Aquilino Ribeiro residia em Paris na altura em que eclodiu a I Guerra Mundial e escreveu entre 1 de Agosto e 26 de Setembro de 1914 um diário, com o título É a Guerra, que veio a publicar em 1934. No mesmo ano publicaria Alemanha Ensanguentada (caderno de um viajante). Tive ocasião de ler um e o outro, só disponho neste momento de uma reedição de 2014 – Bertrand – do primeiro, que tentarei resumir sem prejuízo de me socorrer de Aquilino Ribeiro – A Obra e o Homem de Manuel Mendes, para esclarecimento de algumas dúvidas relativas a aspectos biográficos.
O diário regista uma multiplicidade de factos e de discussões entre habitantes, e vai destacando algumas figuras pitorescas.
A leitura da imprensa vai, refere, operando como calmante da população francesa. Explica:
É este um dos primeiros benefícios que verifico em saber-se cortar letra de forma e não ter opinião própria. O francês em realidade poupa-se ao incómodo de raciocinar. A gazeta é o seu alcorão. Ela lhe leva todas as manhãs o que há que pensar, o que deve dizer, o que convém cumprir como eleitor e contribuinte. Fica assim liberto de tarefa tremenda, a de julgar e de criticar. Deste modo o seu cérebro está fresco como terra virgem para toda a espécie de vida prática. Aos profissionais o encargo de dirigir-lhe a consciência republicana e social. E quando lê o jornal, é de ânimo convicto, rendido à opinião que compra por dez réis, sem procurar sequer ler nas entrelinhas. O jornal político da cor e a mulher são na terra as suas verdades absolutas e reveladas. Quando deixar de crer nelas subentenda-se que houve catástrofe.
No prefácio à reedição de 2014 Mário Cláudio encontra elementos de reportagem no diário. Num dos primeiros dias o autor assiste à destruição e pilhagem da Leitaria Maggi do seu bairro(i). No dia seguinte encontra no mesmo estado a da Avenue d´Orléans e, próximo dela, a Sapataria Alfred:
Na noite de ontem e dia de hoje vários armazéns alemães e austríacos, ou havidos por tal, foram postos a saque; só da Maggi, além dos laboratórios, mais de duzentas casas de venda, não sei quantos cafés sacrificados á suspeita de pertencerem ao inimigo, Cristais de Carlsbad, alfaiatarias da moda, sapatarias sem conto, nas artérias mais concorridas, encostadas até a esquadras de polícia. Para La Villette foi pilhado um depósito de máquinas de costura, marca alemã.
O diário enaltece os estabelecimentos Maggi que restituíram ao leite “o seu frescor, saúde delicado tom de pérola e aquele apetite de se beber que provoca ao sair do úbero na granja rural” e zurze os autores das depredações: “Um bando que pelo esquálido e cara de quem saiu dos canos me pareceu a mesma gente que vi manifestar-se nos bulevares e Bairro Latino executou a maléfica empreitada”(ii). Sobretudo, a polícia deixou fazer, detendo apenas uns 50 participantes quando dez dias antes detivera 800 participantes numa manifestação sindicalista contra a guerra.
Na realidade o socialismo e o sindicalismo cederam perante o nacionalismo francês. Jean Jaurés de quem Aquilino Ribeiro escreve, sobre o socialista assassinado há dias:
O mundo acaba de perder neste político de cabeça sempre erguida para o céu uma das suas generosas e magníficas forças. Era o tribuno por excelência. Ouvia-se com o mesmo prazer com que se ouve… A última vez que me foi dado gozar tal prazer foi nas Buttes-Chaumont, combatiam os socialistas encarniçadamente a lei militar dos três anos… Em meu peito choro-o como se fôssemos do mesmo lar…Mas terrível absurdo do destino! Agora que Jaurès, ontem homem de todas as liberdades, inimigo jurado dos preconceitos, transigia com o movimento nacionalista, arrastado na corrente como coisa sem peso, nada ele… um fanático do nacionalismo o abate a tiros de Browning!
Uma remodelação ministerial viria a integrar no Governo dois “trânsfugas do Partido Socialista”, Briand e Millerand, e dois dirigentes socialistas, Marcel Sembat e Jules Guesde, este último um dirigente da corrente originalmente ligada a Karl Marx(iii). Quanto ao outrora ultra-esquerdista e anti-militarista Gustave Hervé, alinharia também com o nacionalismo.
Em muitos outros partidos socialistas membros da Internacional extremamente vocais, durante anos, perante os cenários de guerra, verificaram-se fenómenos semelhantes. Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo votaram no Reichstag alemão contra a guerra e correu uma notícia, que no diário se assinala, segundo a qual tinham sido executados. Sê-lo-iam em 1919 num contexto diferente. O diário também se faz eco de um boato segundo o qual o dirigente radical francês Joseph Caillaux, várias vezes ministro, que se opusera, tal como os socialistas de Jaurés, ao serviço militar de três anos, havia sido assassinado. Curiosamente seria preso em 1917 mas posteriormente reabilitado. Talvez as páginas de Os Thibault de Roger Martin du Gard, possam dar aos leitores uma ideia das esperanças e das decepções que rodearam as tentativas de, à esquerda, impedir a declaração de uma guerra que teve lugar porque mataram um arquiduque…
Em É a Guerra anota-se com ironia que o Ministro francês Viviani e o Imperador alemão Guilherme II se servem quase dos mesmos termos para negar a responsabilidade pela guerra: A França INJUSTAMENTE provocada não quis a guerra. FEZ TUDO POR CONJURÁ-LA. Sou obrigado a tirar a espada da bainha para repelir um ataque completamente INJUSTIFICADO… Julguei que era para mim dever de consciência FAZER TUDO O QUE ERA POSSÍVEL PARA EVITAR A GUERRA.
A França bate-se pela civilização e liberdade do mundo; a Rússia pelo exalçamento dos povos oprimidos; a Inglaterra pela salvaguarda dos tratados e honra do império; a Alemanha pela cultura e pela verdade; a Áustria contra a perfídia e pelo direito; todos mais inocentes uns que os outros; todos cordeiros pascais; todos endireitadores do torto e paladinos do fraco.
Aquilino virá a referir que a Alemanha cometeu o erro de não se preocupar com a sua imagem e se deixar passar por principal responsável da guerra, enquanto que a França se preocupava desde há 43 anos com a sua vingança e com a recuperação dos territórios perdidos em 1871(iv) Em todo o caso desvaloriza o argumento que levou à declaração de guerra pela Inglaterra – a violação da neutralidade belga – uma vez que a Bélgica não tinha prescindido de se dotar de um exército. Tendo o generalíssimo francês Joffre posto em prática desde a primeira hora os planos de uma entrada ofensiva pela Alsácia, foi obrigado a bater em retirada, mas também não socorreu o exército belga em Liège. A Alemanha encaminhou-se por Bruxelas e Charleroi. A propaganda francesa proclamava Qu’ ils franchissent la Meuse, la Seine et s’ emparent de Paris, nous avons encore la Loire.
Trata-se possivelmente de uma reminiscência da guerra franco-prussiana de 1870/71, em que, tendo os exércitos de Napoleão III capitulado em Sedan(v) e em Metz(vi) foi possível constituir um exército do Loire e uma delegação governamental provisória sediada em Tours que depois teve de ser transferida para Bordéus. Em 1914, embora Paris não tenha caído, também os órgãos de poder retiraram para Bordéus(vii).
Desde os primeiros dias Aquilino procurou manter contacto com a Legação Portuguesa em Paris, então dirigida por um diplomata de nomeação política, João Chagas, com a categoria de Ministro(viii), que aparece descrito como antigo panfletário. “Foi revolucionário estouvado, desenvolto, porventura, mas poucos como ele se sacrificaram ao culto dos princípios. Deu-lhe o vento da fortuna e tornou-se insuportável, cabotino, mais malcriado do que era, megalómano inclusive”. Definiu como objectivo promover a intervenção de Portugal na Guerra, ou seja “tomou a sério o anunciado papel de fornecedor do talho”. Em Lisboa não encorajam a sua pretensão. Segundo o autor, que o acusa de um volte-face na apreciação de franceses e alemães, “é próprio do carácter dos mestiços a versatilidade, mas esta embora explique muito, não explica tudo”. Pretenderia ganhar importância dentro do corpo diplomático acreditado em Paris, onde é “um ministro de cor”.
João Chagas nascera no Rio de Janeiro, filho de um emigrante e de uma ameríndia, “com o seu filho a tornar-se mestiço, com traços de miscigenação”, informa Lucas Brandão em João Chagas, jornalista da República. Em 1915 esteve para assumir a presidência do Ministério, sucedendo ao General Pimenta de Castro, ditador apoiado pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga, e pelos partidos Evolucionista e Unionista, mas quando se deslocava de comboio do Porto para Lisboa foi alvo de uma tentativa de assassínio por parte do senador do Partido Evolucionista Joáo José de Freitas(ix).
Ao publicar em 1934 as suas páginas de 1914, Aquilino Ribeiro fá-lo com um prefácio dirigido ao seu amigo António Gomes Mota(x) em que, desculpando alguns aspectos da postura mantida na altura pela França (como o uso desenfreado da mentira) e pela Alemanha (em todo o caso menos negativa que a da Alemanha hitleriana), esclarece:
Este registo vai, mal espanejado do pó dos anos e à parte leves variantes, como o lancei ao papel. Suprimi apenas aquelas páginas em que me arvorara em oráculo que lera no futuro com acerto, pois seria risível pospor a profecia aos próprios acontecimentos. Bandarra só para o dia seguinte. Outras, em que os factos me desmentiram, conservei-as porque um cálculo errado de meteorologia social não é menos instrutivo que um cálculo justo.
Quanto a João Chagas, falecido em 1925, nenhuma revisão das referências feitas vinte anos antes. As feridas entre republicanos não sarariam facilmente.
O diário É a Guerra omite completamente que Aquilino Ribeiro, à data dos acontecimentos descritos residia em Paris na companhia de Grete Tiedemann que conhecera em 1910 na Sorbonne, natural de Mecklenburgo(xi) com quem casara em 1913 na Alemanha, vindo o casal viver para Paris, tendo nascido em 26 de Fevereiro de 1914 o seu filho Aníbal Aquilino Fritz Tiedemann Ribeiro, constando todas estas referências do trabalho de Manuel Mendes, que também refere que Aquilino morou em 1912 alguns meses em Berlim e em Parchin no Mecklenburgo. A esta estadia de 1912 no Mecklemburgo encontramos todavia uma referência na carta acima citada a António Gomes Mota.
Dia 4 de Agosto era dia e os estrangeiros se apresentarem às autoridades e o escritor conta-nos a voltas que deu mas não diz se houve registo da sua família. Nos primeiros contactos com a Legação de Portugal, defendendo Aquilino a absoluta neutralidade portuguesa, Chagas pergunta se ele se germanizou. Alusão à sua situação familiar? Há boatos de alemães fuzilados como espiões. E com as primeiras derrotas francesas começa a haver pedidos de que se não tratem bem os prisioneiros alemães. Possivelmente – fica a dúvida sem confirmação – alguns serão eliminados depois de terem sido disseminados pelo território francês. O autor de É a Guerra anseia pelo seu país, e mais do que pelo seu país, pela SUA ALDEIA.
Notas
(i) O autor residiria nesta altura na Rue Dareau, Xeme Arrondissement, num bairro que lhe fazia lembrar Lamego..
(ii) Noutro passo, o autor refere que a farinha Nestlé deixou de ser vendida nas farmácias por ter sido considerada produto alemão.
(iii) Jules Guesde faleceria em 1922.
(iv) Ou seja desde 1871 em que o tratado de paz franco-prussiano atribuiu a Alsácia e a Lorena ao império alemão.
(v) Sendo o imperador e o marechal Mac-Mahon feitos prisioneiros.
(vi) A capitulação do marechal Bazaine e do exército da Lorena por si comandado levou a que este fosse julgado.
(vii) Em 1940 Paris não foi defendida e os órgãos de poder retiraram igualmente para Bórdeus. Todavia, depois do Armístício a capital da França não ocupada foi instalada em Vichy.
(viii) Na altura a generalidade das representações diplomáticas tinham categoria de Legação e não de Embaixada e os seus responsáveis categoria de Ministro e não de Embaixador.
(ix) João Chagas, o jornalista da República | João José de Freitas
(x) Com quem fora preso em 1928 após o frustrado levantamento contra o Governo do regimento de Pinhel e com quem se evadira no mesmo ano do presídio militar de Fontelo.
(xi) Corresponde ao actual estado alemão de Mecklemburgo – Pomerânia Ocidental.