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Domingo, Dezembro 22, 2024

E agora, Catalunha?

Gemma Nadal, na Catalunha
Gemma Nadal, na Catalunha
Jornalista, Filóloga e Tradutora

E como vai na Catalunha? – Tudo na mesma, digo eu com um certo cansaço, e acrescento para os meus botões: enquistado, emaranhado, como à espera dum Godot qualquer. Remexem-se as minhas tripas. Não é de agora, já lá vai um tempo em que falar deste assunto desassossega-me, porque significa estar a explicar sempre o óbvio: todos os povos têm direito a sua autodeterminação e à procura do seu próprio caminho. Ponto.

Há sempre quem te aborde com a última notícia lida nalgum jornal espanhol de direita, quem não compreenda que as raízes disto tudo vêm de longe, que o povo já foi traído muitas vezes pelos de dentro e pelos de fora… Que não estamos (muitos, a maioria) a falar (só) de pátrias, mas da construção duma sociedade melhor, mais justa e igualitária, impossível de erguer a partir da Espanha saída do ‘regime do 78’, herdeira directa da tradição franquista, cúmplice da tentativa de golpe de estado de 1981, surda às reivindicações das suas nacionalidades históricas, conivente com criminosos  de guerra e torturadores a través da Ley de Amnistía, que decretou o não julgamento dos culpados dos crimes da ditadura. Como avançar sem olhar para trás? Como construir sobre ruínas podres?

Tem havido, no entanto, tentativas de diálogo e de avanço ao lado de Espanha, a mais importante das quais, e que abriu portas à esperança, foi a da revisão do estatuto (a norma básica pela qual se regem as comunidades autónomas espanholas). O intento de reforma do Estatut, que se iniciou em 2006, recebeu sete recursos de inconstitucionalidade, no meio duma série de irregularidades que afectavam à constituição do Tribunal e aos trâmites da lei. O Estatut da Catalunha, uma das três nacionalidades históricas espanholas, ficou cortado por baixo do nível do da autonomia andaluza, por exemplo.

A sentença final ─ temperada com as grosseiras declarações que fiz ao seu respeito Alfonso Guerra (vice-presidente do governo de Felipe González nos anos oitenta) ─ deslegitimou a necessária revisão da norma autonómica, revelou o desencaixe da Catalunha na Espanha e o choque e a desigualdade de poderes entre ambos os territórios.

A partir deste momento, vivido por grande parte dos catalães como uma humilhação e uma senda de não retorno, a desafeição com o Estado espanhol irá progredindo ao mesmo tempo que o independentismo irá aumentando exponencialmente ano após ano, coisa que soube aproveitar a direita catalã ─ que andava a perder votantes a causa dos seus escândalos económicos, sobretudo a partir do ‘caso Pujol’ e do ‘caso Palau’─ para apostar no cavalo ganhador e reivindicar aquilo que nunca esteve nos seus planos, o soberanismo,  com a promessa de implementar a independência.

Assim, à medida que ia crescendo gradualmente o sentimento independentista na rua, uma parte importante da sociedade civil ia se organizando a volta de duas grandes associações cidadãs do espectro político de centro-direita, mas capazes de aglutinar também votantes tradicionais de esquerda: a ANC e Òmnium, que chegam a reunir mais de dois milhões de pessoas na celebração das Diadas (a festa nacional da Catalunha). Esta pressão popular conseguiu que os partidos no poder convocassem o referendo do 1 de Outubro de 2017 pela autodeterminação.

Desta maneira, a causa da sua capacidade de convocatória e do sucesso em liderar as grandes manifestações pro-independência, os dirigentes das duas associações citadas, Jordi Sánchez e Jordi Cuixart, conhecidos como ‘os Jordis’, foram prendidos há algo mais de um ano acusados de impedir a saída dum cortejo judicial, que tinha revistado a Conselleria de economia da Generalitat em busca de documentação para o referendo do 1 de Outubro, e de incitar à violência, quando o que estavam a fazer na verdade era tentar que a massa se dispersasse. Apesar das imagens reflectirem o momento em que os Jordis, acima dum carro da guardia civil, pedem à multidão concentrada num protesto contra a repressão do Estado espanhol diante da Conselleria de economia catalã que todo o mundo tem que ir embora, a juíza encarregada do caso viu nesta situação indícios de delito e foram acusados de sedição. Estes dois líderes civis foram os primeiros presos políticos deste processo kafkiano.

Apesar de todos os intentos por parte do governo espanhol de evitar a celebração do referendo do um de Outubro de 2017 (que incluem busca e confiscação de milhões de boletins de voto, revistas em diversos lugares, identificações e detenções provisionais de pessoas, ataques informáticos contínuos ao aplicativo de votação…), este se realiza em meio duma chuva de golpes que não poupou nem os idosos. A silhueta dos navios no porto cheios de polícias nacionais e guardias civis à espera de entrar em acção não impediu que se votasse e se escolhesse República Catalã. Vam votar, vam guanyar: votámos e ganhámos, sim.

A partir deste momento sucedem-se os episódios mais obscuros do absurdo em que o governo espanhol converteu a vida política e social catalã: mais detenções de pessoas a raiz dos sucessos do 1 de Outubro, implantação do artigo 155 (que implicou a intervenção da Generalitat e a dissolução do Parlamento catalão, entre outros muitos efeitos), prisão para Oriol Junqueras, vicepresidente do governo catalão, e outros políticos catalães; exílio para Puigdemont, presidente da Generalitat, e mais seis membros do Parlament; professores investigados, membros dos CDR detidos, etc.

Nestes momentos, há nove presos políticos catalães na prisão e sete no exílio, para os quais se pedem penas diversas segundo o delito do qual sejam acusados (a maior é para Oriol Junqueras, para quem a Fiscalía do Estado espanhol pede 25 anos por rebelião; para os líderes da sociedade civil pedem-se 17 anos). 25 e 17 anos por acatar a vontade do povo e permitir que a população manifestasse pacificamente a sua opinião. Como não sentir desassossego, impotência, raiva e estupor?

A situação neste momento assemelha um status que: a ANC e Òmnium desmobilizadas em nível de rua e a centrar-se quase unicamente na libertação dos presos; PdeCat e ERC a manter evidentes lutas internas; tentativas de diálogo do governo catalão com o PSOE e reorganizações opacas dos Comuns, a esquerda ambígua no que diz respeito ao independentismo…  Neste panorama, volto a dizer, kafkiano, cada vez mais pessoas estão a desconfiar que os políticos possam e queiram fazer um passo atrás para obedecer o mandato popular do 1-O e a acreditar na ideia que só o povo pode salvar o povo. Quem sabe se a confirmação das penas para os presos não consegue espoletar um surto na população que faça avançar a situação para um cenário mais favorável para a Catalunha. Ou quem sabe se os CDR, que são povo e que são os únicos agora a lembrar que votámos e ganhámos enquanto encaminham, à espera de conjunturas melhores, as suas ações para lutas sociais como os despejos ou a defensa do serviço público de saúde, não vão voltar à cena pública com propostas que mobilizem uma parte importante da população? Ou, numa hipótese mais arriscada, quem sabe se amanhã Espanha acorda republicana e podemos falar de tu a tu duma união fraterna e confederal dos povos ibéricos? Se calhar neste longo ano aprendemos ou lembrámos muitas vezes aquilo que o poder teima em fazer esquecer a todo o custo: só o povo salva ao povo, sempre!

 

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