O filme ruim é muitas vezes preferível ao mediano (vale dizer medíocre) e mesmo ao filme “bom”, mas anódino, inercial, sem alma. Para não deixar tão vaga essa afirmação, cabe observar uns poucos casos concretos.
Estão em cartaz alguns filmes realmente bons, como o brasileiro “O processo” e o sul-coreano “A câmera de Claire”. “Bons” do meu ponto de vista, é claro, por apresentar, cada um deles, um olhar pessoal sobre o mundo e a vida mediante uma utilização criativa da técnica e dos meios expressivos à disposição. Por esse critério, são infinitas as variações possíveis: podem ser bons tanto um filme árido e exigente ao extremo como um blockbuster de entretenimento.
“Paris 8”, de Jean-Paul Civeyrac, é um filme de prestígio. Foi exibido no último festival de Berlim e recebeu elogios de publicações tão diversas quanto o jornal Le Monde e as revistas Les inrockuptibles e The Hollywood Reporter. Mas a sensação que se tem diante dele, ao menos no meu caso, é de déjà vu. Não tanto por seu argumento – a história de um rapaz do interior, Etienne (Andranic Manet), que chega a Paris para estudar e fazer cinema – quanto pela forma como o desenvolve em linguagem audiovisual.
Referências e pose
Recorrente na literatura francesa pelo menos desde o início do século 19, o romance de formação do jovem provinciano que descobre as maravilhas e ciladas da grande capital poderia receber uma revitalização interessante, mas no filme de Civeyrac esse tema romanesco acaba asfixiado por uma rede de referências e de poses que o mantêm preso a um marco, o dos primeiros filmes da Nouvelle Vague.
Vejamos como. Rodado num preto e branco convencionalmente “bonito” que lhe confere, logo de cara, uma certa atmosfera atemporal, o filme girará o tempo todo em torno das relações entre o cinema e a vida, mas sempre por meio de citações de poetas, filósofos e cineastas. Logo no início, na faculdade de cinema, um estudante diz que os filmes não devem ser elucubrações intelectuais, mas captar o frescor da vida real, concreta. E é exatamente isso que “Paris 8” não faz.
Mesmo nos momentos em que parece prestes a atingir uma poesia audiovisual própria, o cineasta hesita, correndo para o porto seguro da referência esclarecedora e legitimadora. Um exemplo: acreditando-se sozinho, Etienne senta-se ao piano do apartamento parisiense que divide com Valentina (Jenna Thiam), uma moça que acabou de conhecer, e começa a tocar o envolvente adagietto da quinta sinfonia de Mahler. Às suas costas, vemos Valentina entrar silenciosamente na sala e deitar-se no sofá. É um instante de delicadeza e encanto, em que todas as ideias e emoções se encontram em estado de potência, de possibilidade. Mas logo o protagonista se dá conta da presença da moça e ministra uma pequena aula: “Esta música toca no filme Morte em Veneza, que é sobre tal e tal coisa”.
E é isso que se repete, do início ao fim: em planos bem compostos, movimentos elegantes de câmera, montagem cadenciada, sucedem-se – em aulas, festinhas ou conversas de café – as discussões sobre arte e vida regadas a citações. De Pascal (de cujas Provinciais foi extraído o título original, Mes provinciales) a Deleuze, de Nerval a Pasolini, de Flaubert a Novalis, pense num poeta, escritor ou filósofo importante e ele estará lá. Sem contar as referências cinematográficas propriamente ditas.
Numa das primeiras aulas na faculdade, a professora fala sobre a exuberância do cinema italiano entre as décadas de 1950 e 1970 (Fellini, Visconti, Antonioni, Pasolini, o giallo, a comédia de costumes, o faroeste espaguete…) e diz que, assim como depois do Renascimento e do barroco passaram a rarear os grandes pintores italianos, hoje não existem cineastas italianos à altura daquela era de ouro. Um aluno cita Paolo Sorrentino e a professora sorri, desdenhosa: “Não está à altura dos que eu citei, embora tente imitar alguns”.
Diluição
Com alguma maldade, poderíamos dizer que o filme de Civeyrac mostra que isso é verdade também com relação ao cinema francês atual, em sua relação com a geração de Godard, Truffaut, Rohmer, Chabrol e Rivette. Se Philippe Garrel já pode ser visto como uma espécie de epígono da Nouvelle Vague, tentando em seus filmes reviver nostalgicamente o encanto daquele cinema, mas sem o frescor da invenção e da novidade, Civeyrac, a julgar por “Paris 8”, me parece a diluição da diluição.
Mal comparando, é como certos bares chiques e caros de São Paulo que mimetizam a arquitetura, a decoração e a mobília dos antigos botecos populares do Rio. É a estetização (e esterilização) do que, em sua origem, fervilhava de vitalidade.
Num país marcado pela cinefilia (e pela literatura) como a França, talvez seja difícil escapar do peso da tradição e do cânone, mesmo quando se pretende questioná-los. Mas não é impossível romper o círculo vicioso da autorreferência e da nostalgia. Está aí, por exemplo, um Olivier Assayas, que se nutriu da mesma erudição cinematográfica (foi crítico dos Cahiers du cinema, aliás), mas a incorporou de forma mais pessoal em sua poética, fazendo filmes sobre as mais variadas coisas do mundo, da família ao terrorismo, do consumo ao espiritismo. Bertrand Bonello é outro exemplo possível, entre vários outros.
Olhos do deserto
Em contraste com o “bom” mas exangue “Paris 8”, entrou em cartaz um filme com defeitos e limitações muito mais evidentes, mas que talvez ofereça ao espectador uma experiência mais interessante e divertida. Trata-se de “Olhos do deserto”, do canadense Kim Nguyen.
Seu argumento é absurdo e, por isso mesmo, promissor: em Detroit, um jovem técnico (Joe Cole) opera à distância um hexápode (aquele robozinho em forma de aranha) que vigia um campo de petróleo e seu oleoduto num país desértico do norte da África; no curso da sua vigilância, ele se envolve com uma moça local (Lina El Arabi) que quer fugir de um casamento arranjado pelos pais.
Esse relacionamento sentimental entre duas pessoas separadas por milhares de quilômetros, mediado por uma pequena máquina, poderia render um grande filme nas mãos de um cineasta ousado e inventivo, digamos um John Carpenter, que sempre soube fazer da inverossimilhança um fator de criação, sem se importar muito com a coerência psicológica de seus personagens ou com a factibilidade técnica de suas fabulações.
O problema de “Olhos do deserto” é ficar no meio do caminho, sem se lançar no voo arriscado que poderia elevá-lo ao sublime ou espatifá-lo no desastre (e alguns desastres também podem ser sublimes). O filme se trava, por exemplo, ao perder tempo tentando dar consistência psicológica e emocional ao protagonista, inventando-lhe um casamento desfeito, ou quando mostra o dilema ético do namorado clandestino da moça do deserto, que hesita em roubar petróleo do oleoduto para conseguir dinheiro e fugir com ela.
Mais divertidas são as cenas francamente inverossímeis, como uma em que o robô-aranha guia pelo deserto um andarilho cego, que imagina estar falando com uma pessoa. Ao estranhar o som metálico que acompanha a voz emitida pelo robô, ouve como resposta: “É uma órtese que eu tenho no joelho”.
Do ponto de vista dos efeitos e da tecnologia, os recursos do filme são modestos, mas não chegam a resvalar no trash, o que talvez seja uma pena. Analogamente, o amor entre o americano e a moça do deserto, por mais que seja deslavadamente romântico, não atinge um ápice de pieguice que poderia justificá-lo.
Potências do filme ruim
Pois existem duas maneiras básicas pelas quais o filme ruim pode atingir o sublime. Uma delas é a comovente inépcia técnica, o lapso entre as intenções evidentes e os recursos disponíveis. É o caso, por exemplo, dos trabalhos de Ed Wood, celebrado como “o pior cineasta do mundo” e homenageado por um belo filme de Tim Burton. Ou das obras dos brasileiros Affonso Brazza e Simião Martiniano. Em um e outros, há a mesma crença cândida no poder de encantamento da imagem e da fantasia, a mesma entrega sincera a um desejo de expressão, um reatamento com a infância, com a magia do primeiro cinema. Para se ter uma ideia do que quero dizer, aqui vai o trailer de um “clássico” de Brazza, No eixo da morte (1998):
Um outro meio de o filme ruim se tornar extraordinário são as situações exacerbadas, o desbordamento de emoções, o desprezo pelo tom comedido e pelo bom gosto estético. Um exemplo antológico é este desfecho de Dio come ti amo (1966), de Miguel Iglesias:
Com seus tropeços e excessos, sua pedagogia do erro, o filme ruim frequentemente diverte, emociona, incomoda, faz pensar na natureza do cinema como diversão popular, atração de feira, brincadeira da imaginação. O filme convencionalmente “bom”, que meramente reitera o que já foi provado, que não arrisca um passo em falso e não expõe um desejo visceral do seu criador, pode ser, por sua vez, uma experiência tediosa e inútil.
Por José Geraldo Couto, Crítico de cinema, publica no Blog do IMS | Texto em português do Brasil
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