No texto, o pontífice identifica mazelas da sociedade, critica modelos econômicos e pede uma política melhor.
A nova encíclica do papa Francisco, Fratelli Tutti, foi apresentada ao mundo pelo santo padre na manhã deste domingo (4), na praça de São Pedro durante a oração do Angelus. O documento, que foi assinado na tarde do dia anterior junto ao túmulo de São Francisco, em Assis, trata da fraternidade e da amizade social.
Esta é a terceira encíclica de Francisco, sendo as anteriores Lumen Fidei (2013), Laudato si (2015). Antes de seu lançamento, o documento se viu envolto na controvérsia de seu título. Alguns quiseram ver nele algum tipo de machismo porque sua tradução, “Todos irmãos”, excluiria as mulheres. Entretanto, a texto inicia com uma citação de São Francisco e, como é costume eclesial, as primeiras palavras de uma encíclica são as que a nomeiam.
Muitas especulações e expectativas se criaram sobre Fratelli Tutti, uma vez que já se sabia que Francisco retomaria algo da Declaração de Abu Dhabi, assinada conjuntamente com grande imã de Al Azhar, Ahmed At-Tayyeb, nos Emirados Árabes Unidos, que também trata da fraternidade humana. Além desse documento, o papa já havia anunciado que retomaria suas reflexões sobre a pandemia de Covid-19.
O lançamento da encíclica se deu por ocasião da memória litúrgica de São Francisco de Assis, de quem o pontífice toma o nome e a inspiração do espírito fraterno que evoca no documento. Da janela do palácio apostólico, Francisco fez uma breve homilia sobre a parábola dos maus vinhateiros antes da oração do Angelus, tratando da responsabilidade que cada um tem em dar frutos para o Reino de Deus.
Confira a íntegra da Encíclica Fratelli tutti (Todos Irmãos)
Após a benção, Francisco comentou sobre a Fratelli tutti. “Os sinais dos tempos mostram claramente que a fraternidade humana e o cuidado da criação formam o único caminho em direção ao desenvolvimento integral e a paz”, refletiu, fazendo a ligação entre este documento e a Laudato si. Ele também anunciou o retorno das impressões do jornal vaticano L’Osservatore Romano, onde a encíclica foi publicada, e o encerramento do “Tempo de criação”, período em que a Igreja e outras religiões celebraram um jubileu pela Terra.
Nova encíclica é o testamento de Francisco
Por Mirticeli Medeiros
“Lírica, bíblica e existencial”, foi uma frase que Carlos Drummond de Andrade pronunciou ao descrever a obra de Adélia Prado. Pedimos licença a esses mestres da nossa literatura, para definir, dessa forma, a nova encíclica de papa Francisco, Fratelli Tutti (Todos Irmãos), publicada neste domingo (4), que trata da fraternidade universal e da amizade social.
Inspirado nos ideais de Francisco de Assis, o santo do século 13 que pregou a paz e a concórdia, o papa traça um plano de ação para reaproximar as pessoas em plena pandemia. Foca em valores como o diálogo, o respeito e o cuidado com os mais pobres em âmbito público e privado. Um texto sentimental, carregado de ensinamentos bíblicos aplicados à realidade e, por assim dizer, humanista. Um documento que foi feito para ser lembrado. É o testamento de Francisco.
Na encíclica, o pontífice reforça conceitos elaborados ao longo de seu pontificado. Elege temas já debatidos em suas encíclicas, discursos e catequeses. Porém, para não fugir às suas próprias regras de ousadia, agrega à sua reflexão o parecer de bispos católicos de vários países.
A opinião desses líderes, que são latinos, europeus, africanos, asiáticos, pessoas de todas as raças e estilos, ganha destaque no texto do papa. Sem contar que a declaração conjunta de papa Francisco e o grande imã de Al-Azhar, Ahmed Al-Tayyib, assinada em 2019, em Abu Dhabi, na qual se comprometem a lutar pela paz mundial, conduziu grande parte da reflexão. Francisco burla o protocolo da “autorreferencialidade pontifícia” que é própria das encíclicas.
Principais temas
Desta vez, o papa argumenta com mais liberdade, e sem filtros. Dá nome aos bois, aponta caminhos e condena as injustiças. Destaque para o trecho no qual diz que o neoliberalismo não é a única via. Considera que “visões liberais individualistas reduzem a sociedade a uma mera soma de interesses que coexistem”. E afirma que “o mercado não resolve tudo”. Sugere, em vez disso, um novo ordenamento social, baseado num “amor político” capaz de vencer a desigualdade.
“A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças. Devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos”, salienta.
Além disso, faz um apelo à cooperação internacional e, ao mesmo tempo, diagnostica um “falso globalismo” que destrói identidades. Chama o racismo de “um vírus que muda facilmente e, em vez de desaparecer, dissimula-se, e está sempre à espreita”. Condena a xenofobia e diz que os latino-americanos que vivem nos Estados Unidos “são fermento de valores para o país”, ao contrário do que pensam os propagadores da “cultura dos muros” que os vê como uma ameaça. “Quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes”, profetiza.
Cristãos também são criticados. Diz que alguns têm aderido a “determinadas preferências políticas em detrimento das profundas convicções da própria fé”. Se refere às políticas anti-imigração, sustentadas por alguns governos, que recebem o beneplácito de alguns grupos católicos. E culpa a falta de manejo de muitos líderes religiosos na contenção de grupos fundamentalistas, assumindo que a Igreja demorou muito tempo para condenar algumas formas de violência em várias fases de sua história.
“Ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé, com o humanismo que inspira, deve manter vivo um sentido crítico perante estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se”, exortou.
Além disso, Francisco trata dos direitos das mulheres, condena o que ele chama de “cultura do descartável”, denuncia mais uma vez os populismos. Pede a reforma das Nações Unidas, de modo que o organismo possa, de acordo com ele, “encarnar o sentido de família das nações” e sugere uma governança global que possa atuar em favor dos imigrantes.
Um texto para todos
É a terceira encíclica do pontificado de Francisco, e a segunda de cunho social. A primeira foi a Laudato Si, de 2015, que faz um apelo à preservação do meio ambiente.
No prefácio da Fratelli Tutti, o papa diz que os destinatários da mensagem são “os homens de boa vontade”, não somente os católicos. Repete a fórmula criada por João XXIII, que foi o primeiro romano pontífice a dirigir-se à humanidade inteira num documento papal. Antes dele, documentos desse tipo se dirigiam somente a bispos, padres e fiéis católicos.
O papa bom, como é conhecido, inaugurou, em 1963, na sua encíclica Pacem in Terris, essa nova saudação pontifícia. Anos depois, foi copiado por Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, que adotaram essa mesma introdução em suas encíclicas sociais.
A Fratelli Tutti, de Francisco, e a Pacem in Terris, de João XXIII, à distância de quase seis décadas uma da outra, se complementam em torno de alguns princípios. Ambas, por exemplo, a partir do próprio contexto, afirmam, com segurança: “Não existe guerra justa!”. Francisco chega a dizer que “a guerra é o fracasso da política e da humanidade”.
Em 1963, em plena Guerra Fria, João XXIII fez um apelo à união, em vista do bem comum, quando o mundo era dividido em dois blocos ideológicos. Em sua mensagem, Francisco também trata da polarização, a qual, desta vez, não só provoca cismas fraternais, mas serve de combustível para novos nacionalismos e populismos.
As novidades
Fake news e manipulação das consciências
É uma encíclica que também aponta os estragos causados pelas instrumentalizações religiosas e políticas. O santo padre fala sobre a postura grosseira que, em outros tempos, faria qualquer político perder o respeito. Hoje, segundo Francisco, esse tipo de atitude sequer é repudiada.
Atrelado à ascensão desses líderes políticos que normalizam o discurso violento, o pontífice afirma que “há interesses econômicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de realizar formas de controle que são tão sutis quanto invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático”.
Segundo ele, o funcionamento de muitas plataformas acaba favorecendo a formação de “clãs” que não admitem o confronto entre as diferenças. Estes circuitos fechados, comenta o papa, “facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios”.
Liberdade, Igualdade e Fraternidade
Outro ponto interessante é a reelaboração, à luz do Evangelho, do lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, as três palavras que, juntas, constituem os ideais da Revolução Francesa. Na visão do pontífice, não existe igualdade e liberdade sem a fraternidade.
“O que acontece quando não há a fraternidade conscientemente cultivada? […] A liberdade se atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar. Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que todos os seres humanos são iguais, mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade”, reflete o pontífice.
Propriedade privada
Para alguns vaticanistas, a parte na qual o papa fala sobre a propriedade privada é a grande novidade da encíclica. No entanto, é importante frisar que a visão de Francisco sobre o assunto remete à própria doutrina social da Igreja. Para o catolicismo, que sempre defendeu a propriedade privada, afirma que ela só é moralmente aceitável “em vista do bem comum”.
“O desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos, mas há de assegurar os direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos. O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente, pois quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos”, escreve Francisco.
Algumas considerações
Interessante notar que, em todas as partes da encíclica, reconhecemos Francisco. Apesar de sabermos que ele não escreve sozinho esse tipo de texto e conta com uma equipe de colaboradores para redigir parte do conteúdo, está claro que a revisão, feita pelo santo padre, foi criteriosa. É uma encíclica quase falada, como se, por um momento, ouvíssemos as indagações e contemplássemos os silêncios de Francisco. Homilia, declaração, exortação: tudo junto no mesmo texto.
Na exortação Evangelii Gaudium, de 2014, o papa argentino traçou seu programa de governo. Na Fratelli Tutti deste ano, ele fecha um ciclo. Não que estejamos fazendo previsões apocalípticas sobre a morte do sumo pontífice, mas está claro que ele se prepara para a última parte de seu pontificado. Pode ser que ele viva 100 anos (e que assim seja!). No entanto, é provável que esse “resumão” em torno de questões primordiais para ele, não tenha sido articulado em vão.
Os papados, na história, não necessariamente enfraquecem em sua última fase. Francisco cresce. E terminará seu papado assim, em ascensão. A crise, para ele, é um impulso para focar no concreto, no essencial. Outros papas, porém, se concentraram em tratados doutrinais.
Paulo VI viveu muitos anos após sua última encíclica, Humanae vitae (1968), porém, minou sua popularidade depois dela. Francisco, ao contrário, pode, através dessa sua “cartada final”, fazer justamente o contrário. Portanto, reforço: ele lança as bases para uma conclusão honrosa.
Como nós, Francisco faz as contas. A pandemia, de certa forma, redimensionou nossas prioridades, despertou incertezas e nos fez desbravar o desconhecido. Não foi diferente, certamente, para o atual líder da Igreja Católica. “Todos irmãos” é um clamor para que ele, nem nós, não nos sintamos sozinhos. É um convite para caminharmos, juntos, rumo à coroação de um pontificado que não só promove mudanças, mas já é, por si só, a mudança. Recomecemos. Nosso mentor nessa retomada em meio ao caos é Francisco. Ninguém solta a mão de ninguém. Nem a dele.
por Mirticeli Medeiros, Jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras
Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial Rádio Peão Brasil / Tornado