Em 2000 escrevi o argumento para um filme que teria como título Portugal SA. Realizado por Ruy Guerra e com Diogo Infante e Cristina Câmara nos principais papéis, mas também Henrique Viana, Ana Bustorff, Maria do Céu Guerra, Laura Soveral. Entre outros. O enredo: Jacinto Pereira Lopes era administrador de um importante grupo económico-financeiro português, recentemente privatizado a favor de Alexandre Boaventura, um homem poderoso e sem escrúpulos que regressa a Portugal depois de um longo exílio no Brasil, no pós-25 de Abril. Jacinto pertencera a um grupo de brilhantes jovens universitários, dos quais um é actualmente ministro e outro um destacado político da oposição, ambos com interesses nas actividades económicas de Boaventura. Este grupo de amigos cresceu sob a orientação espiritual do padre Francisco (Luís Madureira), um homem maquiavélico que continua a manipular e interferir nas suas carreiras e nas suas vidas privadas, inclusivamente promovendo o casamento de Jacinto com Rosa, uma mulher ambiciosa, cocainómana e ninfomaníaca. Mas o verdadeiro amor de Jacinto é uma outra colega, Fátima, uma mulher bela e intelectualmente brilhante, que entretanto regressa a Portugal para tentar salvar a corretora do falecido pai. Jacinto, dividido entre deveres de lealdade, amizade e amor, tenta resistir à sedução de Fátima e às pressões dos antigos colegas até que, farto de ser usado e traído por todos, decide tomar o destino nas suas próprias mãos e transforma-se num homem ambicioso e disposto a tudo.
Eram, então, os anos das privatizações, do retorno das empresas aos seus antigos proprietários (Champalimauds e Espirito Santo, por exemplo), à velha ordem do capitalismo pós 25 de novembro. O Estado não tinha vocação de empresário! O privado era belo. Portugal era uma sociedade anónima, uma SA. Banqueiros e industriais do lucro fácil medraram como cogumelos em estrumeira.
O resultado viu-se: a crise de 2008 mostrou os podres do cavername em que assentava o neoliberalismo. Em vez da Carregueira, estão hoje na Praça do Comércio as estátuas e as efígies dos empreendedores de então, a administração do BPN, do BPP, do BANIF, do BES, estão a EDP, a PT, os portos e aeroportos, as auto-estradas e pontes, os correios, a TAP, as televisões e, segundo, me dizem até um grupo de forcados é propriedade de uma marca de gelados. O Benfica joga por conta de uma companhia aérea de profetas. Os incêndios estavam por conta das companhias de aluguer de “meios aéreos”, como dizem os caras larocas das tvs.
Parecia – e eu preocupei-me, enquanto ficcionista – que nada mais havia a vender do Portugal SA. Nem monos. Até o sub-solo foi privatizado para parques de estacionamento e passagem de fibras ópticas – pagamos imposto de lixo e de uso subterrâneo. Quando se exibe um tipo como o Bruno de Carvalho em horário nobre parecia ter-se acendido o sinal de que o Portugal SA havia chegado aos fundilhos.
Mas não. Portugal tinha mais destino do que ser uma falida SA. Havia mais a vender, a alugar, a empenhar, a peneirar? Pois havia! E há.
Depois de ter perdido o negócio da pimenta da Índia para ingleses e holandeses, de ter perdido o negócio do chá, do açúcar, dos transportes marítimos intercontinentais, da borracha e do algodão, finalmente, o português que os portugueses elegeram como a sua maior figura – Salazar – definiu o conteúdo do génio português: quem fica será agricultor pobre e quem parte será lusíada considerado na justa medida em que mandar notas dentro dos sobrescritos.
Os anos 60, vamos lá, o início dos anos 70, atiraram não só o corpo de Salazar da cadeira, mas as suas ideias. Os anos 60 e 70 desfizeram a cabeça de Salazar, literalmente. O AVC, ou o quer que seja, deu cabo dos fusíveis do pensamento rural do homem de Santa Comba e o turismo deu cabo da boa ordem da tribo que aqui vivia num amazónico isolamento.
Salazar percebeu o perigo e deu boa nota dele: O turismo é a prostituição de um povo! – proclamou, mas não se pode parar uma avalancha com as mãos. O António Ferro dobrou a espinha em hipócrita reverência, fez uma figa e começou a vender o típico Portugal aos estrangeiros: as sete saias das nazarenas, os forcados, o Fado, em filmes Ala Arriba e Sol e Toiros, mais tarde o Benfica. Fátima, sempre: Avé-Avé. O Algarve encheu-se de ingleses. A alma do povo passou ao postal ilustrado, a prostituição foi ilegalizada ao mesmo tempo que era proibida a mendicidade e o andar descalço nas cidades.
A afirmação dói. Mas é verdadeira. Salazar tinha razão: O turismo está para o sexo como a prostituição do tanto à hora, um, dois, ou três pratos, estão para as relações sexuais por mútuo prazer dentro do que é habitual designar por amor.
Fazer turismo, turismo de massas – vamos lá ver o que os indígenas têm, o que comem, como construíram as palhotas, as estradas, que deuses adoram, que templos lhes erigiram – assenta no mesmo princípio da prostituição: Olha filha, ou filho, despete-te e põe-te lá em posição que eu ainda te tiro uma foto!
O ponto alto deste novo negócio de prostituição – o must do momento – é o Alojamento Local. Portugal tornou-se um bairro de AL. Bruxelas e Amesterdão já tinham, mas com os estrangeiros e as estrangeiras nas montras. Em Portugal o AL substitui as antigas casas de matriculadas, mas sem vista para o exterior. As regras são, contudo, as mesmas. Têm de ir à inspecção, as casas, neste caso e não os e as hóspedes. Onde até há pouco existia uma maçaneta de porta, daquelas em forma de punha, existe agora uma tabuleta AL.
O Portugal AL é um Cais do Sodré e um Bairro Alto em versão gourmet. Portugal SA vende-se agora ao dia, com camas de roupa lavada.
Viver do turismo é viver do bom corpinho que a natureza nos deu (bom clima, peixe assim assado, um mar de boa temperatura, carteiristas debaixo de olho, uns chulecos e umas jovens de abertura fácil, um patuá de inglês) e cá estamos nós a oferecer Alojamento Local a remediados europeus que mudam de ares e de marca de cerveja.
O Portugal AL tem proxenetas, pois tem, as low cost, por exemplo. As câmaras municipais. É claro. E os tuk tuk conduzidos por universitários.
Andam por aí patrioteiros a esgrimir argumentos a favor e contra o serviço militar obrigatório, em nome de uma Pátria que só eles sabem qual é. Abençoados. A Pátria é AL. Alugam-se quartos, chambres, rooms e zimmers, ao dia e à semana.
Em vez de rangers, fuzileiros ou comandos, do que precisamos é de quem vá buscar ao aeroporto os futuros ocupantes dos AL. Em vez de condutores de tanques do necessitamos é de guias ao volante de tuk tuk, em vez de balas necessitamos de preservativos, em vez de cambalhotas e enrolamentos necessitamos de quem saiba fazer camas e sangrias!
Acredito que, por este caminho, até os jazigos dos cemitérios vão ser em AL. Temos que rentabilizar os espaços, é claro. Não há tempo a perder.
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