cada vez que se confrontam com as pessoas e com a realidade. E isto convida a mobilizar toda imaginação jurídica a fim de repensar as instituições e fazer frente às novas realidades sociais que estão sendo vividas[2]. É muito importante, neste sentido, que as pessoas que cheguem aos escritórios de vocês e a suas mesas de trabalho sintam que vocês chegaram antes delas, que vocês chegaram primeiro, que vocês os conhecem e os compreendem em sua situação particular, mas especialmente reconhecendo-os em sua plena cidadania e em seu potencial de ser agentes de mudança e transformação. Não percamos nunca de vista que os setores populares não são em primeiro lugar um problema, mas parte ativa do rosto de nossas comunidades e nações, eles têm todo o direito à participação e busca e construção de soluções inclusivas. “O marco político e institucional não existe só para evitar práticas ruins, mas também para estimular melhores práticas, para estimular a criatividade que busca novos caminhos, para facilitar as iniciativas pessoas e coletivas” (Carta enc. Laudato si’, 177).

É importante estimular que desde o começo da formação profissional, os operadores do direito possam fazê-lo em contato real com as realidades as quais um dia servirão, conhecendo-as de primeira mão e compreendendo as injustiças nas quais um dia terão que atuar. Também é necessário buscar todos os meios e mecanismos para que os jovens provenientes de situação de exclusão ou marginalização possam chegar eles mesmos a capacitarem-se de modo que possam exercer o protagonismo necessário. Muito se falou por eles, precisamos também escutá-los e dar-lhes voz nestes encontros. Me vem à memória o leit motiv implícito de todo paternalismo jurídico-social: tudo para o povo mas nada com o povo. Tais medidas nos permitirão instaurar uma cultura do encontro “porque nem os conceitos nem as ideias se amam […]. A entrega, a verdadeira entrega, surge do amor aos homens e mulheres, crianças e idosos, povos e comunidades… rostos, rostos e nomes que enchem o coração” (II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 julho de 2015).

Aproveito esta oportunidade de me reunir com vocês para manifestar-lhes minha preocupação por uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos dos países por meio do uso indevido de procedimentos legais e tipificações jurídicas. O lawfare, além de pôr em sério risco a democracia dos países, geralmente é utilizado para minar os processos políticos emergentes e tende à violação sistemática dos Direitos sociais. Para garantir a qualidade institucional dos Estados é fundamental detectar e neutralizar este tipo de práticas que resultam da imprópria atividade judicial em combinação com operações midiáticas paralelas. Sobre isso não me detenho, mas o julgamento midiático prévio nós todos conhecemos.

Isto nos lembra que, em não poucos casos, a defesa ou priorização dos Direitos sociais sobre outros tipos de interesses, levará vocês a se enfrentarem não só com um sistema injusto mas também com um poderoso sistema comunicacional do poder, que distorcerá frequentemente o alcance de suas decisões, colocará em dúvida sua honestidade e também sua probidade, inclusive podendo julgá-la. É uma batalha assimétrica e erosiva em que para vencer é preciso manter não só a fortaleza mas também a criatividade e uma adequada elasticidade. Quantas vezes os juízes e juízas enfrentam em solidão as muralhas da difamação e do opróbio, quando não da calúnia! Certamente, é preciso um grande caráter para poder superá-las. “Felizes os que são perseguidos por praticar a justiça, porque a eles pertence o Reino dos Céus” (Mt 5,10), dizia Jesus. Neste sentido, me alegra que um dos objetivos deste encontro seja a conformação de uma Comitê Permanente Pan-americano de Juízes e Juízas pelos Direitos Sociais, que tenha entre seus objetivos superar a solidão na magistratura, brindando apoio e assistência recíproca para revitalizar o exercício de sua missão. A verdadeira sabedoria não se consegue com uma mera acumulação de dados – isso é enciclopedismo – uma acumulação que acaba saturando e turvando em uma espécie de contaminação ambiental, mas sim como reflexão, o diálogo, o encontro generoso entre as pessoas, essa confrontação adulta, sã, que nos faz crescer a todos (cf. Carta enc. Laudato si’, 47).

Em 2015 eu dizia aos integrantes dos Movimentos Populares: Vocês “têm um papel essencial, não só exigindo ou demandando, mas principalmente criando. Vocês são poetas sociais: criados do trabalho, construtores de moradias, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado mundial” (II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015). Estimados magistrados: Vocês têm um papel essencial; permitam-me que lhes diga que vocês também são poetas, são poetas sociais quando não têm medo “de ser protagonistas na transformação do sistema judicial baseado no valor, na justiça e na primazia da dignidade da pessoa humana”[3] sobre qualquer outro tipo de interesse ou justificativa. Gostaria de terminar dizendo-lhes: “Felizes os que têm fome e sede de justiça; felizes os que trabalham pela paz” (Mt 5,6.9). Muito obrigado.

 

[1] Cf. Roberto Andrés Gallardo, Derechos sociales y doctrina franciscana, 14.

[2] Cf. Horacio Corti, Derechos sociales y doctrina franciscana, 106.

[3] Nicolás Vargas, Derechos sociales y doctrina franciscana, 230.


Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial Brasil247 / Tornado


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