No início do mês a decana dos historiadores marxistas brasileiros deixou de viver. Ela tinha 89 anos de idade (viveu entre 1928 e 2017), e manteve-se lúcida até o fim.Era uma estudiosa notável, que não se rendia a modismos historiográficos e muito menos se incomodava com as inevitáveis cópias e reproduções de textos seus nestes tempos de internet. Depois de publicados, os textos deixam de me pertencer, disse certa vez – uma atitude generosa que certamente herdou de antepassados de esquerda, militantes libertários que, desde muito cedo, a apresentaram ao pensamento marxista.
Pensamento marxista que moldou a historiadora notável e renovadora que foi. E a levou à redação de sua tese de livre docência, que defendeu em 1964 (dez anos depois de formada em História, pela Universidade de São Paulo- USP), que tinha um título tão extenso quanto seu tamanho: “Escravidão nas áreas cafeeiras, aspectos econômicos, sociais, políticos e ideológicos da transição do trabalho servil para o trabalho livre”, que tinha três volumes e mais de 1000 páginas.
Nascia ali um livro clássico sobre aquela o período final do escravismo no Brasil: “Da Senzala à Colônia” foi baseado naquela tese. Revelou aspectos ainda não estudados sobre a Abolição e a transição para o trabalho livre, usando documentação ainda fora da mira dos historiadores e, mais do que isso, usando com radicalidade o método dialético marxista na análise da sociedade brasileira. O foco de sua análise inovadora foi o processo social vivido durante a Abolição e, depois dela, na intensificação da imigração européia – italiana sobretudo – que formou a classe operária brasileira.
A importância daquele livro decorre da meticulosa descrição que faz do movimento das classes sociais nos anos finais do escravismo. Que ocorreu em uma sociedade complexa, na qual os interesses de classe se definiam e se tornavam mais nítidos, embora ainda prevalecessem interesses agromercantis exportadores, latifundiários e escravistas que dominavam desde a Independência. E continuavam no topo da sociedade brasileira mesmo depois da Abolição.
De maneira realista, a historiadora estudou a luta abolicionista sem cair na armadilha de tentar ver nela apenas uma revolução dos escravos. Ela houve, os escravos foram protagonistas da luta pelo fim do escravismo, mas a revolução foi mais ampla e envolveu outros setores sociais que estavam em conflito com a oligarquia escravista.
Seus estudos sobre a Independência são inovadores pela análise do movimento das classes naquele momento de separação de Portugal. Com realismo, viu a ação do povo, freqüentemente negada por historiadores mais conservadores. E destacou também o papel do patriarca da Independência, José Bonifácio que, sendo conservador, lutou também pelo desenvolvimento e modernização da nova nação que se afirmava. E foi derrotado pela coalizão conservadora de latifundiários e traficantes de escravos que dominou o processo da Independência.
Emília Viotti da Costa enfrentou a perseguição da ditadura militar de 1964. Ela se insurgiu contra a reforma universitária da ditadura e, em 1968, proferiu uma aula inaugural, na USP, sobre A Crise da Universidade, onde se contrapôs àquela medida. Além disso, aceitou debater a questão em um programa de televisão com o ministro da Educação dos generais, Tarso Dutra. A represália da ditadura a tornou a mais jovem professora universitária presa em 1969, juntamente com outros colegas. Foi aposentada compulsoriamente da USP, cassada pelo AI-5 e proibida de lecionar no Brasil. Exilou-se então nos Estados Unidos, onde lecionou História da América Latina na Universidade de Yale, desde 1973.
Historiadora marxista rigorosa e conseqüente, via a história como a ação dos homens, que formam e movem as classes sociais. Este método renovador pode ser visto em seu livro clássico, e também em um dos últimos que publicou, “Coroas de glória, lágrimas de sangue – a rebelião dos escravos de Demerara em 1823”, publicado no Brasil em 1998.
Fiel à maneira originária, de Marx e Engels, seu tema de estudo era o desenvolvimento das relações entre os homens, a sociedade e a natureza, e não aceitava reducionismos de nenhuma espécie – nem aqueles que encaram a ação humana como resultado apenas de interesses econômicos (como Engels, ela via a economia como um móvel “em última instância” das ações humanas), e muito menos de transcendências idealistas que vêm o homem como um ser “superior” e à parte da natureza. “Nem a história é o resultado de uma ‘ação humana’ misteriosa e transcendental, como querem uns, nem os homens e mulheres são fantoches de ‘forças históricas’, como querem outros. As ações humanas constituem o ponto em que se resolve momentaneamente a tensão constante entre liberdade e necessidade”, escreveu em “Coroas de glória, lágrimas de sangue”.
O trabalho, a erudição e o marxismo de Emília Viotti ajudam a entender como o Brasil se tornou o país contraditório que é hoje, com tantas contradições não resolvidas. É uma contribuição imorredoura para e inteligência e o entendimento do Brasil.
Alguns livros de Emília Viotti da Costa
- Da senzala à colônia, São Paulo, 1966;
- Da monarquia à república: momentos decisivos, 1977;
- Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823, 1998;
- O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, 2006
Texto original em português do Brasil