Estas representações sustentam-se em pressupostos antropológicos divergentes. De um lado, reconhecemos a concepção aristotélica do homem como ser social e da polis como lugar por excelência para o desenvolvimento da natureza humana e para a realização da liberdade; do outro, identificamos o homem como centrado apenas nos seus interesses e lutando pela sobrevivência e segurança, sendo o espaço público entendido como limitação recíproca da liberdade privada.
Neste contexto, a legitimidade das comunidades politicamente organizadas decorre do interesse dos sujeitos pela sua auto-preservação e a acção social é entendida sob um pano de fundo que é a luta pela conservação física e defesa de interesses privados, nomeadamente a manutenção da vida e da propriedade. Deste modo, o outro surge como hostil e rival, a ameaça em relação à qual é necessário conceber formas de defesa.
Das profundas transformações das estruturas sociais e da formação do Estado, características do início da modernidade surgirá o questionamento da doutrina política clássica e a introdução de novas categorias, por exemplo, a de contrato.
O contrato
Este conceito traduz uma nova forma de entender as relações humanas e, por consequência a constituição e a legitimação da ordem social e política. É bem significativo o pensamento de Hobbes que, no Leviatán irá descrever a situação fictícia do estado de natureza, onde prevalece a guerra de todos contra todos, justificando-se a instituição da sociedade politicamente organizada com base no acordo estabelecido entre todos com vista a garantir a segurança individual. O Estado surge, assim, como forma racional de cada um defender os seus interesses e assegurar a preservação da vida e da propriedade através do pacto que mutuamente se estabelece numa lógica cujas motivações são de carácter egoísta e defensivo.
O indivíduo como princípio supremo e a ideia de pacto e de contrato serão determinantes em todo o pensamento moderno. Mas, esta não é, contudo, uma linha de pensamento exclusiva. Coabita com propostas que tentam articular a ideia moderna de liberdade com a noção clássica de comunidade política e, neste sentido, mostrar que a vida em sociedade não é apenas pautada por uma racionalidade estratégica e instrumental mas que existem outros elementos nas relações humanas para além dos que são inerentes à desconfiança contratual e ao binómio meu/teu.
Situando-se na tradição do direito natural, estas orientações do pensamento filosófico retomam a ideia de polis e tentam, de algum modo, garantir para a justificação dos mecanismos da vida em sociedade um fundamento moral diferente do medo. Assim, à valorização do individualismo e de uma perspectiva social atomista contrapõe-se a ideia de que a vida pública tem um carácter intersubjectivo, baseado na dimensão comunitária inerente ao ser humano.
O reconhecimento
Relativamente a esta questão, destaca o filósofo P. Ricoeur: “O problema colocado a Hobbes e a todos os seus sucessores é o de saber se haverá um fundamento moral distinto do medo, um fundamento moral acerca do qual se possa dizer que concede dimensão humana ao grande empreendimento político. O jovem Hegel situa-se nesta linha (…)” [1]
É também Ricoeur que ao lembrar a necessidade de dar cidadania filosófica ao conceito de reconhecimento, mostra como a ideia de luta é retomada a partir de Hegel mas entendida agora não no sentido hobbesiano mas como luta por reconhecimento, expressão da tensão interior e conflitual que constitui toda a realidade social e que permite a passagem para níveis mais avançados nas relações éticas.
Também outro filósofo contemporâneo, Axel Honneth, tematiza a relação com o outro a partir da noção de reconhecimento. O reconhecimento recíproco é o processo estruturante da consciência de si e núcleo da vida social: o outro deixa de ser ameaça para se tornar condição de possibilidade de uma ordem humana, desde a família à sociedade política.
[1] RICOEUR, Paul, La lutte pour la reconnaissance et l´économie du don
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