Entrevista com Donald Sutherland
Entrevistar Donald Sutherland não é propriamente uma tarefa fácil, pois o actor de 1900 e tantos outros clássicos não é um entrevistado que se limite a responder a perguntas. Para Donald o que importa mesmo é a conversa. Por isso mesmo, antes de começar foi logo avisando: “Atenção, eu falo imenso”. Já sabíamos que as suas respostas poderiam levar longos minutos, devidamente acompanhadas de histórias pelo meio, relatos de vida, etc, etc. O mais curioso neste seu papel de Coriolanus Snow, uma espécie de Presidente totalitário do regime imperial vigente num país fictício de Panem, é que nos é difícil de encarar a sua personagem como um vilão, tal é a suavidade que emana da tela e na vida real. Seja como for, o actor não poupa os políticos do seu país pela ausência de reformas. Aponta o dedo aos republicanos por não deixarem Obama aumentar o salário mínimo e não enjeita sequer uma aproximação da sua personagem a… Putin.
O tempo passa e a certa altura, quando a publicista se aproxima para rematar a entrevista, Donald exclama: “Está a brincar!? Tenho falado imenso sobre coisas que não têm a ver com o filme. Preciso de mais uns minutos…”. Sim, também falámos do filme, do tempo que passa, da idade, de Coppola, Fellini… Num actor que ultrapassou o meio centenário de carreira é natural que se fale de muita coisa. Mas tanta coisa fica por falar…
Como definiria a sua personagem de Coriolanus Snow?
A minha personagem é líder um estado totalitário governado por uma oligarquia. Se estivesse nos Estados Unidos poderia ser David e Charles Koch (donos da segunda maior empresa privada americana com receitas em 2013 de 115 biliões) que controlam o Supremo Tribunal. Aliás, um por cento dos americanos tem mais bens que os 90% a seguir a eles.
E o Donald não será um deles, certamente… (risos)
Não, eu sou canadiano… (risos) Mas veja bem, os seis herdeiros da cadeia Wallmart detêm mais bens que 41% daqueles que menos têm nos EUA. Dois biliões de dólares cada.
Será que podemos traçar neste filme um retrato do que se passa nos EUA?
Mas é claro. Isto é uma alegoria do que se passa nos EUA. Hunger Games é uma outra expressão para recrutamento. É o que temos feito ao longo da nossa história mais recente.
Está a falar de intervenções militares?
Em que outro lugar da Terra tem visto acontecerem execuções? Em lado nenhum. Nos EUA tem até existido problemas porque os químicos usados para injecções letais pelos franceses não estão a ser vendidos aos americanos. Por isso fabricam outras coisas que acabam por não funcionar. Mesmo assim, 90% dos americanos prefere regressar às câmaras de gás ou a cadeira eléctrica.
Desde que se mantenha a pena de morte…
Sim, não querem acabar com a pena de morte. Em Inglaterra quando acabaram com a pena de morte em 1964, deixando de enforcar pessoas Albert Pierrepoint (o mais famoso carrasco britânico) ficou sem trabalho. Daí ter aparecido no filme Os Doze Indomáveis Patifes, em 1966, a enforcar um boneco no início do filme. Quando cessaram as execuções em 1964, lia-se no Daily Express que 99% das pessoas queriam manter os enforcamentos.
Acha que a pena de morte poderia um dia acabar nos Estados Unidos?
O partido republicano impediu todas as tentativas de Obama para tomar essa decisão.
Seguindo as comparações, sente que este filme poderia ilustrar o que se passou, por exemplo, na parte oriental da Europa?
Eu não me vejo como Putin, se é isso que me está a perguntar. O Coriolanus Snow vai para a cama e dorme. Não acho que o mesmo suceda com o Putin. E ele não mata ninguém por prazer, mas por necessidade, por uma razão específica. Pela hegemonia. Mas não deixam de ser uma extraordinária alegoria estes três livros da Suzanne Collins.
Quando se investiu nessa personagem sente que também terá reencarnado outros líderes?
Sim, claro. Escrevi uma carta ao Gary Ross (realizador do primeiro HG) e tínhamos uma lista de todos os líderes e um deles era o (Bashar al-) Assad. E achei até que ele nem pertenceria a esta categoria. Mas isso era antes de tudo acontecer na Síria… É claro que penso em todos esses vilões, embora o meu conhecimento de Coriolanus Snow seja interior. Conheço o seu passado, tivemos paz durante 75 anos.
Vê-o como um ditador?
A comparar com alguém diria que se parece com Tito. Um ditador sim, mas não o vejo como um tirano. Governa uma série de distritos que alimentam a Capital. E em retorno a Capital assegura a lei, a ordem e a segurança. Nos Estados Unidos sempre que o Presidente Obama implora aos republicanos para aprovarem um aumento do salário mínimo estes recusam liminarmente. Não têm qualquer consideração pela população, pelos sacrifícios que são forçados a fazer. Já não existe uma classe média.
Sente que existe uma relação de admiração pela heroína do filme, Katniss Evergreen, interpretada por Jennifer Lawrence?
Há uma relação especial. Ele não consegue deixar de a admirar; ele não consegue deixar de sentir afecto por ela. Talvez por ele ter 77 anos, mais velho do que eu que só tenho 78 (na altura, já tem 79)… (risos) Se fosse possível, ela iria suceder-lhe. Se vir bem nesses filmes não existe sexismo, não existe racismo. Tudo isso foi enterrado no passado. Existe apenas… futilidade. E a futilidade é o que existe nos Estados Unidos. Aquilo que foi conhecido como a terra da oportunidade, em que as pessoas tinham a oportunidade de melhorar a vida para além dos entes que os precederam, hoje isso é impossível.
No seu caso, e quando olha para o passado, o que sente que está melhor e o que está pior hoje?
Este é um métier do realizador. É para ele que trabalhamos, é para ali que está o nosso afecto. Por exemplo, o Francis (Ford) Coppola fez um filme que era o Do Fundo do Coração (1982) que o realizou a partir da sua roullote. O problema daquele filme é que não foi feito do coração. Para ser do coração temos de ter uma relação íntima. Nos seus primeiros 25 anos de carreira o realizador estava sempre ao lado da câmara. Mas hoje continuam a ter o mesmo sonho: querer educar e transformar.
Com que realizador acha que aprendeu mais?
Isso seria como dizer qual dos meus filhos gosto mais. Não, não o quero nomear. Mas tenho de dizer que adorei trabalhar com o Francis (Lawrence): não tenho nenhum filho chamado Fellini, mas adorei trabalhar com ele (Casanova, 1970).
O Donald parece encarar bem o passar do tempo? É assim na sua profissão?
Olhe, continuo a tentar participar em papéis em que sou mais novo, mas eles não mos oferecem… (risos) Mas, veja, eu gosto das pessoas que interpreto. E não as vejo como velhas ou novas. E não considerei o Corionalus da minha idade. Ele parece mais novo do que eu. Mas eu também pareço mais novo.
Paulo Portugal, em Cannes