Das inúmeras cenas vivas da epopeia portuguesa que aguardam na etérea poeira dos arquivos ser um dia arrancadas ao esquecimento e levadas à cena por uma hipotética Hollywood nacional ou europeia, está sem dúvida aquela que nos é descrita pelo aventureiro Fernão Mendes Pinto, no final do primeiro volume da sua Peregrinação.
Refiro-me ao episódio em que um pequeno grupo de náufragos lusos em que ele se incluía é levado à presença do rei dos tártaros, pouco depois de uma das suas recorrentes incursões armadas sobre a cidade de Pequim, em meados do século XVI.
Escreve Fernão, transcrevendo a fala do rei dirigindo-se ao general que à sua presença conduzira os portugueses:
Pergunta a essa gente do cabo do mundo se tem rei e como se chama a sua terra, e que distância haverá dela a esta do chim em que agora estou.
A que um da nossa companhia em nome de todos respondeu que a nossa terra se chamava Portugal, cujo rei era muito grande e poderoso, e que dela àquela cidade de Pequim haveria distância de quase três anos de caminho, de que ele fez um grande espanto como homem que não tinha esta máquina do mundo por tamanha. (…)
“Fuxiquidane, fuxiquidane” – “Venham cá, venham cá.” E acenando com a mão nos fez chegar até aos primeiros degraus da tribuna onde os catorze reis estavam sentados, e nos tornou a perguntar como homem espantado que tinha ouvido: “Pucau, pucau?”, que quer dizer “Quanto, quanto?” – a que respondemos o mesmo que antes: quase três anos de caminho; a que perguntou então porque não vínhamos antes por terra que a aventurarmo-nos aos trabalhos do mar?
Ao que se respondeu que por a terra ser muito grande e haver nela reis de diversas nações que o não consentiriam; a que ele tornou:”Que é o que vindes a buscar a essoutra, porque vos aventurais a tamanhos trabalhos?”
E declarando-lhe então a razão disto, pelas melhores e mais bem enfeitadas palavras que então ocorreram, esteve um pouco suspenso, e bulindo três ou quatro vezes com a cabeça, disse para um homem velho que estava junto dele:
Conquistar esta gente terra tão alongada da sua pátria dá claramente a entender que deve haver entre eles, muita cobiça e pouca justiça”
a que o velho, que se chamva Raja Benão, respondeu: -“Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas, para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus pais”.
Da qual resposta alguns dos que estavam presentes, segundo deles inferimos, motejaram algum tanto com ditos cortesãos e galantes de que el-rei gostava muito.