Da primeira volta das eleições legislativas, francesas, de 12 de Junho, resultou já uma clara maioria: a dos abstencionistas. Pela segunda vez na história da V República, o número de abstencionistas ultrapassou os 50% do eleitorado; assim, depois dos 51,30% registados em 2017, chegou-se agora aos 52,48%, com a formação do recém reeleito presidente Emmanuel Macron (Ensemble!) a registar uma percentagem inferior à da sua reeleição.
Entre as causas para este verdadeiro desastre democrático, despoletado há vinte anos com o aumento dos mandatos presidenciais para os cinco anos que, dando ainda maior pendor à figura presidencial, acabou por minimizar o voto parlamentar e mais recentemente, a crise da representação parlamentar que acentuou ainda mais a incompreensão da figura do deputado, espartilhado entre raízes locais e um papel nacional. Como se isto não bastasse, acresce ainda a crescente tendência para a menorização do debate e da intervenção política – fenómeno bem visível nas semanas que se seguiram à reeleição de Emmanuel Macron, quando o próprio presidente e os dirigentes do Ensembles! optaram por se abster… de discutir, esclarecer, debater; em resumo, de desempenhar um papel central como dinamizadores da campanha eleitoral e da informação aos eleitores – talvez ditada por mero tacticismo – uma baixa participação não constitui necessariamente uma má notícia para uma formação política que pode contar com eleitores mais velhos, mais qualificados e em melhor situação socioeconómica – ou excesso de confiança num status quo que até agora sempre beneficiou os vencedores da eleição presidencial e nunca os derrotados.
O resultado do primeiro embate de Domingo passado que colocou a formação «Ensemble!», com 25,8% dos votos, numa situação de empate técnico com a «NUPES» (Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale), coligação que se formou em torno do candidato da esquerda, Jean-Luc Mélenchon, e que alcançou os 25,7%. Estes resultados, divulgados pelo Ministério do Interior francês, são contestados pelo jornal Le Monde que dá 26,2% à «NUPES» e 25,9% ao «Ensemble!», justificando a diferença pelo atraso do ministério na modificação das filiações de alguns candidatos.
Independentemente desta polémica, o resultado não deixa de ser um revés para Emmanuel Macron, e uma vitória, temporária, para a coligação da esquerda, que, a partir da sua eliminação na primeira volta das eleições presidenciais, conseguiu criar uma dinâmica dinamizadora nestas eleições legislativas e embora a união dos partidos de esquerda não lhes tenha dado uma votação maior do que a soma dos votos individuais obtidos em 2017, a unidade contruída quebrou a lógica do voto maioritário e levou quase 400 candidatos à segunda volta no próximo domingo.
Tudo indica agora que o resultado da segunda volta não favoreça as pretensões da «NUPES» e de Mélenchon, que se deverá limitar ao papel de oposição a um governo Macron, mais enfraquecido e vulnerável que nunca, quando o ressurgimento do alinhamento esquerda-direita parece cada vez mais evidente, se avolumam as perspectivas de ver Emmanuel Macron a aproximar-se cada vez mais da sua ala direita e o «Rassemblement national» (RN) de Marine Le Pen não regista uma quebra expressiva de votos entre eleições presidenciais e legislativas e apresenta 208 candidatos à segunda volta.
Em vésperas de uma importante segunda volta e depois deste parêntesis para um olhar mais detalhado sobre os resultados da primeira volta, voltemos à questão charneira do crescimento da abstenção, fenómeno transversal à maioria das democracias ocidentais, tantas vezes endossado ao puro desinteresse dos eleitores, quando a realidade poderá muito bem ser diferente e especialmente pouco abonatória para a classe política e para as máquinas partidárias que, com o tempo se têm transformado em especialistas em promessas não cumpridas.
No caso do actual presidente Emmanuel Macron, são especialmente conhecidas as promessas de “modernização” do mercado de trabalho e do sistema social, que nos seus primeiros cinco anos no cargo, tiveram tradução prática no aumento do poder de compra para as classes média e alta, acompanhada de uma redução de 0,5% para os mais pobres, agravando assim o aumento da desigualdade social que levou aos protestos dos Coletes Amarelos em 2018. Também se comprometeu a resolver o problema dos sem-abrigo – matéria em que ele está longe de ser o primeiro a fazer promessas vãs, pois já anteriormente o socialista Lionel Jospin jurara acabar com problema, tal como o fizera o inefável Nicolas Sarkozy –, promessa que não o coibiu de propor no orçamento de 2019, um corte de 57 milhões de euros, no programa de apoio a centros de habitação temporária para sem-abrigo.
Macron reduziu a taxa de imposto sobre as empresas de 33,3% para 25%, cortou o custo da mão de obra ao transformar um crédito fiscal de 20 mil milhões de euros anuais numa redução permanente nas contribuições patronais para a segurança social e alterou a legislação laboral no sentido de facilitar os despedimentos; para as famílias eliminou o imposto sobre a riqueza (o ISF, imposto sobre a riqueza imobiliária) e criou uma taxa fixa única sobre os ganhos de capital para estimular o investimento em empresas e na economia real.
Tudo aponta para que o incumprimento de promessas seja uma estratégia deliberada, tanto quanto as opções políticas que ao longo das últimas décadas têm favorecido o processo de concentração da riqueza, mas como o fenómeno da abstenção não se pode resumir aos sentimentos de desilusão ou impotência dos eleitores, a ele voltaremos com os resultados da segunda volta francesa.