Sob os auspícios da ONU está a decorrer (21-22 de Março), em Genebra, o segundo encontro sobre o Sahara Ocidental entre a Frente POLISARIO e Marrocos, promovido por Horst Köhler, enviado pessoal do Secretário-Geral das Nações Unidas.
Para além das delegações de Marrocos e da Frente POLISARIO participam como observadores a Argélia e a Mauritânia, informou um comunicado da ONU.
Segundo este comunicado:
“A reunião ocorrerá de acordo com a resolução 2440 do Conselho de Segurança da ONU como mais um passo no processo político para alcançar uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável, que proporcionará a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental”.
Uma frase utilizada vezes sem conta nas resoluções das Nações Unidas, mas cujo significado é simples: a concretização do referendo acordado entre as partes que foi a base do acordo de cessar-fogo em 1991.
Muitas vezes pode-se ler na imprensa que é a POLISARIO que quer um referendo, enquanto que Marrocos defende o plano de autonomia, esquecendo-se que o referendo foi a base da assinatura do acordo de cessar-fogo que foi assinado por Marrocos e POLISARIO.
Não é uma mera exigência da POLISARIO, é a solução proposta sob os auspícios da ONU e da UA que levou à realização de um Censo pela MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo do Sahara Ocidental), missão essa que está presente no território desde 1991.
A realização do referendo foi proposta pela primeira vez em Dezembro de 1966 quando Espanha ocupava o território:
- A Assembleia Geral da ONU solicitou que a Espanha organize, sob supervisão da ONU, um referendo sobre autodeterminação (resolução 2229 (XXI) da Assembleia Geral de 20 de dezembro de 1966). A demanda é repetida a cada ano de 1967 a 1973.
Nas várias rondas de negociações ao longo das ultimas duas décadas a Frente POLISARIO cedeu várias vezes mostrando boa fé, e está incluído nas preguntas do referendo o plano de autonomia de Marrocos.
No entanto Marrocos tem sistematicamente recusado a realização do referendo, violando os acordos que assinou e declara abertamente que a única solução aceitável para Marrocos é o plano de autonomia visto saber de antemão que o referendo não lhe será favorável.
Marrocos utiliza muitas vezes o argumento da não conclusão do censos e que os colonos marroquinos não foram considerados como eleitores, o que não corresponde à realidade como pode ser verificado no site oficial da MINURSO (Chronology of Events) onde se pode ler:
Setembro de 1998 – O processo de identificação de “eleitores elegíveis” foi concluído.
23 de Maio de 2003 – James Baker (enviado pessoal do SG das NU) propôs outro plano (também conhecido como ‘Baker Plan II’) que previa um referendo em quatro a cinco anos e oferecia aos habitantes uma escolha entre independência, autonomia ou completa integração com Marrocos. O plano foi aceito pela Polisário, pela Argélia e pelo Conselho de Segurança, mas foi rejeitado pelo Marrocos.
Julho de 2003 – James Baker regressou com uma versão revista do seu plano, incluindo salvaguardas que obtiveram apoio da Argélia e Polisario. Colonos marroquinos poderiam votar, mas Marrocos rejeitou o plano
A ocupação marroquina do Sahara Ocidental é o último caso de descolonização em África. Este território não autónomo foi invadido a 31 de Outubro de 1975 por Marrocos com a cumplicidade de Espanha que sendo o poder colonial desde 1884, abandonou o território sem realizar a descolonização e entregando a população saharaui de bandeja ao invasor, violando a decisão clara emitida pelo Tribunal Internacional de Justiça a 16 de Outubro do mesmo ano (ver aqui: Overview of the case).
Opinião do Tribunal Internacional de Justiça de 1975
- o povo saharaui do Sahara Ocidental é a única potência soberana no Sahara Ocidental
- não encontrou laços legais de tal natureza que afectassem a aplicação da resolução 1514 (XV) na descolonização do Sahara Ocidental e, em particular, do princípio da autodeterminação através da expressão livre e genuína de a vontade dos povos do Território. “(parágrafo 129, 162)
A 6 de Novembro de 1975, Marrocos organizou a chamada “Marcha Verde” invadindo oficialmente o Sahara Ocidental e introduzindo 350.000 colonos marroquinos no território. Este acto foi condenado pelo Conselho de Segurança da ONU que imediatamente convocou Marrocos a se retirar do território:
Resolução 380 (1975). de 6 de Novembro de 1975
O Conselho de Segurança,
Observando com grande preocupação que a situação relativa ao Sahara Ocidental se deteriorou seriamente,
Notando com pesar que, apesar das resoluções 377 (1975) de 22 de outubro e 379 (1975) de 2 de novembro de 1975, bem como o apelo feito pelo Presidente do Conselho de Segurança, sob sua autorização, ao rei de Marrocos com um urgente pedido para parar imediatamente com a marcha declarada sobre o Sahara Ocidental, a referida marcha ocorreu,
Com base nas resoluções acima mencionadas,
- Deplora a realização da marcha;
- Solicita a Marrocos que retire de imediato do Território do Sahara Ocidental todos os participantes na marcha; …
Marrocos ignorou esta resolução como ignorou muitas das resoluções posteriores, sem nunca ter sofrido nenhuma sanção.
Ao invadir o território Marrocos violou ainda o artigo 4 – alinea b, do Ato Constitutivo da União Africana: “o Respeito das fronteiras existentes na conquista da independência;”.
Violação do Lei Internacional
As soluções muitas vezes propostas por comentadores e por “amigos de Marrocos” alternativas ao referendo esquecem o direito básico de qualquer povo à autodeterminação e à soberania não só sobre as suas terras como sobre os seus recursos, e de facto violam a Carta da ONU, o Acto Constitutivo da UA e o direito internacional.
O desrespeito por esse direito básico foi condenado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em três acórdãos nos últimos 3 anos. Acórdãos esse que reafirmam que Marrocos não tem soberania sobre o território e que o Sahara Ocidental é um território separado e distinto e que qualquer exploração ou comercialização de produtos e recursos do Sahara Ocidental e das água adjacentes só poderá ser feito com a expressa autorização do povo saharaui:
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) acórdãos de:
- 19 de Julho de 2018 (ORDONNANCE DU TRIBUNAL (cinquième chambre élargie) ;
- 27 de Fevereiro de 2018 (JUDGMENT OF THE COURT (Grand Chamber));
- 21 de Dezembro de 2016 (JUDGMENT OF THE COURT (Grand Chamber))
Assim nem a ONU, nem a União Africana, nem o Tribunal Internacional, nem o Tribunal de Justiça da União Europeia nunca reconheceram a soberania marroquina de qualquer tipo sobre o território do Sahara Ocidental, Marrocos é uma força de ocupação.
O facto de vivermos num status quo de ocupação e administração do território do Sahara Ocidental por Marrocos não confere qualquer legalidade à situação.
As violações do direito internacional de Marrocos enquanto potência de ocupação são entre outros:
- Alteração do status demográfico com introdução de colonos marroquinos
- Alteração do status econômico
- Alteração do status político
- Violação dos direitos humanos da população saharaui
- Pilhagem dos recursos naturais
- Construção de um muros militar de separação do território de 2720km
- Colocação de minas anti-pessoal e antitanque
A realidade hoje no terreno
Pouco ou nada é escrito sobre a situação vivida pela população saharaui nos territórios ocupados devido ao acesso limitado a jornalistas e organizações não governamentais imposto por Marrocos.
Os poucos jornalistas que entram no território têm que “cumprir” o programa previamente estabelecido pelo governo marroquino. As poucas visitas de membros das Nações Unidas sofrem as mesmas restrições.
Mas há factos fáceis de comprovar mesmo não entrando no território, um deles é a existência de um muro de separação de 2720km de extensão com mais de 150000 soldados marroquinos e armado com a última tecnologia de guerra que coloca a população saharaui numa prisão à céu aberto.
Outro facto é que a população saharaui não concorda com a integração, plano de autonomia ou outras soluções propostas que não sejam a independência e por isso mesmo Marrocos recusa categoricamente o referendo.
Marrocos ocupa o território pela força, com introdução de colonos e uma presença militar, policial e de forças auxiliares que controlam cada passo dado pelos saharauis que vivem num apartheid politico, social e económico.
A estabilidade da região entrará em grande perigo caso se tente impor aos saharauis uma solução que não passe pela consulta que lhes permita decidir livremente sobre o seu futuro. Uma solução imposta irá incendiar um barril de pólvora que se tem mantido inativo devido ao cumprimento estrito da Frente POLISARIO do acordo de cessar fogo e de uma resistência não violenta do povo saharaui.
Passaram mais de 4 décadas sem que Marrocos fosse capaz de alterar o anseio legitimo do povo saharaui à independência. 4 décadas em que este povo conseguiu organizar-se na parte libertada do Sahara Ocidental e nos campos de refugiados e construiu uma República no meio do deserto mais inóspito, com todos as vertentes de um país em funcionamento pleno. 4 décadas sem que a resistência e resiliência deste povo sob ocupação, em campos de refugiados e na diáspora se apagasse.
Marrocos vive uma revolta social interna, contestações diárias e parece não conseguir responder às exigências do seu próprio povo que anseia por uma verdadeira democracia. Nos territórios ocupados do Sahara Ocidental enfrenta manifestações diárias por parte da população apesar da repressão, sequestros, violações e detenções arbitrárias que sofrem.
Será realista pensar que uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável, que proporcionará a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental pode ser encontrada à margem do direito à soberania deste povo?
Jornal Tornado / PUSL