E aqui estou, num barco de papel que percorre o alto mar, armado sem voar. E vou, mesmo contra as iras do ferro deste sol que me penetra de rangidos sons o seu magro gesticular, como a onda que já foi, ou a onda que há-de vir, sigo sem pedal nem velas para marcar a cor do meu caminho.
É azar nascer bem cedo, acordar como marinheiros num flutuante silêncio onde nem sequer do mar se sabe, é azar embarcar nos nervos do quotidiano que inventamos para cantar melodias desesperadas nesta escondida avenida de todas as verdades ocultadas entre postes e paredes de sisal, e castanhas, não fosse um dia qualquer destituí-las da sua essência e morrerem secas na rua de vampiros aos tiros como cegos num choupal cercado de arames e cercas eléctricas.
Quantas vezes a minha própria vida me confunde comigo mesmo, ouço-me distante de cada corrente e salto como um cordeiro as barreiras brancas do quintal ainda vivo da avó Celeste, quem seja ela, mora ainda lá, na sua tão pequena e enorme casa sem cor, dizem os doutos de visão nocturna, e vejo apenas a janela quando salto os murinhos sentados naquele areal sempre bonito como o grito do divino.
Vem do celestial e é sonho, desce calminho o caminho aberto por entre as nuvens que ali ficam observando-nos cadentes de tantos dentes mastigarem o destino, um simples caminho que talvez eu mesmo crie para me observar nele, fosse eu o espelho que pinto para mim, para oferecer-te um dia que parta a minha alma desta cânfora calda de tão quente onde nunca me senti estar, sim, passo apenas e todos os dias num ritmo apenas suficiente para me conseguir deslocar. De resto, respeito apenas o mar.
É realmente azar nascer tão cedo. Já me sinto velho de tanto pensar como poderia ser, nascendo depois do amanhecer.
Um dia destes, bem à tardinha, deitar-me-ei sobre o frio do chão para redescobrir no meu corpo de açafrão todos os sonhos de que perdi da memória, sim, talvez inventando-me novamente me consiga embriagar de desejos solitários na restinga, bem perto do mar.
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