E os Franceses abstêm-se? Qual a relação dos Franceses com a abstenção?
A França vive em regime democrático e representativo/parlamentar perfeitamente consolidado desde há muito. A data de charneira é 1870, ano do início da chamada Terceira República. A vida em democracia em Portugal tem menos de um terço desses cento e quarenta e cinco anos franceses. Em Portugal, o desencanto, para não dizer o sentimento de falta de identificação e pertença ou, no pior dos cenários, a repulsa virulenta em relação à política perceptível a ouvido desarmado em muitas conversas de café, em transportes públicos, em inúmeros comentários em redes sociais pode ser comparada à realidade francesa? E o tempo que se conhece de democracia em ambos os países desempenha algum papel relevante?
Parece que o comportamento abstencionista tem vindo a aumentar em todas as democracias ocidentais, à excepção das que instituíram o voto obrigatório (Itália, Bélgica e Grécia). Portugal e França não são, portanto, excepção à regra.
Para início da boa inteligência do que está em causa, nada como analisar as estatísticas dos índices nacionais de abstenção nas penúltimas e últimas consultas eleitorais em todos os tipos de escrutínio:
Eleição | Datas | Abstenção (%) | Datas | Abstenção (%) |
Presidenciais | 22/04/2007
6/05/2007 |
1.ª volta 16,22
2.ª volta 16,03 |
22/04/2012
6/05/2012 |
1.ª volta 20,52
2.ª volta 19,66 |
Legislativas | 10/06/2012
17/06/2012 |
1.ª volta 39,6
2.ª volta 40,0 |
10/06/2012
17/06/2012 |
1.ª volta 42,78
2.ª volta 44,59 |
Regionais | 21/03/2010
28/03/2010 |
1.ª volta 34,42
2.ª volta 37,88 |
14/03/2010
21/03/2010 |
1.ª volta 49,5
2.ª volta 53,64 1] |
Departamentais | 20/03/2011
27/03/2011 |
1.ª volta 55,68
2.ª volta 55,29 |
22/03/2015
29/03/2015 |
1.ª volta 49,83
2.ª volta 50,02 |
Municipais | 9/03/2008
16/03/2008 |
1.ª volta 33,46
2.ª volta 34,8 |
23/03/2014
30/03/2014 |
1.ª volta 37,87
2.ª volta 36,45 |
Europeias | 7/06/2009 | 59,37 | 25/05/2014 | 56,5 |
A análise permite várias conclusões. Em primeiro lugar, os índices de abstenção permanecem relativamente estáveis em cada tipo de escrutínio, a apesar da tendência crescente. Excepção a esta verificação são as eleições departamentais (nível político-administrativo intermediário entre regiões e municípios, em francês, communes) e as europeias, em que houve descida da percentagem dos que não compareceram às urnas (respectivamente, cerca de 5 % e 3 %).
Por outro lado, as eleições presidenciais são, por larga margem (um pouco acima dos 20 %), as que motivam maior participação. Uma razão pode residir no facto de as presidenciais serem consideradas um escrutínio da maior importância.
As europeias são as eleições menos participadas
Em contrapartida, as europeias são aquelas em relação às quais se manifesta maior alienação da parte dos eleitores. As europeias são uma coisa longínqua? Pode explicar-se o fenómeno de Europa que se vende mal (com escreve Jean Quatremer a 11 de Maio de 2009, menos de um mês antes das europeias, no blog “Coulisses de Bruxelles” do jornal Libération) pelo binómio afastamento / aproximação em relação aos interesses, vida e nível do imediato dos eleitores? Com efeito, se as eleições europeias respeitam a um órgão distante e um ilustre quase desconhecido, as municipais são as eleições de maior proximidade.
A menor aldeia constitui uma commune (o que em Portugal seria uma mera freguesia de um município), elegendo um autarca próprio, conhecido de todos e que se reúne com todos os munícipes. Atente-se no índice de abstenção nacional nas autárquicas: menos elevado, com uma diferença entre 25 (em 2008) e 19 % (2014) em relação às europeias, sendo a segunda categoria de eleições com maior participação no país, a seguir às presidenciais.
Pode tal diferença explicar-se pelo critério da proximidade ou do afastamento das pessoas, ou será este um entre vários? Ainda no tocante às europeias, um outro factor pode ser de considerar: a percepção de que o Parlamento Europeu pode ser um actor menor por comparação com organismos como a Comissão, a despeito de ser o único para o qual existe sufrágio universal e directo a nível transnacional. Alain Lamassoure, deputado cessante do ex-UMP, hoje “Les Républicains”, partido de Nicolas Sarkozy), é dessa opinião: é difícil mobilizar-se — afirma — para um escrutínio “que não terá mais do que uma escassa influência sobre o governo da União Europeia”.
Ou então são vários os factores que, em conjunto, levam cidadãos para longe das urnas. Um afastamento que é igualmente sinal de perda de identificação, de percepção de não serem representados pelos políticos e pelos partidos, mais, de desconfiança ou mesmo hostilidade em relação a eles. Indicam-no estudos, inquéritos e depoimentos dados por cidadãos em reportagens televisivas.
Cidadãos cada vez mais afastados da decisão política
Os sintomas e as razões do divórcio de cidadãos no tocante à coisa pública em França não parecem divergir grandemente em relação ao que se passa na realidade portuguesa. Se este divórcio traduz por um lado o mero desinteresse, o pensar que a política é matéria e universo alienígena (um “on s’en fiche”), não deixa por outro de ser uma escolha em democracia, ligada a opções e pertenças políticas prévias. Por exemplo, na segunda volta das presidenciais de 1969, a esquerda esteve ausente, o que suscitou a consequente ausência de uma imensa parte do eleitorado desta ala: 31 % de abstenções no total, um recorde. Abster-se de participar pode, em parte, constituir mesmo um acto político (Pierre Bance, “L’abstentionnisme est un acte politique”, Libération, 7 de Fevereiro de 2007) de afirmação da rejeição do sistema existente, considerado injusto, em detrimento de um outro. Neste último caso, está-se perante um tipo demarcado de abstencionistas que não o são por desinteresse, apenas têm o ensejo por outra coisa, para a qual chegam a propor ideias. Opondo-se ao primeiro tipo de abstencionismo, designado, pela boca dos próprios que nele militam, “abstencionismo activo”.
[1] Próximas eleições regionais marcadas para 6 e 13 de Dezembro de 2015.