Ao passar uma noite no Bar dos Canalhas e verificando a multiplicidade de actividades lúdicas que passavam pelo palco interpretadas por gente amadora, resolveu falar com a gerência, pedindo-lhe se podia levar a cena, uma peça que trazia na cabeça. Algo sobre um coração que andava armado em parvo até que num dia de chuva mudou. Uma história complexa e longa que levou a gerência a lembrar-lhe que nas «noites livres» era preciso dar espaço a muitos que se limitavam, a declamar um poema, ou a usar um instrumento musical para UMA interpretação, etc, etc., por aí, mas nunca ocupar o palco para além de – no máximo – 10 minutos.
-Se conseguir escrever e levar o ou os intérpretes a representarem dentro desse tempo, tudo bem… queira ter a bondade de preparar a sua peça.
Francisco concordou e sem pensar bem reservou o seu «tempo de antena» para a quarta-feira seguinte.
Passou noites em branco para escrever a sua originalidade em três actos, tinha se ser em três actos, que se despachassem nos tais dez minutos.
O actores, foi fácil, conhecia uns amigos com alguma habilidade para a representação.
E assim passou os dias e as noites a fazer investigações pessoais sobre as porras mais improváveis. Tinha de surpreender. Até podia acontecer que estivesse por lá, nessa noite, algum agente, algum «caça talentos» que lhe reconhecesse o mérito que ele pensava ter.
Tinha de elaborar algo de diferente.
Em três actos.
Em dez minutos!!!
Chegou a noite da apresentação e apenas com um dia de ensaios em sua casa, foi anunciada a peça em três actos, de Kiko Dantas: DAR LIBERDADE À VONTADE!
I ACTO
Uma mulher está sentada na beira de uma cama, a manusear um álbum de fotografias.
Levanta-se, vai junto ao espelho e diz-lhe:
– Nesta vida amarga, comigo o erro foi partir de casa cedo demais.
Entra no quarto um homem alto e elegante que a enlaça e conforta-a:
– Se ao menos, minha querida amiga, o seu marido tivesse sido menos medroso nos caminhos da vossa vida.
– É verdade, era muito lento…atrasou-me o salto no mundo, o meu marido, o Joaquim Manco!!!
Os actores deram as mãos e inclinaram-se perante o público.
II ACTO
Numa sala apinhada de amigos e amigas, o anfitrião, serviu bebidas a todos e finda a tarefa, antes que começassem a questioná-lo fosse sobre o que fosse, desejou um bom fim de semana para todos. Para melhor de se fazer ouvir, pulou para cima de uma cadeira.
– Agora ide. Eu fico por aqui, amarrado a coisas de um pensador arrependido, ou a caminho disso.
– Não copos.
– Não nada.
– Nada, não!
– Ganhei o hábito de divagar por um boletim imaginário de lindo aspecto gráfico e que tem umas ideias deliciosas, como a de Confúcio que, nesse tal meu imaginário, às tantas diz a quem não parava de o questionar
“Porra, não vedes que estou a almoçar?”
Amo Confúcio.
Faz-me sentir mal.
O actor fez uma vénia e saiu de palco.
III ACTO
Agarrado ao computador o jovem pretendente a escritor, desenhava nele palavras que lia em alta voz:
– Às vezes gostava que o pc não recolhesse tudo o que escrevo, o que estes dedos vadios e maçudos lhe vão depositando, como se fossem chicotadas sorridentes…
…devia, quando insisto em deixar que os corações madruguem onde querem, olhar para a coisa de modo reticente, esquivar-se da mesa e pirar-se… aproveitar a janela que, como está sempre aberta, mostrar-lhe-á um pouco de telhado o Céu e a rua, onde poderá achar descanso e lambuzar-se com pedacinhos de bolos que espalho diariamente à passarada.
O actor fez um manguito para o público.
E depois outro.
Ainda outro e saiu de cena.
A plateia, não resistiu, levantou-se e entrou em êxtase.
– BRAVOOOOOOO….BRAVOOOOOOO…..BRAVOOOOOOOO…o público em delírio queria bis….e bis…e bis….
Ao contrário das anteriores balelas pungentes, os «críticos» consideraram aqueles manguitos uma Obra de enorme envergadura artística
E o artista teve de regressar ao palco seis vezes, para outros tantos manguitos, enquanto o maralhal não se cansava de assobiar, aplaudir, e gritar BRAVOOOOO….BRAVOOOOOOOO.
Contado o tempo de agradecimentos a coisa foi muito para além dos 10 minutos que duraram os três actos.
Francisquinho assistiu ao espectáculo, encostado a um canto da sala com uma expressão dolorida e martirizada.