Ao apresentar sem provas a versão de que o servidor público Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi morto por militantes de esquerda, o presidente Jair Bolsonaro (PSL-RJ) escreveu mais um capítulo na longa lista das versões vagas e enganosas entregues por servidores da União à família Santa Cruz. Bolsonaro só inovou em um ponto: segundo os familiares, foi a primeira vez, em 45 anos de buscas, que ouviram falar num suposto “justiçamento” pela esquerda.
Fernando desapareceu em fevereiro de 1974, após ser preso por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, no Rio de Janeiro. Ele era pai do atual presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, na época um bebê de dois anos. A versão de Bolsonaro – que ele disse genericamente ter ouvido de pessoas cujos nomes não citou – contraria toda a série de documentos produzidos pela própria ditadura sobre Fernando.
Seu irmão, o advogado Marcelo, 75, disse ter ficado perplexo e indignado. “Nunca ouvimos falar nisso. Acredito que Bolsonaro esteja mentindo e tentando deturpar a verdade histórica”, disse. Nem o governo militar (1964-1985), especialmente interessado em demonizar a esquerda, alguma vez falou que Fernando – um dos mais de 200 nomes que constam das listas de desaparecidos políticos – foi morto por militantes esquerdistas.
O próprio ministro da Justiça do governo Ernesto Geisel (1974-1979), Armando Falcão (1919-2010), informou por escrito ao então ministro do SNI (Serviço Nacional de Informações), João Figueiredo (1918-1999), que Fernando se encontrava “na clandestinidade”. A carta é de março de 1975, um ano e um mês depois do desaparecimento. O aviso ministerial de Falcão integra um conjunto de 37 páginas, hoje sob a guarda do Arquivo Nacional, que documenta parte da peregrinação da família Santa Cruz.
Há três cartas desesperadas de sua mãe, Elzita Santos de Santa Cruz, endereçadas a Falcão, a Geisel e até à primeira-dama da época, Lucy Geisel (1917-2000). Elzita morreu em junho passado, aos 105 anos. “Esta carta é um grito de desespero de uma mãe, que há oito meses chora a perda de um filho e espera em vão uma solução para o seu angustioso problema. Já bati em todas as partes à espera de pelo menos uma notícia sobre o paradeiro de meu estimado filho”, escreveu em uma delas.
Em outra carta, dirigida ao ministro da Casa Civil Golbery do Couto e Silva (1911-1987), Elzita e a mãe de outro desaparecido e amigo de Fernando, Eduardo Collier Filho, Risoleta, revelaram que, dias após os desaparecimentos, o apartamento de Collier “foi invadido por elementos pertencentes aos órgãos de segurança”, que apreenderam “livros de cunho ideológico”. Para as mães, estava claro “que se tratava de uma diligência consequente da prisão política”.
Na mesma carta, as mães narraram momentos fundamentais das buscas. A partir de uma informação recebida pelas famílias, elas se dirigiram a uma unidade da repressão do Exército em São Paulo, o DOI, onde foram recebidas pelo carcereiro de plantão, apelidado de Marechal.
Depois de anotar os nomes dos amigos e fazer uma checagem de meia hora, Marechal, segundo as mães, retornou dizendo que ambos estavam presos ali, mas não poderiam receber visitas naquele momento, só no domingo seguinte. Elas disseram que ele informou o sobrenome “Oliveira” sem que elas o tivessem citado. Quando regressaram ao DOI na data marcada, um outro militar negou que os dois estivessem presos lá e disse que houve um “lamentável equívoco”.
Em outro episódio, em 29 de abril de 1974, um funcionário da Cruz Vermelha (CV) confirmou às mães que os dois estavam de fato detidos com o Exército. Em 13 de maio, porém, a CV informou que não conseguia mais contato com os presos. Os três episódios – a blitz na casa de Collier, a fala do carcereiro e a informação da CV – contrariam a versão de Bolsonaro de que Fernando foi morto por militantes de esquerda.
A informação de que ele e Collier morreram em poder do Estado ganharia ainda mais certeza em 2004, quando o ex-agente da repressão Marival Chaves declarou à revista IstoÉ que ambos foram mortos em meio a uma ampla operação de assassinatos e prisões deflagrada pela ditadura contra integrantes da AP (Ação Popular), na qual Fernando havia atuado nos anos 1960. Chaves disse que o Exército “se interessou pela AP no Nordeste” e, por isso, desencadeou uma operação nacional que prendeu mais de cem pessoas e “desapareceu” com pelo menos quatro.
Oito anos depois, no livro escrito pelo jornalista Marcelo Netto, Memórias de uma Guerra Suja (2012), o ex-delegado Cláudio Guerra disse que os corpos de Fernando, Collier e outros dez desaparecidos foram incinerados em fornos numa usina de açúcar de Campos de Goytacazes (RJ). Assim, a versão de um suposto “justiçamento” na AP é desacreditada por especialistas.
Conforme diversos registros documentais e testemunhais, são conhecidos apenas quatro atos do gênero na esquerda durante a ditadura. Três episódios ocorreram na organização ALN (Ação Libertadora Nacional) e um no PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), mas nenhum na AP, como lembra o jornalista Lucas Ferraz, que escreve um livro sobre “justiçamentos”. O tema também foi abordado em detalhes em um livro já clássico do historiador Jacob Gorender (1923-2013), Combate nas Trevas (1987), que nada fala sobre Fernando ter sido assassinado pela esquerda.
Nascido no Recife (PE), onde chegou a ser detido numa manifestação estudantil, Fernando deixou a AP no final dos anos 1960 e se juntou a uma dissidência chamada APML (Ação Popular Marxista Leninista). Nenhum documento escrito sobre ele pela própria ditadura o vincula a qualquer ato violento ou da esquerda armada contra o governo. Fernando não era processado quando desapareceu, aos 26 anos. Usava seu nome e sobrenome reais e era funcionário público de uma empresa de água e energia elétrica de São Paulo. Durante o carnaval de 1974, foi visitar seu amigo Collier, que morava no Rio. Segundo a família, ele desapareceu quando se dirigia ao encontro no bairro de Copacabana.
Em 7 de agosto do mesmo ano – data que completará 45 anos na próxima quarta-feira –, seus familiares conseguiram, por intermédio de dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016), uma audiência com o poderoso ministro Golbery, eminência parda do governo Geisel. Não houve nenhuma resposta sobre o paradeiro dos amigos. Meses depois, o ministro Falcão soltou uma nota à imprensa dizendo que eles estavam “na clandestinidade”.
Texto original em português do Brasil
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