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Quinta-feira, Janeiro 2, 2025

“Para ensinar-te eu me desnudo antes”

Christiane Brito, em São Paulo
Christiane Brito, em São Paulo
Jornalista, escritora e eterna militante pelos direitos humanos; criou a “Biografia do Idoso” contra o ageísmo.  É adepta do Hip-Hop (Rap) como legítima e uma das mais belas expressões culturais da resistência dos povos.
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A poesia dos mestres Bandeira, Mario, Oswald, Drummond, Cabral, Augusto

Caetano Veloso musicou alguns poemas que o grande Augusto de Campos – um dos maiores intelectuais e poetas concretistas do Brasil – traduziu, entre elas, “Elegia”, de John Donne.

caetano-veloso-augusto-campos-1A tradução do Augusto, feita nos anos 1970, é uma ode à mulher, seus mistérios que a poucos é dado desvendar; a música de Caetano, de 1979, é uma ode à alegria, ao ritmo que balança o corpo e coloca sorriso no rosto.

Ofereço para a Dilma Rousseff que, além de tudo e contra toda a maledicência da oposição machista, é feminina; sensual quando se oferece a um tribunal de injustiça quase nua, apenas com o manto da sua honradez.

Enfrentou longas 14 horas seguidas de sabatina, a última farsa ou último ato do golpe que já houve e o mundo reconhece.

Caetano Veloso também se devotou a outra elegia, desta vez a de Carlos Drummond de Andrade, “Elegia 1938”.

Drummond, justiceiro que nos livrava da loucura quando apontava a verdade que todos dissimulavam, mensageiro do futuro e do passado, ele descreve no poema uma situação que pode ser comparada à nossa atual. Diz:

“Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
Porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhatann”.

caetano-augusto-camposPor um momento, esqueçamos Manhatann (voltaremos aos Estados Unidos da América depois): o fato é que não podemos “dinamitar” simbolicamente o passado recente, transformando-o em uma ilha na história que não será mais visitada daqui para frente. Ao contrário, teremos que conviver com o descalabro e não sabemos o que virá.

A elegia de Carlos – na opinião de Caetano Veloso, que a declama e analisa em vídeo — antecipa a destruição das torres gêmeas, em 11 de setembro de 2001. É outra data trágica que se aproxima e que precisa ser desvendada. “Há cinzas e destroços” sob nossos pés e nossas cabeças, como canta Ani Di Franco.

A crise econômica começou justamente em 2001, nos Estados Unidos, se agravou em 2008, nos Estados Unidos (a essa altura já havia atingido o mundo todo) e, portanto, a crise brasileira (que a TV não mostra, distorce e não explica) não pode ser dissociada do que aconteceu no resto do mundo. E nos Estados Unidos da América do Norte.

Deixo a reflexão para vocês e também os poemas, além dos vídeos, deliciosos!

Elegia: Indo para o leito (John Donne)

Tradução: Augusto de Campos
Música: Caetano Veloso

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.
Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.
Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.
Deixa que a minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.
Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

 

Elegia 1938 (Carlos Drummond de Andrade)

Interpretação: Caetano Veloso

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

A autora escreve em português do Brasil

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