“O último contexto é a crescente tensão entre os EUA e o Irão desde que o governo Trump rompeu no ano passado o acordo nuclear com o país dos aiatolás, de 2015 – e isso já levou a vários incidentes violentos dentro e ao redor do Golfo Pérsico”.
por Derek Davison, na Jacobin | Tradução de José Carlos Ruy
Tudo o que Donald Trump fez desde que assumiu a presidência foi aproximar os EUA da guerra com o Irão. O assassinato de Qassem Soleimani empurra o país ainda mais nesse caminho catastrófico.
Então, deixe-me fazer esta observação geral: 2020 não está perdendo tempo. A Turquia pode estar prestes a enviar soldados para a Líbia. A Coreia do Norte pode estar planejando fazer algo grande e provocador. Os líderes do sul do Iêmen desistiram de suas negociações de paz com o governo, potencialmente reabrindo a guerra no Iêmen. O Talibã pode estar prestes a declarar um cessar-fogo no Afeganistão… ou então, talvez não. A Austrália está rapidamente se tornando inabitável, enquanto seu primeiro ministro, que nega as mudanças climáticas, fica sentado e assistindo.
E, agora, Donald Trump pode ter começado uma guerra real com o Irão.
Uma história que começou quinta-feira (26) à noite com relatos incompletos sobre um ou possivelmente dois ataques com mísseis fora do aeroporto de Bagdá se transformou em um relatório confirmado de que os EUA mataram o comandante da Força Quds iraniana Qassem Soleimani, em Bagdá. No mesmo ataque com drones, foram mortos também Abu Mahdi al-Muhandis, vice-líder do Comitê de Mobilização Popular do Iraque (PMC), o órgão que supervisiona as inúmeras facções das milícias do Iraque. Embora tecnicamente o vice-chefe do PMC, al-Muhandis também fosse o líder da milícia mais influente do Iraque, o Kata’ib Hezbollah, o que o tornou indiscutivelmente a figura mais poderosa da comunidade das milícias iraquianas. Sua morte é uma enorme escalada na última crise política do Iraque. Mas, obviamente, sua morte e a repercussão é ofuscada pela de Soleimani.
Quem acompanha o noticiário nos últimos dois meses sabe que o Iraque está à beira do caos, com manifestantes irritados com corrupção, ineficácia do governo e influência estrangeira (principalmente de Teerã). Estão nas ruas exigindo mudanças políticas por atacado. A resposta violenta do governo iraquiano, a maioria provavelmente liderada pelas milícias da Mobilização Popular, deixou centenas de mortos e forçou a renúncia do primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi. Mas a política iraquiana está tão completamente quebrada que Abdul-Mahdi permanece no cargo de primeiro-ministro interino, porque os líderes políticos iraquianos não conseguiram chegar a um acordo. Isso faz parte do contexto em que eventos recentes ocorreram.
Paralelamente ao colapso político, o Iraque passou por uma escalada de violência envolvendo as milícias. Isso (provavelmente) inclui a morte de manifestantes, mas também inclui ataques esporádicos de foguetes contra bases militares iraquianas, onde estão posicionadas forças dos EUA, e também inclui ataques aéreos esporádicos, não atribuídos, mas provavelmente realizados por Israel (e / ou Arábia Saudita), visando bases de milícias e esconderijos de armas. Os líderes da milícia culparam os EUA por ajudar ou, pelo menos, permitir esses ataques.
O último contexto aqui é a crescente tensão entre os EUA e o Irão desde que o governo Trump rompeu no ano passadoo acordo nuclear com o país dos aiatolás, de 2015 – e isso já levou a vários incidentes violentos dentro e ao redor do Golfo Pérsico. O principal é lembrar que a instabilidade que tomou conta dessa região nos últimos meses decorre da decisão do governo de Trump de cancelar um acordo internacional que a) estava funcionando e b) oferecia um caminho fácil para diminuir as tensões EUA-Irão e estabilizar o Golfo Pérsico.
Isso nos leva a 27 de dezembro, quando um desses ataques esporádicos com foguetes atingiu uma base militar iraquiana em Kirkuk e matou um empreiteiro civil estadunidense e feriu vários funcionários dos EUA e iraquianos. A expressão “empreiteiro civil” poderia cobrir qualquer coisa, de um funcionário de escritório a um oficial de segurança mercenário que não havia se envolvido em combate, mas independentemente de ter sido um cidadão americano morto, e os EUA acusaram o Hezbollah Kata’ib (fundada em 2003, e uma das principais milícias que resistem à ocupação dos EUA no Iraque no pós-guerra, e que enviou combatentes para ajudar Bashar al-Assad na Síria) estava por trás do ataque. Assim revidou, no fim de semana, atingindo cinco alvos do Kata’ib Hezbollah no Iraque e na Síria. O Hezbollah de Kata’ib disse que pelo menos 24 de seus membros foram mortos nos ataques e al-Muhandis prometeu algum tipo de resposta.
A resposta inicial veio do governo iraquiano, na segunda-feira; ele condenou os ataques dos EUA como, em primeiro lugar, uma violação da soberania iraquiana. O que sustenta essa condenação é um medo iraquiano profundo e muito compreensível de que qualquer guerra entre os EUA e o Irão (e seus aliados) provavelmente cause mais danos ao Iraque do que em qualquer outro lugar. O governo dos EUA rejeitou as queixas dos iraquianos acusando o governo de Bagdá de não proteger seu pessoal.
A resposta maior ocorreu durante a segunda-feira e na terça-feira, quando uma multidão de combatentes e apoiadores do Kata’ib Hezbollah invadiu a embaixada dos EUA em Bagdá. Eles a incendiaram, mas foram impedidos de invadir o complexo pela segurança. Talvez o mais importante seja que dois grandes atores da política iraquiana – o clérigo populista Muqtada al-Sadr e o grande aiatolá Ali al-Sistani se juntaram à multidão na condenação do ataque norte-americano. Al-Sadr pediu à multidão que parasse de atacar a embaixada e disse que usaria meios políticos para tentar forçar os EUA a sair do Iraque. Nem Al-Sadr nem Al-Sistani podem ser descritos como “pró-americanos”, mas ambos estavam muito mais preocupados com a interferência iraniana nos assuntos iraquianos nos últimos meses. Os ataques aéreos nos EUA parecem ter mudado isso.
Agora, os EUA mataram al-Muhandis e Soleimani, uma das figuras mais poderosas e populares do Irão, que perdeu parte de seu brilho nos últimos dois anos, mas que ainda é uma das talvez duas ou três pessoas cuja influência dentro do Irão é ofuscada apenas pelo líder supremo, aiatolá Ali Khamenei. É obviamente muito cedo para saber quais serão as consequências, mas é inconcebível que o governo iraniano não venha a retaliar de alguma forma, e essa retaliação não precisa vir na forma de uma guerra em grande escala. Seus aliados em toda a região, do Paquistão ao Líbano e Israel-Palestina, podem realizar muitos ataques de retaliação contra os interesses dos EUA e de seus aliados.
Também é inconcebível que o governo iraquiano permita que isso permaneça. Deixando de lado a dependência política de Bagdá a Teerã, esta é a segunda vez em poucos dias que os EUA tratam a soberania iraquiana como uma piada, e desta vez resultou no assassinato de um alto funcionário iraquiano e de uma alta autoridade oficial iraniana que estava sob garantia da segurança iraquiana. Há uma possibilidade muito forte de que o governo iraquiano exija que as forças armadas dos EUA desocupem completamente o país, e se a segurança do pessoal diplomático e de suas famílias na embaixada dos EUA em Bagdá já estava em risco antes, esse risco acaba de ser consideravelmente aumentado.
Também deve ser enfatizado que tudo o que vem a seguir será de responsabilidade de um presidente dos EUA que afirma ser anti-guerra, afirma entender que a Guerra do Iraque foi incrivelmente estúpida e vingativa e ainda assim pode ter provocado um conflito ainda mais catastrófico. Tudo o que Trump fez desde que assumiu a presidência aproximou os EUA da guerra com o Irão, para a alegria de um establishment da política externa de Washington que busca exatamente isso há mais de quarenta anos.
É indubitavelmente verdade que, como o desfile de supostos especialistas, na TV, na noite passada (31/12) reiterou repetidamente, poucas pessoas fora do Irão e alguns poucos locais no Oriente Médio lamentarão a morte de Soleimani. Mas seu assassinato não é, como Donald Trump certamente reivindicará nas próximas horas – algum feito espetacular do poder militar americano. Soleimani não estava escondido como Osama bin Laden ou Abu Bakr al-Baghdadi. Matá-lo foi relativamente fácil, mas também foi extremamente estúpido. Soleimani agora é um mártir da arrogância dos EUA, e sua morte quase certamente tornará o Oriente Médio menos seguro.
por Derek Davison, Escritor e analista especializado em política externa do Oriente Médio e dos EUA | Texto em português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy
Exclusivo Editorial PV (Fonte: Jacobin)/ Tornado