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Domingo, Dezembro 22, 2024

Donde vem o nosso dinheiro?

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

O segredo que está a destruir a economia real, enriquecendo uma minoria enquanto empobrece a maioria.

A grande maioria das pessoas supõe que a moeda é criada pelos bancos centrais, mas na realidade existem estimativas que apontam para que mais de 90% de toda a moeda em circulação seja criada pelos bancos privados através de empréstimos bancários.

A ideia original é que os bancos captam depósitos que em seguida emprestam a investidores, mas basta lembrar a prática bancária, adoptada na maioria dos países do mundo, que permite a concessão de empréstimos ou a realização investimentos em valor muito superior ao dos depósitos captados, desde que se mantenha como reserva uma determinada fracção desses depósitos; este sistema permite aos bancos emprestarem a maior parte dos depósitos, retendo apenas uma pequena parte destes. O sistema de reserva fracionária baseia-se no princípio de que os depositantes não levantarão todo o seu dinheiro ao mesmo tempo; se o fizessem, os bancos não teriam como satisfazer a procura e fechariam.

Assim, o princípio da reserva fraccionária, permite fazer empréstimos em valor muito superior ao dos depósitos, desde que se mantenha como reserva uma determinada fracção (daí a designação de reserva fraccionária) do montante desses depósitos.

Sistema de empréstimo com reserva fraccionaria e uma taxa de reserva em 20%

Banco Depósito Crédito Resserva
A 1,00 0,80 0,20
B 0,80 0,64 0,16
C 0,64 0,51 0,13
D 0,51 0,41 0,10
E 0,41 0,33 0,08
F 0,33 0,26 0,07
G 0,26 0,21 0,05
H 0,21 0,17 0,04
I 0,17 0,13 0,03
J 0,13 0,11 0,03
K 0,11

Total depositado: 4,57
Total emprestado: 3,57
Reservas totais: 0,89

Este quadro dá uma ideia do efeito do aumento da massa monetária pela criação de sucessivas linhas de crédito a partir de um simples depósito inicial de uma unidade monetária que ao serem sucessivamente “depositadas” noutro banco dão origem a novas linhas de crédito, a ponto do valor inicial se ver multiplicado mais de 3,5 vezes.

Da relação entre a oferta de moeda e a base monetária – definida, no sentido mais restrito, como o volume de moeda e das reservas bancárias, mas que num sentido progressivamente mais amplo e de menor liquidez, inclui os depósitos à ordem, os depósitos a prazo, os depósitos poupança, as letras e até os plafonds dos cartões de crédito – e da taxa de reserva deriva o conceito de multiplicador de crédito, variável que sintetiza o mecanismo de multiplicação da base monetária pelo processo de criação de moeda operado pelos bancos comerciais, ou seja, o multiplicador permite estimar o volume máximo a que um depósito inicial a uma dada taxa de reserva se pode expandir. Observando que o somatório dos créditos sucessivamente concedidos constitui uma série geométrica com uma razão de (1-taxa de reserva), deduz-se que aquele multiplicador é o inverso da taxa de reserva.

Este novo conceito franqueia as portas à parca limitação representado pelo mecanismo de reserva obrigatória, pois no limite os bancospodem optar por utilizar a totalidade dos depósitos para constituir reserva e assim alavancar ainda mais a criação de moeda. Em termos práticos e para a mesma taxa de reserva de 20% e para a mesmo número de unidades monetárias teríamos o seguinte resultado:

Sistema de empréstimo com reserva fraccionaria e um multiplicador de crédito de 5 (tx. reserva 20%)

Banco Depósito Crédito Resserva
A 1 5 1
B 5 25 5
C 25 125 25
D 125 625 125
E 625 3.125 625
F 3.125 15.625 3.125
G 15.625 78.125 15.625
H 78.125 390.625 78.125
I 390.625 1.953.125 390.625
J 1.953.125 9.765.625 1.953.125
K 9.765.625

Total depositado: 2.441.406
Total emprestado: 12.207.030
Reservas totais: 2.441.406

que significaria multiplicar o depósito inicial por mais de 12,2 milhões.

Claro que isto é um mero exemplo matemático, mas na realidade o grau de liberdade do sistema bancário é enorme, completamente desproprocionado e praticamente incontrolado. Mesmo sem recorrer à situação extrema anteriormente descrita, os bancos não criam apenas empréstimos a partir dos depósitos captados, eles também criam depósitos a partir dos créditos concedidos, ou seja antes de terem lugar os depósitos.

Isto foi já confirmado em 2014 no artigo Money creation in the modern economy, incluído num relatório trimestral do Banco de Inglaterra, onde os autores explicam como a maior parte do dinheiro na economia moderna é criada pelos bancos comerciais a partir de empréstimos, que estes não agem como simples intermediários entre aforradores e investidores, nem multiplicam apenas as reservas para criar novos empréstimos.

Na prática, cada vez que um banco faz um empréstimo, cria simultaneamente um depósito em contrapartida na conta bancária do tomador, originando dessa forma nova moeda, o que só é possível porque os bancos não respeitam as regras tradicionais da contabilidade quando transformam responsabilidades (os depósitos) em activos.

Esta facilidade na criação de moeda, ao contrário da ideia comum de que os bancos são meros intermediários financeiros, além de poder ser geradora de crises por via do excesso de endividamento representa ainda o meio ideal para contornar as famosas regras de Basileia – cuja finalidade anunciada foi a de aumentar o nível de solidez dos bancos mediante o aumento das necessidades de capitais próprios – e o grau de confiança no conjunto do sistema financeiro.

Embora toda a investigação económica neoclássica convencional esteja baseada na profundamente enganosa descrição da banca como intermediária financeira, a realidade anteriormente descrita tem vindo a ser revelada em alguns trabalhos de investigação, como este publicado na revista FINANCE&DEVELOPMENT (publicação trimestral do FMI), que destaca o papel dos bancos a desencadearem e prolongarem as duas maiores crises económicas dos últimos 100 anos: a Grande Depressão de 1929 e, na terminologia dos autores, a Grande Recessão de 2008.

E esta situação é inalterável?

Claro que não! E se o primeiro passo – impedir os bancos de criar moeda para empréstimos especulativos ou mero crédito ao consumo – não teve o sucesso desejado outros podem, e devem, ser dados, como:

  • contrariar a concentração bancária, porque bancos de pequena dimensão tendem a emprestar mais a pequenos que a grandes negócios e a especuladores;
  • olhar atentamente para o fenómeno da criptomoeda e regulamentá-lo como mecanismo ao serviço da economia real;

enquanto se mantém a insistência num processo de regulação bancária que a par com o impedimento de criação de moeda para empréstimos meramente especulativos, como era segurado pela antiga separação entre bancos comerciais (os que conjugam a captação de depósitos com a concessão de crédito para investimento na economia) e bancos de investimento (aqueles a quem é permitida a realização de investimentos mais especulativos mas não dispõem de rede de captação de depósitos); este tipo de regulamentação deve visar a recuperação das regras estabelecidas no Glass-Steagall Act de 1933 (lei da actividade bancária norte-americana) que, no rescaldo da Grande Crise de 1929-1933, impunha a separação entre a actividade bancária comercial e a banca de investimento e que vigorou até 1999, data em que em nome da necessidade de maior concorrência entre as empresas financeiras (bancos e sociedades de investimento) e na defesa dos interesses dos bancos americanos face aos rivais estrangeiros menos sujeitos a regulação, foi revogada pelo Financial Services Modernization Act, aprovado pela administração Clinton.

Por fim, e para melhor contextualização do debate sobre as criptomoedas tão facilmente vilanizadas na comunicação social, recorde-se que estas, em pouco ou nada diferem no seu processo criativo da moeda fiduciária (a moeda sem valor intrínseco que substitui a moeda do padrão-ouro que vigorou até à I Guerra Mundial) que hoje usamos correntemente.

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