A discussão do actual projecto governamental da Lei de Bases da Saúde está a permitir clarificar os reais posicionamentos político-ideológicos de alguns intervenientes na cena política portuguesa.
Os argumentos que têm utilizado na discussão pública contra esse projecto está a fazer-lhes cair a “burka” com que escondem o seu neoliberalismo arcaico e desumano.
Assim, e para que tudo se possa tornar mais transparente, importa lembrar alguns factos mais distantes e outros mais próximos.
Como disse um dia Shakespeare, “a memória é a sentinela do cérebro”.
Na grande maioria dos casos, aquilo que verdadeiramente move a campanha contra este projecto governamental é o medo de diversos círculos privados deixarem de continuar a parasitar os dinheiros públicos em tão larga escala.
Numa primeira fase, a sua incontinência verbal e a falta de argumentos credíveis levou-os a inventar a cassete de que não importava se a gestão era pública ou privada, dado que o mais importante era garantir o atendimento das pessoas.
Facilmente desmontada tal cassete, a campanha passou a incorporar ameaças veladas de “veto presidencial”.
Nesta base, o argumento foi a necessidade de um consenso alargado ao PSD, porque uma lei desta importância não podia ser aprovada por um só partido para que pudesse dispor logo à partida de uma perspectiva mais duradoura.
Mais uma vez, a campanha atabalhoada dos círculos contra o SNS escamoteiam de forma politicamente desonesta que a actual lei de bases ainda em vigor foi aprovada em 1990 por único partido, o PSD, durante um governo de maioria absoluta do PSD, presidido por Cavaco Silva.
Nessa altura, o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa, militante/ dirigente do PSD, não emitiu uma única palavra de incomodidade pelo facto do seu partido ter imposto uma Lei desta importância sem ter dialogado com qualquer partido e muito menos tentado qualquer consenso.
É grave que em política se adoptem atitudes de chocante incoerência consoante é o seu partido ou são os outros a governarem.
Alguns dias depois da ampla divulgação da insinuação do tal veto, o PSD apresentou publicamente a sua proposta de lei de bases da saúde, onde o vice-presidente do seu grupo parlamentar, Adão Silva, afirmou, segundo a notícia, que estavam à procura de um entendimento com o PS e o CDS.
Este dirigente partidário estava acompanhado perante os jornalistas do ex ministro da saúde Luís Filipe Pereira e de outro deputado.
Estes 3 dirigentes do PSD repetiram várias vezes que “o debate está viciado pela ideologia”.
O CDS fez também a apresentação pública da sua proposta onde fez afirmações contra aquilo a que chamou “cegueira ideológica” ou “amarras ideológicas”, chegando ao cúmulo do descaramento político ao defender que “o Estado tem de dotar os serviços públicos, privados e sociais dos mesmos meios e financiamento, para que ajam num regime concorrencial”.
O dinheiro dos contribuintes, dos nossos impostos, seria canalizado para as entidades privadas para depois, com esse dinheiro, irem concorrer contra os serviços públicos.
Esta exorcização da ideologia cheira sempre a totalitarismo bafiento e impregnado de conceitos ditatoriais.
Negar a ideologia é a forma mais ignóbil de fazer política.
Basta lembrar algumas das afirmações do capitão de extrema-direita brasileiro Bolsonaro na sua recente tomada de posse como presidente do Brasil, nomeadamente que ” … O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas…” ; “ … Reerguer a nossa Pátria libertando-a da submissão ideológica…” ; e “ … Precisamos criar um ciclo virtuoso para a economia… sem o viés ideológico.”
Esta comum terminologia é muito preocupante.
Defender o SNS é estar viciado pela ideologia, mas querer colocar os cidadãos contribuintes a entregarem o seu dinheiro para enriquecimento fácil e sem riscos dos accionistas dos grupos privados já não é ideologia nem amarras ideológicas? São jogos florais?
Haja decência e seriedade política!!!
É também muito elucidativo que dos referidos dirigentes do PSD, um tenha sido ministro da saúde dos governos presididos por Durão Barroso e Santana Lopes e o outro tenha sido seu secretário de estado da saúde.
Foi durante o exercício ministerial desses dois dirigentes do PSD que foi desencadeada a maior ofensiva contra o SNS, visando a sua destruição.
Para que a memória seja mesmo a sentinela do nosso cérebro, importa lembrar que foram esses dois ex-governantes que criaram os hospitais SA, dirigidos à sua posterior privatização, que foram esses dois ex-governantes que publicaram um decreto-lei com o objectivo claro de privatizar os centros de saúde e que até passaram a chamar ao SNS “Sistema Nacional de Saúde”.
O populismo totalitário à portuguesa anda aí, embora disfarçado de outras ideologias.
E a discussão da proposta governamental da lei de Bases da Saúde está a fazer-lhes estalar o “verniz“ deixando mais a descoberto a essência do seu verdadeiro pensamento já infectado por uma “bolsonarite” aguda.
A Lei de Bases da Saúde está constituir-se como um elemento estruturante do próprio regime democrático. E é por isso mesmo que os quadrantes político-ideológicos mais fundamentalistas na sua aversão compulsiva às políticas sociais estão a investir tanta propaganda política contra o SNS.
Cada cidadão democrata tem de estar presente neste debate nacional e não abdicar de defender a sua saúde.