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Sábado, Dezembro 21, 2024

Dizer o mal: a Serpente e o Tigre

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

Dizer o Mal
Por definição, enquanto absolutos, o Mal, como o Bem, são indicíveis.

Podemos encontrar nos dicionários definições que surgem no âmbito de uma determinada prática, religiosa, ou determinada definição do que seja o “comportamento” correcto, dito moral, em função de critérios e valores que foram definidos, – e de algum modo evoluindo – ao longo dos tempos. Caímos assim num certo relativismo , histórico e filosófico, que torna impossível uma definição objectiva.

Dentro de um conjunto de regras que se aceitam, pode ser entendido como mal o que noutras simplesmente se recusam ou consideram despiciendas.

Haveria que ir buscar exemplos à consciência do corpo, e da alma: o que dói no corpo é o mal de que se padece, para quem sofre; e o que dói na alma também é o mal de quem o sofre na alma, dôr menos visível mas não menos real.

Este é um mal relativo, individualizado, restrito, em função de algo que é outra coisa, que não o mal absoluto.

Estaria mais próximo do sentido de dôr.

Deixando corpo e alma, de que modo se inscreve na nossa consciência e na consciência universal, dita arquetípica, esta noção de mal?

Parece antiga, e de tão antiga, se tornou inata? Ou será mesmo cósmica, emanando da treva intrínseca ao nascimento e formação do mundo dos primórdios, de quando Deus, com o seu Verbo, separa a luz das trevas, onde reside o mal, como nos faz crer Jacob Boehme?

Boehme (1575-1624) de educação luterana, tem no entanto uma visão desviante (a sua própria Igreja o critica e proíbe os seus livros) da leitura tradicional da Bíblia. É um pensador que se inspira em tratados alquímicos, cabalísticos, gnósticos de inspiração teosófica (não confundir com o gnosticismo dos primitivos cristãos) e cuja influência foi enorme em Goethe, por exemplo, ou Novalis e Hegel, chegando também a ser criada em Inglaterra uma corrente de seguidores, ainda no final do século XVII, e no século XVIII (in Serge Hutin, Les Disciples Anglais de Jacob Boehme, ed. Denoel, 1960) que foi inspiradora de poetas e visionários, como William Blake, entre outros.

A sua concepção de Deus, e do Bem e do Mal primordiais, está próxima do que se pode considerar uma revelação mística, mais do que de uma sistematização de um pensamento doutrinal ordenado.

Alguns dos seus tratados, como o Da Tripla Vida do Homem, que Louis-Claude de Saint Martin traduziu, é alquímico na utilização frequente dos três princípios do enxofre, mercúrio e sal para explicar a natureza da materialidade real do homem, a criatura que Boehme considera degenerada e a necessitar de sublimação.   Noutro tratado , da Aurora, concebe Deus como uma roda que roda incessantemente tendo consigo outras que lhe estão ligadas por cima, por baixo e dos lados (Cap.21, 61) apresentando assim a visão de um Deus que é um Todo uno e nessa promordial e eterna quaternidade representação da perfeição absoluta. Mas a sua realidade é inacessível ao homem, ser corrompido, numa natureza também ela corrompida pela materialidade do real.

E sendo assim, como explicar a existência do Mal?

Alexandre Koyré, um dos grandes estudiosos da obra de Boehme (La Philosophie de Jacob Boehme, ed. Vrin, 1971), nota que fica por resolver a questão do mal real, o mal no mundo, com o sofrimento e a morte que são destino do homem.

Boehme separa a existência do mal da realidade de pura luz e amor que são essência da divindade, na sua manifestação, o Verbo, ao criar o mundo.

Para o teósofo alemão, o mundo do primeiro princípio, que era ainda caos e trevas, não continha a perfeição de Deus, enquanto Deus, mas era um mundo à parte, luciferino, de que a luz divina estava ausente ( não tinha ainda sido separada). De modo que só na “segunda” fase da criação, no mundo real, terreal, se pode considerar o mal presente e actuante.

Koyré observa que Boehme não acreditava na eternidade do nosso mundo, degenerado, pois não era a expressão “legítima” da perfeição do Deus Criador como ele o concebia, não integrava a sua essência, tendo surgido apenas na sua posterior manifestação. (De Signatura Rerum,cap.II, 2 ).

O Deus de Boehme era Luz e Amor e só nessa concepção podia ser entendido ( A.Koyré, p.426). A não ser que aceitemos estas visões sem as interpelar na sua lógica ou coerência, explicar o mal continua, para o comum dos mortais, a ser difícil…para não dizer impossível.

No Génesis 1, quando Deus cria o homem à sua imagem, criando-o homem e mulher, e insistindo no facto de que foi criado à sua imagem e semelhança – não passa por aqui a ideia de que, sendo Deus o criador perfeito, o homem não seja igualmente dotado da sua perfeição. Evocando de passagem o andrógino do Banquete de Platão, ser completo e redondo, e por essa razão perfeito, como as rodas de Boehme…

Entregando ao homem todo o poder sobre todos os seres vivos, de todas as espécies, animais e vegetais, concluiu Deus então, nesta primeira narrativa, ao terminar o sexto dia, que tudo o que tinha feito era bom: “Deus viu tudo o  que tinha feito, era tudo muito bom”.

Ao sétimo dia descansou, estava completa a Obra.

Há contudo um pormenor, no fundamento para a criação, que nos interpela logo de início: ” Ao princípio, Deus criou o céu e a terra. (…) as trevas cobriam  o abismo, o espírito de Deus pairava sobre as águas”. Desde o início, a presença das trevas.

A seguir Deus ordena que surja a luz, e separou a luz (que Deus viu que era boa) das trevas; chamou dia à luz e noite às trevas.

Fica então já um prenúncio de que na sua origem, nas trevas que cobriam o abismo, o mal, como procuramos agora entendê-lo, estaria já ali presente, na origem da criação.

Na segunda narrativa do Génesis, a referência é mais directa e o tom tem um ar mais pessoal, quase mais íntimo… intimista.

Deus tem nome: Yahvé. Yahvé-Deus.

Molda o homem a partir da argila do solo, sopra-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem transforma-se num ser vivo. Até aí seria apenas massa informe.

Esta segunda narrativa  – sabe-se que os textos da Bíblia têm sucessivos autores, ao longo do tempo – faz lembrar uma das lendas judaicas, cabalísticas, do sábio do século XVI, Rabbi Loew, que tinha criado um ser que se transformou num perigoso monstro, destruidor, o Golem, que significa “ser informe”, e que o seu criador teve por fim  de aniquilar inscrevendo na sua fronte a palavra met que em hebraico por alteração de uma letra passa de vida, emet, a morte. Este mito do Golem é recuperado por Gustav Meyrinck escritor do século XX, num romance do mesmo nome. E um dos filmes que anuncia a chegada  do cinema expressionista é também, em 1915, de Paul Wegener, O Golem.

Mas há mais: Yahvé-Deus plantou um jardim, neste Éden criado para fruição do homem, e no meio do jardim plantou duas árvores: a da vida, e a do conhecimento do bem e do mal. O homem recebeu então uma ordem:

“Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, pois no dia em que o fizeres morrerás de certeza”.

Só depois desta indicação é que Yahvé-Deus entende que não era bom para o homem estar sozinho, e cria a mulher a partir de uma das costelas do homem (que fez cair num sono profundo, para tal efeito). A mulher, nesta segunda narrativa, só vem a ser criada depois de Yahvé-Deus ter primeiro criado todos os seres vivos, da terra e do céu, dos quais o homem seria senhor e aos quais teria de dar um nome. Nomear já era, desde o início, o acto da suprema criação. E que Deus, a propósito da árvore do jardim tenha nomeado o bem e o mal, fê-los, de algum modo acontecer, não logo em acto, mas já em potência.

Adão sai do seu sono profundo, e do mesmo modo, ao acordar e ver a mulher a seu lado exclama “esta é carne da minha carne e será chamada mulher” (Eva). Deu-lhe existência, ao dar-lhe o nome.

Contudo bem se compreende que esta mulher é já um ser à parte, não é o homem-mulher da primeira narrativa, que apontava para um ser andrógino, perfeito na sua totalidade, como à imagem de Deus.

No capítulo seguinte, A Queda, conta-se como de todos os animais do jardim a serpente é o mais esperto, e é ela que se dirige à mulher, perguntando:

“Então Deus disse que não poderíeis comer de todas as árvores do jardim?A mulher respondeu à serpente:

Podemos comer os frutos das árvores do jardim.Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Não comereis esse fruto, não tocareis nele, sob pena de morte”.

E aqui começa o episódio em que a serpente diz que é mentira, não morrerão, mas que os seus olhos se  abrirão e ficarão a conhecer, como os deuses, o bem e o mal.

Está feita de novo a distinção entre o bem e o mal, e como o seu conhecimento é apanágio dos deuses, e proibido às outras criaturas, no caso, Adão e Eva, o par humano.

Para os homens que adquiram um tal conhecimento – proibido – o castigo será eterno, com a expulsão do Éden, e os consequentes malefícios que daí decorrerão: em vez da vida eterna, a morte, associada ao pecado da desobediência, por um lado, mas à nova consciência do bem e do mal que antes não se possuía.

O castigo será feito de Vida, mas de vida sofrida.

Forma-se a seguir um outro mito (se entendermos que as narrativas do Velho Testamento são estruturas míticas, de fundação da história e da memória humana) o mito de Abel e Cain: este, só por ciúme mata o seu irmão, cujas oferendas a Deus eram de um maior agrado.

Uma variante do mal – já em acto, o assassinato, e não apenas em potência (em possibilidade ainda não efectivada). O crime já como consequência do castigo que Adão e Eva sofreram, com a expulsão do paraíso. A imperfeição vivida na própria carne da sua descendência.

Está na hora de perguntar: por que razão terá o mal a ver com o conhecimento? E vamos encontrar na treva primordial a sua raiz, o seu fundamento absoluto?

Do absoluto, apenas potencial, passamos na narrativa do Génesis 2 ao conceito já prático de moral, como Kant o entendeu na Critica da Razão Prática. A saber, um acto praticado contra um outro levando ao seu aniquilamento (físico ou psíquico, se avançarmos já para mais perto do nosso tempo, de Freud ou Jung….).

O mal como prática de um ilícito, face a normas que a Ética ou a Religião condenem.

Um desrespeito da Ordem – recebida e não acatada.

E de seguida o crime, que visa destruir a existência de um outro, como se o desejo de existir sozinho perante a divindade fosse algo de incontrolável, impulso irracional que só mais tarde se assimila e entende.

Cain será expulso da presença dos pais, mas virá a ser um construtor de cidades, ao vaguear pelo mundo…

Eis que outra visão se forma, por aqui: a cidade que se ergue por mão criminosa, estará já, também ela, à partida, contaminada pelo mal?

As cidades, que são a forma em que as comunidades das criaturas vivas se foram conseguindo organizar?

Deus criador diz – disse – o mal.

Nomeou, e dizer o nome é dar existência ao que não existia anteriormente. Nomear é um gesto de criação.

O homem, ser criado, não diz, pratica, ou o bem ou o mal, na obediência ou no desrespeito de algo que lhe foi ordenado.

Mas como chegou o homem ao conhecimento do bem e do mal?

E gradualmente, para lá da prática do pecado ou do crime de desobediência, a que Conhecimento (foi) é conduzido?

De Deus, que o criou e castiga?

Nesse sentido é muito interessante ler o Livro de Job, como fez Frederico Lourenço, no Livro Aberto, Leituras da Bíblia ou como fez, antes dele, Carl Gustav Jung, em Reponse a Job (trad. francesa,1977); Job o puro, o virtuoso, o inocente de todo e qualquer mal e sobre quem todos os males concebíveis são descarregados perante o desafio do demónio (a serpente do Éden) e a evidente indiferença de Deus.

Conhecimento dos outros?

De si mesmo?É praticamente no Apêndice (p.243) que Jung,explica o que o levou a escrever esta reflexão em que se aprofunda a questão do mal, não enquanto privatio boni, quelhe parece limitada, e que o conhecimento psicológico não pode explicar, mas como algo de mais substancial. E cito: “A experiência psicológica demonstra que a  tudo aquilo a que chamamos “bem” se encontra  em oposição um “mal” igualmente substancial.

Se o “mal” não existisse, tudo o que existe seria obrigatoriamente “bom”. Segundo o dogma cristão nem o “bom” nem o “mal” podem ter a sua origem no homem, pois que o “mal” enquanto um dos filhos de Deus, preexistia ao homem”.

Adão e Eva, de Lucas Cranach, o Velho

 

São Clemente de Roma, antes da heresia de Manès, dualista, ensinava que Deus governava o mundo com uma mão direita e uma mão esquerda. A mão direita significava Cristo, e a esquerda Satã.

E ainda com Jung: “A concepção de Clemente é manifestamente monoteísta, pois reúne num Deus único os princípios opostos” (p.244).

Não estamos pois nesta ideia, longe do que a narrativa do Génesis 2 nos apresentou: o conhecimento que Deus tem e anuncia, do bem e do mal na mesma árvore proibida!..

Voltando ao Livro de Job, o que pensam deste episódio os antigos filósofos e comentadores em que a crueldade divina se torna tão explícita, como substância integrante da sua natureza? Job espera assistência e ajuda de Deus contra Deus em  Si mesmo. E isto supõe uma concepção próxima da que Jung expôs atrás e segundo a qual os contrários, os opostos, bem e mal, estão contidos em Deus.

Só nestes termos se pode então conceber a existência de um Mal absoluto, preexistente, contaminando toda a criação.

Terá Deus, pela via de um Cristo redentor, a necessidade de ser salvo de Si mesmo?

Matérias para reflexão…

Na verdade, depois de comer do fruto proibido, a primeira descoberta que Adão e Eva fazem é a dos seus corpos, nús.

E diferenciados: na nudez, o do homem não é igual ao da mulher.

Estamos perante um primeiro momento de revelação, de si mesmo e do outro, e do que daí decorre.

Desenha-se posteriormente a ideia de que o mal (a tentação, o pecado original, a sedução da serpente) tem origem na mulher, e no sexo. E por oposição que o bem será negar, ou pelo menos criticar e evitar tudo isto.

Jean Dutourd, no seu ensaio Le Septième Jour, récit des temps bibliques, de escrita directa e agradável de ler, termina o capítulo relativo a Cain, com a seguinte observação:

Absurdo é a palavra moderna que veio substituir a expressão pecado original.”

Será, para o mundo moderno, o conceito de absurdo (algo que surpreende, por inesperado, contraditório, risível ou mesmo errado) uma das possíveis aproximações ao conceito assim exposto de mal?

Penso que não, o conceito de mal é mais profundo e inexplicável, o seu radicalismo é total, não tem contraditório a não ser na luz primordial do bem, enquanto absurdo pode ser algo até de divertido, como acontece no Teatro do Absurdo, de um Ionesco, ou outros que como ele nos surpreenderam.

O mal existe, manifesta-se no homem e no mundo criado, a ponto de Deus, o Criador, exclamar a certo momento, como se diz nas Escrituras, que se arrependia de ter criado “o homem, os animais, e até mesmo os pássaros do céu” Havia apenas um justo ( um homem bom) Noé!

Com Noé, e a sua arca, Deus “refaz” por assim dizer a criação. Corrige o erro inicial.Mas na verdade nada muda…

O erro, o mal, estava inscrito nos primórdios da treva primeira, aquela de que Deus separou a luz, e fez a divisão dos dias e das noites, a divisão do tempo.

Dividiu o tempo, mas não dividiu o erro da existência, essência mesma do Ser: seu e do outro, os outros que foram, a partir daí, desde Adão e Eva, na multiplicidade e na multiplicação segundo a ordem que foi dada.

E afinal que substância era essa que o fruto da árvore proibida continha?

Para Dutourd era a Razão. Era o conhecimento, e a sua utilização, por força da Razão adquirida.

Mas se dermos agora um salto até o século XVIII, dos Enciclopedistas, dos Iluministas, dos cultores da Razão a todo o custo, poderemos destacar um outro pensamento.

Se com um certo racionalismo materialista se tenta erguer uma utopia que sirva os tempos modernos, logo e em simultâneo se pressente um vazio que a utopia não preenche, e que tem mais a ver com a morte da alma, o feminino no homem, a Eva, que Yahvé-Deus percebeu que tinha de ser criada para que a sua obra, no homem, ficasse de facto completa.

O par homem-mulher seria, na ordem natural, aquela complementaridade dos opostos que desde o início, luz e trevas, dia e noite, e mesmo nas múltiplas espécies do céu e da terra se tinha verificado.

Esta é a Árvore da criação, a Árvore verdadeira da Via que Deus já abrigava em Si mesmo.

Proclamar o império da Razão, opondo-o em absoluto à Emoção, veio criar um desequilíbrio insustentável, como se verificou em vários momentos da história da humanidade.

Encontramos um dos mais belos exemplos no Fausto de Goethe, quando precisamente ele se refere às suas duas almas, numa resposta a Wagner, seu discípulo:

“Não conheces mais que uma aspiração,
Da outra melhor é nada saber!
Duas almas tenho em meu coração,
Uma da outra a querer separar-se:
Uma apega-se, em paixão rasteira,
Com todos os seus órgãos à matéria;
A outra quer erguer-se da poeira
E subir ao reino da sua origem etérea.
Oh, se existem espíritos do ar
Que entre a Terra e o Céu têm assento
Que se dignem da nuvem de ouro descer
Para me dar nova vida e novo alento!”

(trad. João Barrento, vvs.1110-1121)

 

Duas almas batem em contradição no peito do herói.

O apego à matéria, paixão rasteira, será esse o mal que Mefisto decide aproveitar, como é dito no Prólogo no Céu, no diálogo tão desafiante de uma aposta com Deus?

Ou estará já o mal perversamente implícito na segunda paixão, dita de origem etérea?

Não são Deus e Diabo tão fraternalmente aproximados, neste Prólogo, cheio de indicações para um leitor atento?

A aventura de Fausto com Mefisto resulta de uma aposta, feita no mundo da perfeição etérea, entre Deus e o Diabo.

Que na verdade, no fim, o Diabo perderá, mas por razões que não se prendem de facto com escolhas religiosas, e sim com um novo conceito de serviço ao outro, e de consciência moral.

Nesta obra de Goethe discute-se, sem o dizer claramente, o que é ou não é o mal, o que é ou não é concedido ao ser humano, enquanto tal, enquanto criatura de Deus, que tem o seu limite, e o deve reconhecer, e aceitar plenamente.

É-lhe concedida uma vida, que terá de viver, para si e para os outros: é no fim da vida, na segunda parte da tragédia, e só quando já velho e cego se entrega à ideia de transformar um pântano numa terra fértil para o livre aproveitamento dos outros, por via do trabalho honesto e não da magia enganadora, que Fausto justifica a sua salvação, escapando às garras do demónio.

Pelo caminho pecou? Sim. Mas do seu mal se redimiu – ideia muito cara a Goethe, no seu entendimento do que é a natureza humana: imperfeita, mas como Deus explicou no Prólogo no Céu, e os Anjos repetem no fecho da tragédia, levando a substância da alma de Fausto para as mais altas esferas, “aquele que sempre se esforça merece a salvação”. Não se anula o pecado mas sublima-se, como na Obra alquímica.

A ideia de serviço do outro, nascida de uma Ética que no século XVIII estará muito presente (no ideário maçónico) e mais ainda no século XIX, com Kant e Nietzsche, sobrepõe-se à ideia de pecado original, de pecado mortal, de condenação perpétua no sentido em que o cristianismo inicial o definiu.

A eternidade é redimida, por assim dizer, de si própria, ao ser redimida a ideia de um mal originário, (como a serpente do jardim do Éden) criado e perpetuado no seu seio.

Podemos ver, no Prólogo no Céu, a bonomia com que Deus permite que os seus Anjos deixem Mefistófeles vir conversar com ele, criando-se como que uma dupla realidade de contacto perfeito entre o superior e o inferior, ou melhor ainda, como se naquele momento da aposta sobre o homem (o Adão primordial) Deus e Diabo fossem afinal dois ramos da mesma árvore, a do conhecimento do Bem e do Mal. E como recorda São Clemente, a vida humana está na realidade a ser regida pelas duas mãos de um Deus que ora se serve de uma ora de outra, sendo que ambas formam o seu Todo…

Para conclusão do que se tem vindo a dizer, ficam as exclamações justificativas dos Anjos, no final da tragédia:

“Anjos (voando na atmosfera mais elevada e transportando a alma de Fausto)
Das garras do mal elevamos
Est’alma a nobre esfera,
Pois só àquele redenção damos
Que em esforço persevera.”

(trad. João Barrento, vvs.11934-11937)

 

Não será por acaso que Nietzsche escreve Para Além do Bem e do Mal (1886) e a seguir A Genealogia da Moral (1887) e finalmente O Anticristo (1888), entre outros ensaios de grande alcance na negação de uma religião e de uma cultura cristãs. O olhar sobre o mundo tinha mudado, nos grandes pensadores. Os conceitos de Bem e de Mal estavam a relativizar-se, e em breve se veriam as suas consequências.

Morto Deus, que o filósofo matara em Assim falou Zarathoustra (1883-1885) o que é pedido ao homem, expulso de um Éden que deixou de existir, é que seja o primeiro e último responsável pelos seus  actos. O homem que fala do alto da montanha é um superhomem, um criador de si mesmo, capaz de recriar o mundo à sua volta, à sua imagem, como o antigo Deus, agora destronado.

Outros deuses viriam, dos bárbaros do Norte, mais duros e cruéis.

Voltaria a ser urgente discutir a Origem do Mal, (como Nietzsche fez para a Origem da Tragédia, em verdade, para traduzir à letra O Nascimento da Tragédia, 1872 ) desde logo nas óperas de Wagner, que Hitler tanto apreciou.

No Génesis é a curiosidade de saber o que havia no fruto da árvore, o que seria conhecer o bem e o mal, revelando alguma inocência (que se perde) nos nossos primeiros pais.

A curiosidade de saber é o primeiro motivo.

Mas fica uma interrogação: saberia, o próprio Criador, naquele momento, o que o acto de criar provocaria? Não se arrependeu Ele tantas vezes a seguir dos seus actos? E sempre com um ímpeto feroz de castigar o que dele mesmo teria de facto emanado?

Já com Nietzsche o problema é muito diferente: descortina na alma humana, por via do seu estudo dos mitos e da tragédia grega, (que na história da Patrística vemos, no século III, um Tertuliano condenar firmemente) as pulsões dionisíacas, violentas e irracionais, que conduzem o homem, ser criado, a violar as normas, dos deuses e dos próprios seres que os rodeiam, tão humanos quanto eles.

Contudo o mistério permanece, na esfera de uma cristandade mística, como a dos seguidores de Boehme, e seus discípulos ingleses, para não falar de toda a sequência dos movimentos pietistas, alquímicos, rosa-cruz, na Alemanha, a par do ideário maçónico em pleno desenvolvimento, e de que Lessing será um dos grandes promotores.

Deixando agora de lado o pensamento filosófico inerente a estas matéria tão sensíveis, penso que será igualmente inspirador procurar na poesia, num grande poeta como Blake, não a chave, mas o espanto, perante a existência do mal num mundo que devia ter sido criado perfeito…

Blake, já antes, no célebre poema The Tyger, de 1794, (Songs of Innocence and of Experience) encontrara na imagem do tigre uma figuração perfeita do mistério do mal. Refere a temível simetria, interrogando-se sobre a mão imortal, ou o olhar, que o possa ter criado assim, com os seus olhos de fogo ardendo em que trevas ou em que céus, ou quem, se interroga ainda o poeta, lhe torceu os nervos do coração, lhe acorrentou o cérebro forjando nele o terror?

Tão inspirado e misterioso é o poema, que no fim interpela o Criador: pois como foi possível que da mesma mão tenham saído o tigre, essência da malvadez e o cordeiro, figuração da pureza absoluta?

O poeta não dá resposta, deixa o mistério em aberto, deixa o leitor em suspenso.

E da dificuldade do dizer este mal, o mal absoluto forjado numa treva onde arde assustadoramente, dão testemunho as traduções, já numerosas, que se podem encontrar e em que a dificuldade de fazer corresponder ritmo e imagem estão sempre presentes, das mais fiéis à literalidade às mais compostas e recompostas nos ritmos e nas rimas. Escolho, para nossa leitura final, a de Ivo Barroso, que está on line, com uma ou outra discreta alteração minha, que coloco em itálico:

Tigre! Tigre! tocha ardente
Na selva da noite acesa,
Que mão ou olho imortal
Traçou tua simetria?

Em que abismos ou que céus
O fogo ardeu dos olhos teus?
Em que asa se inspira a trama
Da mão que te deu tal chama?

Que artes ou forças tamanhas
Torceram tuas entranhas?
E ao bater teu coração,
Que pés de horror, de horror a mão?

Que malho foi? Que corrente
De teu cérebro o tormento?
Que bigorna? Que tenazes
No terror mortal que trazes?

Quando os astros dispararam
Seus raios e os céus choraram,
Riu-se ao ver a sua obra quem
Fez o cordeiro e a ti também?

Tigre! Tigre! tocha ardente
Na selva da noite acesa,
Que mão ou olho imortal
Se atreveu à temível simetria?

(in Barroso, Ivo “O Tigre”, digital 2010,
in: Gaveta do Ivo)

 

O Tigre de Blake será sempre um desafio para o nosso entendimento, como em muitas passagens do Antigo Testamento será desafiante o comportamento de um Deus-Supremo criador para com as suas criaturas que, dizendo amar, muito persegue, muito condena e castiga, ora com aparente razão, ora sem razão nenhuma.

Pois não foi a Serpente, a tentadora do Éden, também sua criatura? Saída da sua mão?

O mal, em Fernando Pessoa, para nos aproximaramos agora de uma das nossa maiores vozes, é discutido nos fragmentos do seu Fausto mais como interrogação de uma consciência angustiada, do que como raiz fundadora, semente cósmica ineludível, e estruturante do negro num Eu primordial.

Como no poema de Álvaro de Campos, de 1935, em que afirmando se interroga um “eu” já sobejamente interrogado, desde 1913, pelo menos. Mas vê-se que, até ao fim da vida, a resposta não existiu, com a clareza desejada.

Eu, eu mesmo…
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. –
Eu…
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças…
Que crianças não sei…
Eu…
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei…
Eu…
Tive um passado? Sem dúvida…
Tenho um presente? Sem dúvida…
Terei futuro? Sem dúvida…
A vida que pare de aqui a pouco…
Mas eu, eu…
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu…

 

Pessoa tinha na sua biblioteca o Fausto de Goethe, como tinha também a obra de William Blake. O seu Fausto, que ficou em fragmentos, em tentativas de diálogo com o seu Mestre Goethe, revela maior simpatia pelo Diabo, o que não admira, Mefisto é também, na obra goetheana, o espírito que age, faz mover o mundo e a criação que o habita, com pleno consentimento de Deus.

Pessoa, racionalista, centrado acima de tudo na consciência plena do não saber, querendo embora saber, só do Diabo se poderia ter aproximado.

A existência de uma tal figura, e da sua intervenção na alma, numa das almas do herói, conduzindo-a para caminhos ainda não percorridos, do sentimento, da emoção perturbada – só poderiam perturbar também o nosso poeta. Perante cada caminho a paragem, a hesitação, a perplexidade que se interroga.

Eis como Pessoa apresenta o seu Diabo:

Eu sou, de facto, o Diabo.
Dato do princípio do mundo.
A música, o luar e os sonhos
são as minhas armas mágicas.
Mas por música não deve entender-se
só aquela que se toca,
senão também aquela que fica por tocar.
Por luar, ainda, não se deve supôr
que se fala só do que vem da lua
e faz das árvores grandes perfis;
Há outro luar,
que o mesmo sol não exclui,
e obscurece em pleno dia
o que as coisas fingem ser.
Só os sonhos são sempre o que são.

(p.27, ed.Teresa Sobral Cunha)

 

Desde logo Pessoa afasta o conhecimento real colocando em seu lugar o fingimento e o sonho, numa realidade que afinal não o é, mesmo numa definição de um Diabo primordial.

Adiante, em diálogo com Maria ( o contraponto da Gretchen de Goethe), dirá que é “a Serpente / desde o princípio do mundo”, e ainda : “sou aquele que sempre procurou/ e nunca poderá achar” (p.32), assemelhando-se mais a Fausto do que a Mefisto, ou melhor projectando-se enquanto Pessoa-ele mesmo nesta figura que se torna cada vez mais ambígua, e daí que o poeta nunca tenha conseguido alcançar a verosimilhança que Goethe alcançou na sua tragédia. Pessoa mistura consigo mesmo o Diabo e o Fausto que seria principal herói, e vai-se perdendo a perspectiva, o sentido, a diferença.

Por isso nunca os fragmentos ultrapassaram a sua condição de incompletude.Quando exclama, em lamento:

Cansado, principalmente cansado.
Cansado de astros e de leis,
e um pouco com vontade de fugir
para fora do universo.
Aqui não há vácuo nem sem-razão.
Sou o negativo absoluto, a encarnação do nada.

(p.33)

 

A primeira estrofe é própria do Fausto goetheano, que de início deseja suicidar-se, mas o verso da negação absoluta já é de um Mefisto lido, e integrado. Mas a negação ainda não é o que coloca de verdade a questão do bem e do mal, no misterioso e indecifrável universo.

A grande preocupação em Pessoa/Fausto é aquela que o acompanhará pela vida fora, e em todos os heterónimos:

a consciência de existir, tormento
primeiro e último do raciocínio,
a consciência de existir me esmaga
com todo o seu mistério e a sua força.

(p.51)

 

Se entendermos que no homem este tormento de existir é uma figuração do mal, de um Mal ineludível e absoluto, então esta será a definição, ou a perplexidade abissal do nosso poeta, que procura respostas que não encontrará: o Pai Rosea-Cruz permanece em silêncio, como se lê num dos poemas herméticos: conhece e cala.

O silêncio conduz-me agora a outro grande poeta, Paul Celan, um sobrevivente do Holocausto, cuja obra é feita de uma dolorosa e permanente interpelação ao Deus dos Povos, o Jeová que os abandonou à maior das misérias, da destruição e morte.

Morte pulverizada, sem campa, sem corpo que se pudesse honrar.

Como Job no Antigo Testamento, Celan interroga, e tem dificuldade em aceitar.

Descreve, rememora, e pelo meio do seu verso perpassa uma acusação. Aos algozes, mas também ao Deus que o abandonou.

Celan interessou-se pela obra de Pessoa, e chegou a traduzir poemas seus.

Teriam em comum o prazer da palavra, da invenção e do corte modernista interrompendo a tradição usual.

Mas se Pessoa se mantém firme e longe, na sua exigência racional, em Celan a entrega a uma dôr mais funda, que a Razão não explica, nem nunca explicará, afasta os poetas e a sua prática, apesar de eu os tentar pôr aqui quase que lado a aldo.

Não estão juntos, estão de costas viradas, um em busca de um mistério de grande marca ocultista, outro, de modo mais sentido, em busca da razão de um Mal que contagiou o mundo durante a Segunda Guerra.

Deus a nenhum responde…

Escolho da nossa antologia Sete Rosas Mais Tarde (João Barrento/Yvette Centeno, ed.Cotovia, 1993) um dos poemas que já analisei outrora, em Literatura e Alquimia , e pertencem ao ciclo de A cerca do Tempo (Zeitgehoeft) , junto com outros em que é clara a distinção entre Pessoa e Celan: um centrado em si mesmo, na sua autoconsciência angustiada de tão certeira (só a ceifeira naif poderá ser feliz, na esfera da sua ignorância), outro projectando a sua interrogação para “as veias cortadas do seu conhecimento”, pois como diz nos seus versos, está “para além de si”, na “via de esmeralda” no “buraco de larva”, no “Sem-fundo”.

Este Sem-fundo, este Ungrund, fecha o círculo que em Boehme se tinha aberto, a propósito da criação do universo e da existência do Negro, do Mal absoluto que já referi atrás.

Mas vale a pena ler alguns destes poemas, no seu encadeamento:

Estás para além

de ti,

para além de ti
está o teu destino,

de olhos brancos, fugido
a um cântico, algo se aproxima dele,
que ajuda
a arrancar a língua,
também ao meio-dia, lá fora.

(p.175)

 

Um destino que alguém comanda de longe, que não se controla, apenas se descreve pela palavra que o diz, até que também a língua lhe seja retirada.

Este Além já não é o “do lado de lá” de Pessoa ou Caeiro, sempre conscientes da separação dos dois estados de ser, em cada um dos momentos.

Este Além de Celan é o o distante espaço que se projecta na Via de Esmeralda, o Sem-fundo em que serão talvez recolhidas as cinzas dos que voaram, como pássaros feridos, pelas chaminés dos campos de horror.

Continuando:

Projectado

na via de esmeralda,

buraco de larva, buraco de estrela, com todas
as quilhas
procuro-te,
Sem-fundo.

(p.175)

 

Escolhi, para a tradução, a palavra buraco ( no dicionário há variantes, como esconderijo) porque este Sem-fundo do verso final nos sugere a matéria negra, o buraco negro que absorve toda a energia, toda a matéria, toda a luz que implode no universo.

É o negro abismal, de poetas e alquimistas, de onde pode, ou não, surgir a transformação da matéria da alma, desejada.

No início dos tempos, dele fez Deus surgir a luz, com o seu fiat lux. E a seguir a ordenada criação, até ao par primordial, andrógino, ainda no Génesis 1.

Este Abismo, que Boehme descreveu como tal, não é matéria infinita, mas tem o seu limite na própria limitação do Deus que o criou: daí que o Mal se explique pela própria finitude (que é forma de imperfeição). Um mal traduzido em perseguição e sofrimento, barbaridade arbitrária e sem nome, que nunca se poderá justificar.

Como observa Alexandre Koyré, o Ungrund boehmeano não é a causa última nem primeira do mundo e nem sequer a sua própria causa. É o Absoluto, sem mais:

“É o fundo eternamente fecundo da Vida e do Absoluto, o germe absoluto que, enquanto germe, não é ainda, e não é ainda nada, mas que conté, dentro de si o tudo que irá ser” (p.321-323).

No sem-fundo, onde germina a busca (Sucht) tem origem a palavra, o Verbo da luz primordial. Diz Boehme:

“Assim entendemos que o Ser divino habita em si mesmo, gerando uma base para si mesmo; a saber, a eterna palavra ou eterno coração que é o centro e o termo do repouso na divindade” (in Jacob Boehme, Cahiers de l’Hérmetisme, Paris 1977, p.189).

Celan, “com todas as quilhas” como no Bateau Ivre de Rimbaud, procura desesperadamente, esse tal centro, o tal repouso, que nunca encontrará.

De Boehme, Kabalista e teósofo a seu modo, nos chega a imagem de um Verbo eternamente falante (in Mysterium Magnum, Saemtlichen Schriften,vol.7, cap. 2, 8 ), na manifestação do universo criado.

Mas em Celan o que verificamos é a implosão anuladora da vida.

Se Pessoa, entre o sono e o sonho, se desmultiplica em várias formas, cada qual com uma voz que se afirma, e declara existir, Celan, ainda que sonhando, o que faz é morrer à sombra da linguagem:

Todas as formas do sono, cristalinas,

que assumiste
na sombra da linguagem,

a elas
conduzo eu o meu sangue,

os versos de imagens, a esses
vou albergá-los
nas veias cortadas
do meu conhecimento –

o meu luto, bem vejo,
corre para ti.

(p.176-77)

 

Afinal não há salvação no Verbo, todas as formas de linguagem são uma forma de lamento e de luto, este negro da alma não é transformador, não é ouro salvífico, a Jerusalém desejada não existe:

O nada, a bem
do nosso nome
– eles vão-nos juntando -,
apõe o seu selo,

o fim faz-nos crer
no princípio,

perante os mestres
que nos envolvem no silêncio,
no indiviso, dá testemunho
a hirta
claridade.

(p.182)

 

Deus é o “infinito destruidor do sempre”, com esta convicção se atira Celan ao rio Sena, pondo fim à sua dôr imensa.

No ciclo de A Rosa de Ninguém, o último poema que escolhemos para a tradução (p.117) aborda o Mal de modo mais directo, utilizando a imagem de “demoníacos degraus”, a evitar, no poema, mas que de facto foram subidos e descidos ao longo das vidas que se iam perdendo, mesmo quando, como a do poeta, aparentemente salvas:

Para onde me caiu a palavra, a imortal:
para o desfiladeiro celeste atrás da fronte,
para aí vai, guiado por baba e lixo,
o sete-estrelo que comigo vive.

As rimas na casa da noite, na lama o sopro vital,
o olhar um escravo das imagens –
E apesar disso: um íntegro silêncio, uma pedra
que evita os demoníacos degraus.

(p.117)

 

Pedra que evoca uma passagem do Antigo Testamento: aquela em que Jacob pousa a cabeça, e lhe concede sono e sonho:

“Eis que uma escada se erguia sobre a terra e o seu topo atingia o céu, e anjos de Deus subiam e desciampor ela! Eis que Yahvé estava de pé diante dele e lhe disse: ‘ Eu sou Yahvé, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaac. A terra sobre a qual dormiste, eu a dou a ti e à tua descendência. Tua descendência se tornará numerosa como a poeira do solo; estender-te-ás para o ocidente e o oriente, para o norte e o sul, e todos os clãs da terra serão abençoados por ti e por tua descendência. Eu estou contigo e te guardarei em todo o lugar aonde fores, e te reconduzirei a esta terra, porque não te abandonarei enquanto não tiver realizado o que te prometi. Jacob acordou do seu sonho e disse: ‘Na verdade Yahvé está neste lugar e eu não o sabia! Teve medo e disse: ‘Este lugar é terrivel! Não é nada menos que uma casa de Deus e a porta do céu!’. Levantando-se de madrugada, tomou a pedra que lhe servira de travesseiro, ergueu-a como uma estela e derramou óleo sobre o seu topo. A este lugar deu o nome de Betel, mas anteriormente a cidade se chamava Luza” (Génesis, 28).

Yahvé-Deus teve aqui que se apresentar, um Deus ainda entre outros, e Jacob será exigente antes de o aceitar como seu, e único:

“Jacob fez este voto: ‘ Se Deus estiver comigo e me guardar no caminho por onde eu fôr, se me der pão para comer e roupas para me vestir, se eu voltar são e salvo para casa de meu pai, então Yahvé será meu Deus e esta pedra que ergui como uma estrela será uma casa de Deus, e de tudo o que me deres eu te pagarei fielmente o dízimo “.

Tal é a lição que na Bíblia Celan foi encontrar e evoca no seu poema, mas é  tão grande o abandono, um sonho cheio de promessas não cumpridas, com o que se escondia de demoníaco nos degraus, na pedra do caminho, erguida em estrela para um Deus a quem fora prometido o dízimo mas apenas se ele também fizesse a sua parte…

Adiante, em Génesis 32, este Deus tão primitivo e tão paradoxal, que tantas vezes se lamentará por não ser respeitado – um quase humano – surge a lutar com Jacob:

Jacob ajuda a família a atravessar um vau, e fica só.

Estranho Deus, descrito como “alguém”, que faz da luta com Jacob um ritual de iniciação para lhe mudar o nome, que passa a ser Israel (um povo, um colectivo, abençoado no fim). Jacob conclui que lutou contra Deus.

Mas é um Deus que não se nomeou…

A questão do nome, e do nomear, é vital em Paul Celan.

Um não-nomeado não existe.

A criação surgiu, nome após nome, a começar pela luz emanada das trevas que pairavam sobre o negro e informe abismo.

Interpelando o abismo, o não-nomeado ainda, Celan escreve, verso após verso, em busca do tal Alguém que lutara outrora, de noite, com um Jacob que viria a ser abençoado.

Mas tinham mudado os tempos, a hora virara do avesso as bênçãos que ainda sobravam, escondidas nos ponteiros dos relógios. Faziam falta os nomes, como estrelas, nomes que levassem ao centro as energias agora pulverizadas:

Errático

Gravavam-se as tardes por
baixo dos teus olhos. Sílabas re-
colhidas pelos lábios – belo
círculo silencioso –
ajudam a estrela rastejante
no seu centro. A pedra,
outrora perto das têmporas, abre-se aqui:

assististe
à explosão de todos
os sóis, alma,
no éter.

(p.109)

 

Desde o tempo da pedra em que Jacob repousou a cabeça, até esta pedra estelar que em Celan se refere, um turbilhão voraz de sóis aconteceu.

E Deus não estava lá, não viu as cinzas das almas espalhadas pelo éter.

Onde poderia residir o Mal?

No coração do silêncio, no olhar desviado e na sofrida ausência, no Vazio.

Para terminar, um último poema:

Já não é

esta pesadumbre
por vezes afundada
contigo na hora.
É uma outra.

É o peso que detém o vazio
que te
acompanharia.

Como tu, não tem nome. Talvez
sejais um e o mesmo. Talvez
um dia também tu me chames
assim.

(p.109)

 

  • La Bible de Jerusalem (trad francesa, Éditions du Cerf, 1955)
  • Jean Dutourd, Le Septième Jour,récits des temps bibliques, (ed. Flammarion, 1995)
  • Frederico Lourenço, O Livro Aberto, leituras da Bíblia (ed. Cotovia, 2015)
  • Jacob Boehme, De signatura rerum, oder von der Geburt und Bezeichnung aller Wesen, 1622 (in J.B.Saemtliche Schriften, Frommanns Verlag Stuttgart, 1957)
  • Johann Wolfgang Goethe, Fausto (ed. Círculo de Leitores, 1999)
  • Carl Gustav Jung, Reponse a Job ( ed. Buchet-Castel, 1977)
  • William Blake, Songs of Innocence and of Experience, ( in the William Blake Archive)
  • Immanuel Kant, Crítica da Razão Prática, (ed.70, 2008)
  • Friederich Nietzsche, (in Saemtliche Werke, ed. Kroener, 1964 e segs.)
  • Gustav Meyrink, Der Golem, (ed. Kurt Wolff, 1916)
  • Alexandre Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, (ed. Vrin, 1971)
  • K. Centeno,
    • A Alquimia e o Fausto de Goethe (ed. Arcádia, 1983)
    • Literatura e Alquimia ( ed.Presença, 1987)
    • Trad. Lessing, Nathan o Sábio, (ed. Fundação Gulbenkian, 2016)
  • Teresa Sobral Cunha, Fausto, Fernando Pessoa, (ed. Relógio D’Água, 1994)
  • Paul Celan, Sete Rosas Mais  Tarde ( trad. João Barrento/Yvette K. Centeno, ed. Cotovia, 1993, 2ª ed.1996)
  • Bíblia de Jerusalém, ed.Paulinas, 1991

 

II

O mal na tragédia grega

Escolho esta matéria, antiga, anterior à reflexão que o espírito cristão ocidental impõe, por várias razões: a nossa cultura continua a ter as marcas dos antigos mitos, são eles que fazem o nascimento da tragédia tal como era celebrada outrora e recuperada hoje, nas várias formas do agora, do texto lido à ópera que nasce no século XV com o Orfeu de Monteverdi, e as encenações que pela mão de génios criadores como um Jean-Pierre Ponnelle, (1932-1988), Patrice Chéreaux (1944-2013) Peter Stein (1937 – ) entre outros, se vão sucedendo. Em todos se verifica a atracção e o desejo de reler, revendo, o que a matéria grega nos trazia agora, de ainda original, universal, eterno, ao nosso tempo.

Para mim é aqui que entra de novo a reflexão sobre o mal: a sua origem, causa e efeito, e pondo de parte, por enquanto, a visão dionisíaca de um Nietzsche, ou a conhecida definição de Aristóteles ( a necessária catársis, depuradora, no fim) trazer à discussão a questão da Justiça.

Antígona foi a primeira peça que li.

Na tragédia grega como surge e de onde, a mancha, o pecado original que tudo vai condicionar no destino dos heróis? Há também, desde o início, um crime de desobediência ? E qual?

Vejamos a Antígona, de Sófocles, o primeiro dos grandes dramaturgos, ainda próximo dos pensadores pré-socráticos, daí que nas suas peças os conceitos, mais do que a intensidade das situações dramáticas como em Eurípides (daí que para Nietzsche seja ele o melhor dos criadores, o verdadeiro fundador do nascimento da tragédia) , os conceitos, digo, sejam o móbil da acção que se vai desenrolar diante de nós. Platão, na sua República, procura descrever o ideal da cidade justa. Tem uma clara noção, que expõe, do que seria a justiça na organização dessa república .

O poeta, o inquietador de almas, o criador na sua liberdade não tem aí lugar. É expulso, se se manifestar. Esta cidade quer ordem, quer o sossego da paz. Um adormecimento, enquanto os Sábios governam, decidem o que é bom e o que é mau, sem interferências que perturbem.

São filósofos, é claro, estes sábios que ele aqui nos apresenta. Terão na alma o amor da sabedoria, mas terão a sabedoria? Só expulsando os poetas a sabedoria é possível?

E onde não há liberdade pode haver a justiça apregoada?

Por que razão, em Antígona, a justiça parece ter falhado e dado origem à tragédia que a levará à morte?

 


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