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João de Sousa

Sábado, Novembro 23, 2024

Edson

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Edson sorria, sorria feliz, completamente embrenhado num mundo só seu e nele criava as cores mais elucidantes da vida e de todas as outras verdades tantas vezes escondidas pela vergonha de ser assim ou assado, mas continuava e conseguia até contar os poros de uma folha de roseira do tamanho do dedo de uma criança.

Em cada canto dos seus pequenos ouvidos escutava feliz o som das surdinas e decorava a cor de todas as bandeiras dos quintais e arredores, bebia da chuva o sabor do longe e escrevia em pedras, todas elas pequenas, sempre pequenas como a sua mão que as rodeava com dedos também pequenos e ouvia a sua mãe da cozinha, nada lhe era indiferente e todo ele sensações e emoções como um anjo que viajava todos os dias pelas casas das pessoas abandonadas.

Degraus que subiam e desciam, a tarde florescia o anoitecer, a manhã passada no sombreiro de uma árvore de nome desconhecido embelezavam a fantasia da semana que terminava sempre às sextas feiras.

Do mármore das escadas, os sapatos chilreavam os passos dos vizinhos que por ali caminhavam e sempre num bom dia Edson que lhe caía tão saborosamente como frutos que ele adorava mesmo sem os lavar, pois, o que o importava lavar com sujo a fruta macia e lavada pelo divino naquele brilho de sol matinal.

Edson, sentado no banco de trás do tempo tantas vezes duvidava que tinha as duas mãos, olhava para elas e só conseguia ver uma, rodopiava a cabeça e lá encontrava a outra. Perguntava-se imensas vezes sobre o que faziam os cientistas e quais seriam afinal as suas funções, a sua mãe ainda jovem e doente tomava muitos comprimidos para se manter de pé e Edson olhava para eles e perguntava-se como seria possível coisas tão pequenas amordaçarem dores e equilibrar as pessoas, pensava muito sobre a razão de ter de haver razão em tudo e também porque razão os homens não entendiam nada disso com as ganâncias nas garras avermelhadas dos lábios gulosos.

Perguntava-se tantas vezes sobre acreditar ou não nos homens, se confiar resultava e dava proveitos para viver, a vida era enfim, uma questão de facto para ele. Pegou num pequeno dicionário de bolso e procurou o significado de confiar, leu com todas as pausas necessárias para que obtivesse um resultado mais assertivo, questionou-se se era um substantivo ou um adjectivo, encontrou o que pretendia e decidiu trocar-lhe as voltas e mudar-lhe a definição, não fazia sentido para ter de ser adjectivo porque acreditava mais no objectivo e viajou nele como um navio iluminado bem perto de casa, sempre de baixo do olhar da sua mãe a quem ele amava tanto, porque amar para ele era muito mais que o que as palavras dizem e começava a desacreditar-se de palavras, ouvira tantas vezes pela boca do seu pai “palavra leva-as o vento”, e não era fácil para ele entender porque razão o vento levava as palavras.

Um dia, a vida trocou-lhe as voltas e teve de enfrentar a morte da sua mãe. No funeral, quase toda a gente chorava e para ele, que apenas conseguia sorrir, ria-se enquanto o choro dos outros o incomodava, não entendia que naqueles momentos as pessoas reagem assim, ouvia, entretanto, por muitos, que o choro significa dor ou perda, mas para ele, a sua manifestação de dor pela perda era diferente e porque razão tinha ele de ser como todos os presentes o obrigavam a ser. Será que haver diferença era defeito? Perguntava-se ele a si mesmo e não conseguia chegar a conclusão nenhuma.

Para onde terá ido a minha mãe?

Crescia sozinho nos braços da sorte. Deitava-se no lugar ainda quente onde se deitava a sua mãe e nem uma lágrima, isso de lágrimas era uma coisa muito esquisita e rir era a sua forma de se manifestar, porque o obrigavam os rituais a isso se ele tinha os seus próprios rituais, ou então, porque razão não os podia ter?

O quanto me incomodam os adjectivos, ter de os ler sabendo que nada acrescentam a este vazio sem som nenhum, por isso prefiro os substantivos, esses sim, somam mais verdade à minha vida preenchida cada vez mais com os silêncios do meu prazer de vida.

Sonhos que partem, a morte leva-os para lugares muito longínquos, enfraquecem qualquer desejo de sonhar, de criar, por isso rir seja a melhor coisa para evitar mais dor, rir ensina-nos e aprender a vida e na vida crescer aprendendo como é que cada noite é cada vez longa, mais escura, o dia é tortuoso e cansativo, um silêncio voraz que alimenta nervos e a fome passa a ser um hábito e nada apetece comer e rir apenas, viaja-se para dentro de livros que lemos para amar cada vez mais esta vontade de crescer no lugar certo e que nunca chega, escorregam-nos das mãos todos os músculos que reforçam as pernas para caminhar para qualquer lugar, outro sítio, outras paisagens, nada de felicidades, verdade, trocar a posição das letras da palavra amor, outro lugar qualquer será garantidamente melhor, mesmo que não seja mas que importa ser ou não se os impulsos assim nos levam.

E a minha mãe viajou certamente para muito longe! A morte é uma invenção para nos contentarem com histórias mal contadas ou ditas para nunca nos encantarem, apenas e só, isso.

O quarto tornou-se num peso terrível, sinto nele uma tempestade horrível de chuvas e trovoadas que nos empresta para nos maçar mais ainda com todas as viagens perdidos e o coração um tronco seco onde nem sangue nele, apenas emoções e sensações, o sono vira uma paisagem esquecida e nem a ciência me explica por onde andam as estrelas de ontem.

Uma porta para a rua e duas ou três janelas onde observo o tempo, o movimento e as folhas que abanam penduradas num caule que as sustenta, as horas passarem e como detesto os horários para tudo, o escárnio da escola que apenas me ensina geografia, matemática e até meteorologia, os mapas dos continentes e os países, detesto ter que obedecer o que não entendo, esta obrigação de ter que parecer mesmo nada sendo, o sujo do chão num pó que apenas cansa, isso e só, cansa, ninguém me consegue explicar o que é ou onde mora a felicidade, sinto ser cada vez mais difícil saber de que fórmulas se faz a felicidade, o olhar sisudo dos cientistas e as métricas redondas, o triângulos obtusos e cortados para as teorias do bem fazer e nada fazem, as contas erram o meu destino e sigo sem rumo o caminho que apenas me vai surgindo no horizonte, essa fonte repleta de livros com palavras redondas para que consiga um dia qualquer sentado num banco qualquer escrever com palavras para bem decifrar e explicar em que curvas mora o destino.

A chuva molha-me as ideias regando-as como um regadio de legumes, as palavras que escrevi desapareceram das folhas velhas do meu sonho e a vida começa a partir dali.

E de tudo o que escrevi, apenas resto eu naquele banco de ninguém brincando com os meus sorrisos.


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