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Sábado, Dezembro 21, 2024

Económicas: O Verão Quente de 1972

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

O Depoimento

Marcelo Caetano

Um dos capítulos mais amargos do Depoimento de Marcelo Caetano, escrito em 1974 no seu exilo brasileiro, é possivelmente o que se refere à Reforma do Ensino: desde “a década de 60 a afluência de alunos às escolas de todos os graus de ensino tomou o aspecto de uma verdadeira avalancha: a multidão que repentinamente encheu as escolas não estaria talvez sequiosa de saber, mas pretendia obter conhecimentos e sobretudo qualificações escolares para poder com mais facilidade ganhar a vida em posições de maior relevo profissional” e, pior “na composição dessa multidão entrou em grande percentagem o sexo feminino: a tradicional vocação doméstica da mulher portuguesa desapareceu especialmente na nova geração, cujas jovens saíram de casa para seguir nos mesmos trilhos dos homens e exercer as mesmas actividades que eles”. Entretanto, a família e a igreja renunciavam à sua autoridade.

Veiga Simão

Marcelo dá um grande relevo aos estudos feitos no Ministério da Educação sob o Ministro Galvão Teles (seu colega na Faculdade de Direito de Lisboa), faz uma breve referência ao Ministro José Hermano Saraiva, uma das últimas nomeações de Salazar, e à sua substituição por Veiga Simão no início de 1970 e não disfarça os pontos de fricção com este e com a sua Reforma do Ensino, que explica, favoreceria a canalização dos alunos para a Universidade como percurso mais nobre em detrimento da frequência do ensino técnico-profissional, dava prioridade às escolhas do computador na criação de novos centros universitários(i) e excluiu como possível alternativa ao investimento público a expansão da rede através da subsidiação dos colégios privados. Por um lado, o deposto Presidente do Conselho de Ministros desmerece da visão progressista que muitos lhe atribuíam em função, por exemplo, do reconhecimento do direito de voto às mulheres, por outro explicita desacordos com as próprias políticas seguidas pelo seu Governo, desacordos que seriam depois, em democracia retomadas pelos partidos de direita.

No plano político, a par dos comunistas passaram, na visão do ex-governante, a perfilar-se trotskistas, maoistas e anarquistas, sobretudo nos meios estudantis. E nos meios estudantis não é unicamente a influência de Maio de 1968 que incomoda o autor, que se queixa que desde 1962, as estruturas estudantis de cada Faculdade passaram a estar sob as ordens da RIA – Reunião Inter Associações o que me parecer ter a ver com a forma, hoje retratada na historiografia(ii) como as Associações se passaram a coordenar entre si,  sem excessiva exposição à repressão. Embora tenham surgidos novos actores no movimento estudantil, sobretudo em ligação com a radicalização de católicos – que em Económicas / ISCEF terá abrangido  gente da JUC –  ainda hoje não percebo quem era visado  na referência do Presidente do Conselho a anarquistas, sendo verosímil que apenas visasse assustar quem seguia as “Conversas em Família”.

 

O ISCEF, “ilha de liberdade

O ano lectivo de 1969/70 ficou, para quem ingressava posteriormente no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), a ser o ano algo mítico de referência em termos de processos de contestação pedagógica e de reivindicação da liberdade de discussão de conteúdos, se necessário com interrupção dos professores.

Estavam os estudantes da altura preparados para este tipo de intervenção? Muitos, de diferentes sectores ideológicos, estariam. Em 1972 tive acesso a um opúsculo (103 páginas) intitulado Parte dos Salários no Rendimento Nacional, capeado por uma Nota Prévia que explicava: 

“Este estudo foi inicialmente elaborado para um exame do curso de Economia e, seguidamente, remodelado, reordenado, desenvolvido em certos capítulos, explicitado em alguns pontos.”

Tratava-se de uma edição dos autores José Gomes e Manuel Ribeiro, divulgada por uma Livraria Júlio Brandão, situada em Vila Nova de Famalicão, que inseria em cada livro uma relação dos que distribuía – quase todos já fora de mercado organizada por colecções. Clarifique-se que os nomes dos autores CARLOS José Gomes PIMENTA e PEDRO Manuel de Oliveira Ribeiro SIMÔES figuravam abreviados para efeitos de edição, cujas referências não eram propriamente inócuas e não só remetiam para o marxismo como única base teórica científica como para a conferência de 1969 dos partidos comunistas e operários.

Outros estudantes, noutras latitudes ideológicas, terão publicado igualmente por outras vias trabalhos seus. Recordo aliás a prelecção de um dirigente estudantil no jardim do Instituto a explicar aos estudantes do primeiro ano, que era útil aprender marxismo porque os capitalistas iriam precisar de quem soubesse marxismo… E sem dúvida que após “travessias do deserto” nem sempre demoradas ou honrosas muitos dos “revolucionários” da altura se vieram a reconverter com proveito.

De qualquer forma o ISCEF reorganizou-se em 1970/71, se não com base em perspectivas revolucionárias, pelo menos com base numa postura liberal

  • António Manuel Pinto Barbosa

    o ex-ministro das Finanças de Salazar, António Manuel Pinto Barbosa, que exercia as funções de governador do Banco de Portugal, e de quem se dizia que havia protegido o procurador à Câmara Corporativa, Francisco Pereira de Moura, quando este se insurgira em 1965 contra o candidato à eleição, agora indirecta, como Presidente da República, do na altura Presidente em funções, Américo Tomás, sem que o candidato tivesse apresentado o seu programa `para a reeleição, aceitou exercer durante um ano as funções de Director do ISCEF;

  • o Director nomeado promoveu a eleição de cinco subdirectores de entre, julgo, os primeiros – assistentes, isto é, assistentes doutorados;
  • Ernâni Lopes, próximo de Pinto Barbosa, organizou brilhantemente o esforço de acomodação de 28 turmas do primeiro ano, cada uma com um assistente de Teoria Económica I, estando as turmas enquadradas em 4 turnos teóricos , e leccionando cada um dos 28 assistentes igualmente uma turma de Economia Aplicada aos mesmos alunos;
  • os estudantes do primeiro ano foram convidados a eleger delegados de turma, que negociaram com a regência de Teoria Económica I o regime de avaliação de conhecimentos, assente em multiplas fontes de informação, inclusivamente ligadas ao trabalho de grupo, existindo embora informação individual com carácter eliminatório;
  • para apoio ao ensino foi organizado um livro de “readings”.
Francisco Pereira de Moura

Creio que Ernâni Lopes foi talvez, juntamente com Francisco Pereira de Moura e as suas Lições de Economia e a Análise Económica de Conjuntura, em Teoria Económica II, leccionada no 2º ano, e, ultrapassado o tronco comum dos dois primeiros anos, com Eduardo de Almeida Catroga, regente de Economia de Empresa, dos professores que mais marcaram os alunos que ingressaram em 1970/1 no primeiro ano, em número de 1000 a 1200, dos quais apenas concluíram o curso cinco ano depois uns 600, 200 em Economia e 400 em Finanças. No total o Instituto viria a atingir em 1972 cinco mil alunos. De notar que muitos destes tinham frequentado a Faculdade de Economia do Porto onde o ensino no primeiro ano do curso parecia estar orientado para repelir os estudantes.

Ernâni Lopes

No ano seguinte era a vez do futuro banqueiro João Rendeiro ingressar no primeiro ano do ISCEF, tendo deixado no Testemunho de um Banqueiro publicado em 2008 memórias favoráveis de Ernâni Lopes e de outros docentes mas vincando o seu incómodo pelas lutas estudantis darem geralmente origem à perda de aulas.

A Associação de Estudantes do ISCEF esteve em 1971 em disputa, entre uma lista da “Sedes” formada por estudantes dos anos mais avançados, que reuniu 559 votos e onde entraram designadamente Jorge Correia da Cunha e Manuel Sebastião mas perdeu face a uma lista liderada por Ferro Rodrigues a qual obteve 732 votos. Esta contava com dois vice-presidentes próximos de Ferro mas incluía quatro vogais maoístas aparentados aos sectores que reclamavam de “um ensino popular”. A direcção eleita cedo se partiu e na prática a vida associativa ficou sendo hegemonizada pelos últimos através de uma “reunião geral de colaboradores” que retiraria a sua legitimidade da linha geral de orientação decorrente do programa da direcção.

Independentemente das sensibilidades correlacionáveis com os anos de ingresso ou com a opção economia/finanças a partir do terceiro ano, seria certamente útil ter em conta se os estudantes eram oriundos de Angola ou Moçambique, e, se metropolitanos, dos Açores, da Madeira ou da “Província”, ou, pelo contrário, de família radicada na capital ou em concelhos limítrofes. E a existência de aulas nocturnas veio favorecer a frequência de trabalhadores estudantes, aliás era muito antiga a tradição de inscrição e prestação de provas por parte de “alunos voluntários”.

Desconheço se está a ser feita investigação académica sobre o movimento estudantil do ISCEF e é curioso que a comunicação social e mesmo algumas memórias que abrangem a época – incluindo o Testemunho de um Banqueiro – omitam aspectos significativos incluindo a recuperação de posições nas Direcções das Associações de Estudantes do IST e do ISCEF em 1972 por parte de militantes ligados às organizações estudantis do PCP ou que ingressaram directamente na União dos Estudantes Comunistas, formada, creio, nesse ano. A candidatura na AEISCEF tem características particulares – adopta a consigna “Por uma Associação de Todos os Estudantes “e não “Para a Unidade do Movimento Associativo”, e é precedida por um Manifesto -“Eleições fantoche” onde um dos membros da lista inseriu uma referência às “celestiais reuniões associativas” . A gestão da associação pelas “reuniões gerais de colaboradores” não deixava boas recordações. Ganha facilmente as eleições para a Direcção e para o Conselho Fiscal mas para a Mesa da Assembleia Geral é eleita uma lista liderada por Ferro Rodrigues, que só concorre àquele órgão.

Julgo também não estar estudado como é que na época o poder político seguiu esta experiência pacificadora. Pinto Barbosa, que, tem-se hoje, creio, consciência, não era próximo de Marcelo Caetano, não quis permanecer em funções tendo sido sucedido como Director por um professor ligado ao sector empresarial – Léglise Vidal. Estaria talvez a ser já equacionada pelo Ministério da Educação a criação de outros cursos de economia e de gestão de empresas que descongestionassem o ISCEF, como veio a acontecer por Decreto-Lei publicado em finais de 1972 . Marcelo Caetano que ainda em 1965 escrevera um artigo contra a doutorice nas propostas de reorganização do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e do Instituto de Estudos Sociais teve de aceitar o academic drift e a substituição do Instituto de Estudos Sociais pelo ISCTE, criando-se respectivamente valências de Economia e de Organização e Gestão de Empresas concorrentes do ISCEF, redenominado Instituto Superior de Economia.

 

A invasão pela polícia de choque em 16 de Maio de 1972

Em todo o caso não era esperada a invasão do ISCEF pela polícia de choque, que se seguiu à intervenção no IST que na manhã de 16 de Maio de 1972 encerrou a respectiva Associação,

A intervenção teve lugar em pleno período de aulas, agredindo estudantes (e assistentes) que se encontravam dentro do edifício, causou feridos e assinaláveis estragos materiais. O Conselho Escolar reagiu e a reacção chegou à imprensa. Percebeu-se que as autoridades académicas tinham sido ignoradas.

Em Reunião Geral de Alunos, entre a indignação e a estupefação, foi decretada a greve, que durou meses, e decidido fazer um “comunicado à população” que foi distribuído durante semanas nas caixas do correio por brigadas organizadas no que para muitos foi uma experiência de participação importante. Aliás o encerramento da Associação, operado em 16 de Maio, abrangera a cantina e não a Secção de Folhas.

A greve foi, deve dizer-se, uma greve activa, em que se sucederam diversas reuniões gerais de alunos – e se soube que continuavam a ter lugar assembleias gerais de assistentes – num ambiente de boa cooperação interna entre a Direcção da Associação e o Presidente da Mesa da Assembleia Geral Ferro Rodrigues. Realizadas ao fim da tarde, contribuíram para a integração dos trabalhadores – estudantes.

Tenho ideia de ter sido durante a greve que teve lugar, um conjunto de sessões de trabalho sobre inflacção, que conforme Marcelo Caetano teve de reconhecer no Depoimento, o Governo não conseguiu na altura controlar.

E houve na altura, como já era habitual em momentos de luta estudantil, pelo menos duas sessões de cinema onde foram exibidos o conhecidíssimo (na altura e no meio) Couraçado Potemkine de Serguei Eisenstein, de que me tenho lembrado nos últimos meses sempre que se fala de Odessa, e o menos conhecido A Súbita Riqueza dos Camponeses Pobres de Kombach, realizado no ano anterior por Volker Schlöndorff.

No início de Setembro, com intermediação do Director Léglise Vidal vota-se o levantamento da greve contra compromisso de reabertura da Associação, que é cumprido.

Na altura a Associação de Estudantes publicou uma espécie de relatório retrospectivo da greve, dia a dia, que talvez possa ser ainda localizado nos arquivos de algum participante mais organizadinho… ou nos arquivos da PIDE.

 

Um verão quente que se prolongou pelo Outono e pelo Inverno

A experiência descrita afectou diferentemente os estudantes que nela participaram, alguns dos quais estavam já a concluir os seus cursos, outros a iniciá-los.

Não seria infelizmente a última. Em 12 de Outubro o estudante de Direito Ribeiro Santos era morto a tiro por um funcionário da PIDE dentro das instalações, em circunstâncias que já vi descritas das mais diversas formas. Talvez isso mereça algumas linhas mais próximo dos 50 anos. No início do ano seguinte Francisco Pereira de Moura era demitido com outros funcionários públicos pela sua participação na vigília realizada na capela do Rato.

O ISCEF, meses depois ISE, actualmente ISEG passaria por outras. Mas tudo acabou por ficar bem.

Estou a ler um folheto publicitário do Expresso que dá os parabéns ao ISEG pelos seus 111 anos (considera-se incluído o período em que foi Instituto Superior do Comércio, e anuncia que o ISEG figura pela primeira vez no Ranking do Finantial Times nas 50 melhores escolas universitárias do mundo a formarem executivos. Vou guardar as 4 páginas e o texto da Presidente Clara Raposo. Pode ser que tenha necessidade de os vir utilizar.

 

Notas

(i) Em detrimento, lamenta-se Marcelo, da antiga Universidade de Évora que deveria ter sido restabelecida.

(ii) Por exemplo, na resultante da investigação de Luísa Tiago de Oliveira sobre o movimento estudantil no IST.

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