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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

E depois do Tratado Orçamental?

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

«A Europa precisa urgentemente de democracia, ou seja, exactamente o oposto do seu ainda maior domínio pela oligarquia que nos promete Macron…» foi assim que Paulo Casaca concluiu um artigo no TORNADO onde reflecte sobre a situação na Europa a partir da mais recente onda de contestação em França.

Deixando, por ora, de lado a questão das tendências frontistas da França – que aqui deve ser entendida no duplo sentido da tradição das frondas (série de guerras civis ocorridas na França em meados do século XVII onde a monarquia se viu confrontada por diversos segmentos da sociedade) e dos apoiantes do Front National – interessa-me sobretudo reter (e subscrever) a ideia da urgência democrática que a Europa atravessa e reforçar a ideia que aqui deixei na Liderança europeia.

Um exemplo flagrante da escassez democrática na UE tem sido a actuação e o empolamento de estruturas desprovidas de cobertura legal, como o Eurogrupo (o grupo informal que reúne os ministros das finanças da Zona Euro) que ganhou um protagonismo e um poder decisório que em momento algum lhe foi conferido por qualquer mandato expresso dos eleitores.Excluído de qualquer mecanismo de escrutínio público, as suas reuniões transformaram-se num areópago de ideias ocas quando não num mero eco dos dogmas neoliberais. A imagem que logo me ocorre para caracterizar este grupo de especialistas em matérias financeiras (pouco mais de metade dos seus membros têm formação académica nas áreas de economia ou gestão e entre os restantes apresentam-se advogados, políticos, jornalistas e até desportistas) é a que nos legou o pintor Pieter Bruegel (o velho) na sua alegoria de meados do século XVI da Parábola dos Cegos.

Outra alarvidade de igual calibre é o teor do famoso Tratado Orçamental (tratado intergovernamental assinado em 2012 pelos Estados-membros da UE com excepção do Reino Unido e da República Checa)que defendendo a necessidade de estabilização da Zona Euro fixou limites de 3%do PIB para o défice orçamental e de 60% do PIB para a dívida pública, sem que alguém alguma vez tenha explicado ou demonstrado a origem de tais valores. Isso mesmo referiu recentemente Bagão Félix (ministro das finanças no governo de Santana Lopes) num artigo do PUBLICO que muito justamente intitulou «Eram uma vez 3% e 60%…» e onde explica a sua origem absolutamente aleatória. Além destes critérios de duvidosa fundamentação, que já remontavam ao tempo do Pacto de Estabilidade e Crescimento e que sistematicamente foram sendo violados por vários Estados-membros (incluindo as poderosas França e Alemanha), o Tratado Orçamental introduziu ainda um outro indicador de controlo– o saldo estrutural – que adicionou um novo factor de opacidade, uma vez que se trata de um indicador de cálculo difícil (inclui o desvio face ao produto potencial e uma taxa natural de desemprego) e profundamente discutível,atirando para o campo jurídico o que nunca deveria ter deixado de ser uma questão de exclusiva natureza política.

Não se estranhará então que a recente votação da comissão de Assuntos Económicos e Monetários do Parlamento Europeu para decidir a inclusão dos termos do Tratado Orçamental (que é bom lembrar que consiste num tratado intergovernamental que foi imposto na base do medo; concretamente no caso português dizia-se que se este não fosse aprovado, o país deixaria de ter acesso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade) no ordenamento jurídico da UE tenha resultado na sua rejeição, mas sim que tal facto pouca relevância tenha recebido na imprensa nacional – a excepção foram uns quantos artigos de opinião, como «Um dia para não esquecer», da eurodeputada Marisa Matias, «Uma boa notícia», de Viritato Soromenho-Marques, ou mais recentemente «O merecido chumbo do Tratado Orçamental» de Alexandre Abreu – e quando tal sucedeu até parece ter havido um especial cuidado em disfarçar os cabeçalhos. Foi assim que o PUBLICO nos deu a saber que os «Eurodeputados da “geringonça” rejeitam Tratado Orçamental», como se tivessem sido os únicos e esquecendo a real dimensão daquela decisão.

E senão vejamos: confirmando-se a não inclusão do teor do Tratado Orçamental no ordenamento jurídico comunitário implica que muitos das condicionantes e limites que se têm procurado impor às políticas orçamentais dos Estados-membros deixam de ter qualquer valor jurídico(serão ideias, como sempre foram, discutíveis mas nunca imposições); a rejeição tem que recuperar o princípio do respeito pelos direitos económicos e sociais previsto no Tratado de Lisboa e o inevitável debate que se seguirá (seja por impositivo do próprio Parlamento Europeu seja pelo natural retorno à disputa entre defensores e críticos das soluções austeritárias) deverá revelar o embuste que foi a crise das dívidas soberanas.

Talvez a Comissão Europeia, tão lesta a proteger os banksters como a punir os cidadãos europeus, não goste do que se avizinha, mas são grandes as probabilidades devermos oficialmente reconhecida a falácia da atribuição das responsabilidades pela crise às populações lançadas à voragem da ganância dum sector financeiro liberto das peias regulatórias e ao abrigo dum euro desenhado em seu exclusivo interesse (especialmente quando o crescimento da dívida pública, salvo no caso grego, se ficou a dever à decisão de resgatar o sector financeiro) e aberta avia para um profundo debate sobre as medidas que poderão efectivamente corrigir aqueles erros e evitar a sua repetição no futuro. Mas atenção, porque o debate – um verdadeiro debate democrático – não se poderá resumir às mesmas instâncias europeias (Comissão Europeia e Conselho Europeu) e nacionais (Governos e Parlamentos acríticos) que têm mantido os cidadãos à margem da informação e do debate das soluções gizadas por comissões de “peritos”, do mesmo calibre da que nos deu uma moeda única disfuncional e que colocou os Estados e os Cidadãos numa completa dependência do sector financeiro.

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