Em Abril de 2022 publiquei no Jornal Tornado um artigo sobre a guerra não declarada que eclodira em finais de Fevereiro entre a Federação Russa e a Ucrânia com o lançamento pela primeira da denominada “operação militar especial”(i). Julgo que se justificará uma actualização da análise pois que apesar da mundialização, ao menos verbal, do conflito e do muito efectivo empenhamento da NATO e da União Europeia ao lado da Ucrânia e de toda a envolvente “geopolítica”, a circunstância de se tratar de um conflito entre dois nacionalismos continua a ser decisiva.
Na altura escrevi:
“Um outro tipo de dificuldades é colocado pela existência de populações de origem ou cultura russa fixadas nos territórios das outras republicas ex-soviéticas, o que nalguns casos corresponde às realidades anteriores à constituição da URSS em 1922…
Num computo geral a Federação Russa havia parecido até agora lidar com estas situações com prudência: instalou tropas na zona de Tiraspol onde se constituiu uma República da Transnistria que a Moldávia não reconhece, instalou tropas nas zonas da Abcásia e da Ossétia do Sul onde se criaram Repúblicas que a Geórgia não reconhece mas correspondem a entidades constitucionalmente preexistentes, que declararam a independência, reagiu aos ataques pós-2014 aos territórios das regiões russófonas de Lugansk e Donetsk que haviam declarado a sua constituição como Repúblicas Populares propondo que a Ucrânia introduzisse reformas na sua organização interna, em execução dos Acordos de Minsk de 2015… e, enfim, em nenhum destes casos se apontou para uma anexação …
No quadro que existia parece-me que seria defensável que a Federação Russa tivesse reconhecido as duas repúblicas proclamadas em 2014, prometendo-lhes assistência efectiva em caso de ataque das forças armadas ucranianas (que parecia anunciar-se) …Não seria o primeiro caso de reconhecimento da independência de um país em luta. Veja-se o caso da França e dos Estados Unidos, para não falar do caso mais recente do reconhecimento da independência da Guiné-Bissau proclamada em Madina do Boé.
No entanto o anúncio logo a seguir ao reconhecimento de que este envolvia necessariamente o restabelecimento das fronteiras das regiões transformadas em 2014 em republicas independentes prometia conflito, na medida em que obrigava a recuperar posições que nunca tinham estado sob controlo efectivo dos independentistas ou que haviam perdido alguns meses depois. Este conflito consumou-se com o lançamento da “acção militar especial” …
Há de qualquer forma alertas que têm de ser feitos: a circunstância de nas regiões “russófonas” residir muita gente que fala o russo ou que só fala o russo, não pode ser tomado como garantia de adesão às republicas independentistas, aliás a circunstância de a própria Republica Socialista Soviética da Ucrânia nunca ter dado abertura para uma estruturação de tipo federativo, faz como que não exista uma tradição de autogoverno desta – agora – minoria; por outro lado, e como hipótese teórica, ainda que por exemplo Odessa viesse a mudar de mãos uma sua desanexação seria inaceitável na medida em que privaria a Ucrânia de acesso ao Mar Negro.”
Fisionomia geral do conflito
As operações militares, as tentativas de negociação, na Bielorússia e na Turquia, o envolvimento da NATO e da U. E. e a recusa de continuação de negociações têm uma história que pode ser reconstituída mas que hoje tende a ser esquecida por uma comunicação social que em grande parte das suas peças parece, com boas intenções, considerar como sua uma missão de propaganda da “boa causa” e de execração dos maus, com conteúdos e procedimentos que só por si poderá ter interesse vir a analisar. Comparativamente, talvez estejamos menos informados do que estavam na altura sobre a guerra da Crimeia os personagens de Júlio Dinis em Uma Família Inglesa.(ii)
Há vários traços da situação presente que contribuem para tornar difícil a compreensão do que é noticiado:
- Os confrontos envolvem um largo recurso à aviação e à artilharia, incluindo-se por extensão os misseis e os drones; aparentemente o recurso a tropas de infantaria verificou-se em grande extensão apenas em Bakhmut com grande número de baixas por parte do exército ucraniano e dos mercenários do Grupo Wagner, que terá imposto esta prioridade em nome de um alegado potencial económico do local (e como pensava o dono do Wagner vir a beneficiar dele?) fazendo recordar os combates de Verdun durante a I Guerra Mundial;
- Os edifícios construídos sem finalidade militar são muitas vezes utilizados para início de operações, inclusive por parte do lado ucraniano, como constatou e teve a ingenuidade de publicar a Amnistia Internacional,(iii) mas as localidades envolvidas acabam por vezes quase completamente destruídas pela acção das partes combatentes;
- Os relatos da comunicação social, para além de praticamente só mencionarem a existência de cidades ou aldeias(iv), têm dificuldade em evidenciar que uma parte dos territórios em disputa se encontravam já, à data em que se iniciou o presente conflito na posse das autoridades das Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk proclamadas em 2014, tendo sido comum aqui e noutros territórios já ocupados pelas forças armadas russas, a difusão de informações com origem em governadores e presidentes de câmara nomeados pela Ucrânia que já não exerciam de facto as suas funções.
Identificando a existência de dois nacionalismos em confronto, ucraniano e russo, tem sido possível constatar que
- o governo ucraniano tem posto ênfase na reconquista dos “Km 2” controlados pelos russos, inclusive de toda a península da Crimeia, promovendo através dos seus serviços especiais ou milícias, de 2014 a 2022, atentados contra as populações fugidas ao seu controlo e, nos territórios entretanto ocupados pela Federação Russa, contra titulares de cargos da administração constituída pelas autoridades de ocupação
- o governo da Federação Russa põe, pelo contrário, ênfase na integração de habitantes dos territórios ocupados na Federação Russa, tendo promovido a evacuação para território russo das populações de Lugansk e Donetsk que nele procuravam refúgio face aos atentados dos Azov´s, optado pela via do confronto militar com reconhecimento das Repúblicas Populares perante ameaça de nova intervenção ucraniana contra estas, e, mais tarde organizado referendos com vista à integração na Federação Russa dos territórios de Lugansk e Donetsk, pondo-se fim às Repúblicas Populares reconhecidas em Fevereiro de 2022, e dos territórios de Zaporijjia e de Kherson, ocupados após o desencadear da “operação militar especial”, tendo pouco depois da ocupação começado a ser disponibilizados documentos de identificação russos.
O destino das populações
Quanto aos referendos, sem embargo de poderem preencher necessidades político-constitucionais da Federação Russa para a integração de novos territórios, são questionáveis quer do ponto de vista internacional quer de um ponto de vista interno.
Do ponto de vista internacional, tirando alguns casos pacíficos de últimos passos de descolonização, é exigível na prática o acordo do pais que tem direitos sobre o território. Não obstante este acordo estar assegurado por força dos tratados posteriores a duas guerras mundiais a França falhou por suas vezes a pretensão de retirar o Sarre à Alemanha(v). Ciente desta limitação a Federação Russa terá proposto nas negociações iniciais realizadas na Turquia que a Ucrânia desse o seu acordo à realização de referendos nas suas províncias russófonas. Precaução compreensível: como exemplo de um referendo exigível no âmbito do processo de descolonização que não se fará, apesar do empenhamento da ONU, temos o do Sará Ocidental ocupado por Marrocos e cuja causa foi abandonada pela antiga potência colonizadora.
Do ponto de vista interno, põe-se a meu ver uma necessidade muito séria que é a de garantir que aqueles que nasceram no território ou nele habitavam à data de início do conflito tenham o direito de a ele regressar / o continuar a habitar após o referendo, beneficiando de um esforço activo de pacificação e reconstrução, independentemente da posição que hajam tomado no referendo. Isto pode até envolver a admissão de dupla cidadania e da existência de duas línguas oficiais, ou pelo menos o direito à residência com manutenção da cidadania ucraniana.
Não é nada disto que parece estar a ser contemplado para 2024 pela Federação Russa, que poderá cair facilmente numa atitude que a Estónia e a Letónia vêm mantendo em relação aos habitantes de língua russa, mesmo em relação aos que detêm a cidadania dos respectivos países.
A falta de flexibilidade da Ucrânia, que não adoptou o russo como segunda língua oficial e recentemente, apesar da situação de guerra , multou o presidente da Câmara de Kharkov, por falar na rádio para os seus munícipes na própria língua – o russo – que estes falam, não parece ser um exemplo a seguir.
Note-se entretanto que as quatro entidades regionais cuja integração na Federação Russa continuará a consumar-se com a anunciada eleição de órgãos regionais e municipais, têm do ponto de vista político e militar(vi) uma situação muito diferente:
Lugansk
Esta região, menos populosa que a de Donetsk, encontrava-se, à data do reconhecimento da sua República Popular por parte da Federação Russa, com a maioria da sua área com sob controlo das autoridades da Republica, que controlavam igualmente a sua capital administrativa.
O governador provincial ucraniano instalou-se numa capital administrativa alternativa – Severodonetsk – que acabou por cair, por esforço conjunto do exército russo e das milícias da República Popular, ficando quase completamente destruída. O exército ucraniano voltou a entrar no território, possivelmente para que não se pudesse dizer que era controlado a 100 % pela República independentista, mas não têm surgido notícias de combates.
Muito significativamente, depois deste sucesso as milícias populares de Lugansk recusaram-se a ir combater para a vizinha República de Donetsk.
Donetsk
Região mais populosa e de grande tradição industrial a República Popular de Donetsk, que inclui a capital administrativa com o mesmo nome, tem estado sujeita a ataques, inclusive de artilharia, do exército ucraniano. Este conseguiu capturar Kramatorsk na fronteira da província de Kharkhov, onde instalou uma capital administrativa alterativa. Muitos membros das primitivas milícias da República Popular do Donetsk caíram na luta desde 2014. Tanto quando se pode perceber, os jornalistas que querem ver a situação do “outro lado” dirigem-se a Rostov e daí a Donetsk.
O exército ucraniano destacou efectivos muito elevados para a região e essa foi uma das razões para que a Federação Russa, em alternativa a incentivar as populações russófonas a refugiar-se do seu lado da fronteira preferiu reconhecer as repúblicas independentistas e mobilizar efectivos para o território destas.
O governo ucraniano tem assumido que o exército russo tem atacado insistentemente as suas forças no Donetsk para as relegar além fronteiras, cumprindo dizer que até agora não o conseguiu.
Uma hipótese de ataque russo a partir de Izium, na província de Kharkov malogrou-se aquando de uma contra-ofensiva ucraniana que recuperou muitos km 2 antes ocupados pelo exército da Federação Russa. Todavia cerca de 30 mil habitantes de Izium terão preferido refugiar-se na Rússia(vii).
No entanto o acontecimento mais saliente da guerra em Donetsk foi a tomada da cidade e porto de Mariupol, que não caíra em 2014 nas mãos dos insurrectos por intervenção do Batalhão Azov e ficara inicialmente como capital provincial provisória até ser substituída por Kramatorsk. As forças armadas russas seguindo um plano de operações modesto mas executado com persistência tomaram todas as posições ucranianas no mar de Azov, de Mariupol para baixo, ficando a Crimeia em maior segurança.
Zaporijjia
Em 2014, foi ensaiado nesta província um movimento de protesto russófono que não teve apoio suficiente. A província caiu em 2022 nas mãos das forças armadas russas que cumpriam o plano de controlar o Mar de Azov. A área controlada pela Federação Russa não abrange a capital provincial, Zaporijjia, na qual aliás se haviam refugiado muitos dos cidadãos de Mariupol.
A forças de ocupação constituíram uma administração provisória que veio a ser dizimada por atentados atribuídos aos serviços secretos ucranianos mas não reivindicados por estes.
Kherson
A província de Kherson foi ocupada a partir do sul por tropas russas estacionadas na Crimeia, capital incluída, sem qualquer oposição, e permaneceu calma durante muito tempo. Esta circunstância foi acolhida2 com grande irritação em Kiev, tendo sido de imediato substituídos dois generais, um ligado aos comandos da província outro aos serviços secretos. Zelenski deu uma ordem com grande estrondo no sentido de constituir um exército que retomasse Kherson e que… foi utilizado para ir reconquistar k m 2 do lado de Kharkov. Disse-se depois que tinha sido uma brilhante operação de contra-informação. O assunto continua a ser remoído na Ucrânia e outro dia apareceu-nos cá no Ocidente a explicação de que o FSB tinha conseguido o controlo dos serviços secretos ucranianos em Kherson antes da invasão.
Devem andar a prender-se uns aos outros… Entretanto foram desencadeados atentados individuais contra políticos de Kherson que aceitaram participar na administração provincial em colaboração com a administração russa. Entre outros, morreu assim um vice-presidente que assegurava a pasta de agricultura e era deputado à Rada pelo partido Servo do Povo, do Presidente Zelenski.
Num desenvolvimento inesperado os comandos russos decidiram não defender a capital regional por se situar na margem errada do Dnieper. Uma grande parte da população aceitou ser retirada para Rostov, mas ficou gente suficiente na capital para aclamar Zelenski. Como irão ser as anunciadas eleições regionais e municipais em Kherson?
Não será a única incongruência: a Ucrânia acaba de anunciar que reconquistou uma pequena terra de Donetsk que deixara de controlar em 2014. Será que os habitantes, se não fugiram, vêem este desenvolvimento como uma libertação?
Notas
(i) Artigos anteriores: 1-8-2018 As Catalunhas da Europa e 13-4-2022 Revisitando “As Catalunhas da Europa”
(ii) Cfr 27-4-2022 Revisitando “Uma Família Inglesa”
(iii) A Amnistia Internacional não incluiu na sua análise o caso de Mariupol, que terá sido desde o início um exemplo desta prática.
(iv) Foi preciso que se desse a mais recente e amplamente prenunciada contra-ofensiva ucraniana para ser anunciada a reconquista de uma “vila”.
(v) Em sentido contrário, após a II Guerra Mundial, a Itália perdeu para a Jugoslávia o território contíguo a Trieste.
(vi) Podem ser, por exemplo, consultados dados de um censo e descrições dos acontecimentos de 2014.
(vii) Cerca de 400 eleitos locais e outros funcionários da administração da província de Kharkov foram logo nos primeiros meses, segundo artigo de dois jornalistas estrangeiros reproduzido no Público, detidos pelos serviços secretos ucranianos por motivo de colaboração na “invasão”.