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Sábado, Julho 27, 2024

Entre o Natal e o Quotidiano

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Nas suas palavras, o Estado falhou, como já tinha falhado nos incêndios, e continuou a falhar na reconstrução das habitações destruídas em que, como foi noticiado pela imprensa, um idoso a quem Marcelo Rebelo de Sousa tinha prometido a reconstrução, faleceu sem ver a promessa presidencial cumprida.

1. Das saudades de um Natal desaparecido

Foi já há cinco anos que o governo da Comunidade francesa belga – que administra a educação na Valónia ena Bruxelas francófona – resolveu extirpar do calendário escolar termos como Carnaval, Todos-os-Santos, Páscoa e Natal, julgados incompatíveis com um ideário de estrita neutralidade religiosa.

Pela mesma época tornou-se símbolo de correcção social a substituição de ‘Feliz Natal’ ou ‘Páscoa feliz’ por ‘saudações sazonais’ expressão que é hoje correntemente usada. Um dos partidos do Governo que tomou essa decisão tinha já no princípio do século mudado de nome de ‘Partido Social Cristão’ para ‘Centro Democrático Humanista’.

Em França, a justiça entendeu também que o presépio é um símbolo religioso incompatível com a laicidade do país e proibiu-os em espaço público, o que faz as delícias do edil de Beziers eleito pela ‘Frente Nacional’ que desafia a lei sistematicamente com a certeza de que isso lhe trará vantagens eleitorais.

Naturalmente que a sociedade evolui, nem toda da mesma forma e em simultâneo, e a religiosidade é um dos temas em que, no decorrer das minhas mais de seis décadas de vida, as alterações foram mais profundas.

Viemos do tempo das concordatas e da promiscuidade entre a Igreja e o Estado, que em Portugal era na realidade literal, dadas as relações íntimas entre o Cardeal Primaz e o Presidente do Conselho que desempenharam funções simultaneamente durante muitos anos.

Assistimos a uma laicização impressionante, embora nem sempre onde e como seria desejável. A título de exemplo, as confissões religiosas usufruem de isenções fiscais que me parecem chocantes, especialmente se comparadas com a penalização dos cidadãos que lutam por dar condições aos seus filhos.

Posto isto, penso que há que entender que há uma dimensão espiritual que está para lá das crenças, personagens e ritos particulares, e que há também uma identidade fundada num sem números de heranças mais ou menos simbólicas deixadas por essas crenças e ritos.

Da mesma forma que a preservação de um monumento religioso é algo que está para além do que cada um pensa da Igreja, o mesmo acontece com o Natal. Apagar o Natal é um acto do niilismo contemporâneo que nega a nossa identidade.

2. O mito do Estado

Uma das mais patéticas recuperações do vocabulário salazarista que nos trouxe o ex-Primeiro-Ministro Passos Coelho foi a do ‘Estado’ como entidade virtual existente acima do cidadão, categoria transcendente, mais próxima do Inferno do que do Céu.

O actual Presidente da República tem continuado esse exercício, aplicando-o recentemente na tragédia que envolveu um acidente de helicóptero num concelho da periferia do Porto a que chegaram socorros mais de seis horas depois de se ter registado o seu desaparecimento.

Nas suas palavras, o Estado falhou, como já tinha falhado nos incêndios, e continuou a falhar na reconstrução das habitações destruídas em que, como foi noticiado pela imprensa, um idoso a quem Marcelo Rebelo de Sousa tinha prometido a reconstrução, faleceu sem ver a promessa presidencial cumprida.

O Estado não é uma categoria metafísica; numa sociedade democrática é a forma de organização de uma colectividade. Culpar o Estado pela falha, só fará sentido se acaso o problema estiver relacionado com essa forma de organização, ou seja, se o sistema existente para responder a desastres aéreos for defeituoso, e mesmo aqui, é um exercício demagógico não dizer o que concretamente falhou nessa organização.

A culpa é do Estado é a forma de dizer que a culpa é de todos ou não é de ninguém, e é absolutamente equivalente à fórmula usada pelo Ministro da tutela que diz ter enviado o relatório para o ‘Ministério Público’. Sendo claro que em casos desta natureza poderão existir responsabilidades criminais, incumbe em primeiro lugar ao Ministro esclarecer se os mecanismos de urgência são os adequados e caso isso assim seja, se houve falhas humanas e materiais e o que resolveu ele fazer em consequência.

Não estou em crer tão pouco que a fórmula britânica consagrada da demissão do Ministro seja necessariamente a melhor resposta, por um lado por que a demissão pode querer dizer apenas promoção num país em que ser ministro é um estágio para ser banqueiro ou para outra actividade igualmente bem remunerada como pelo facto de servir muitas vezes apenas para nada mudar nos serviços ou nos responsáveis que falham.

O abuso do ‘Estado’ como figura virtualmente responsável por tudo faz parte da linguagem eufemística, redonda e vácua com que se tem esvaziado de sentido a responsabilidade democrática.

3. O fim estrondoso do Estado de graça da geringonça

Fui eleitor convicto (e não me arrependi de o ter feito) do PS de António Costa em 2015 e foi também sem estado de alma que dei o meu aplauso à solução governativa encontrada contra a tentativa de imposição de um Governo rejeitado pelo voto pelo anterior Presidente da República Cavaco Silva.

Em qualquer caso, o Primeiro-ministro provou ser capaz de manter uma coligação que eu julgava nunca poder chegar tão longe, e o Ministro das Finanças, o olhanense Mário Centeno, ultrapassou em muito as minhas expectativas, revelando-se de um bom senso e competência extraordinários, a léguas de distância de quem o precedeu.

Expus na altura o que me pareciam ser as urgências económicas e sociais a assumir pelo actual governo, que foram praticamente invertidas pela governação socialista.

Pareceu-me um erro crasso esconjurar a austeridade, em vez de esconjurar a austeridade praticada pelo governo anterior, que resultou na emigração forçada de muitas centenas de milhares de portugueses e no abandono de largas camadas sociais e regionais e na defesa de sem limites dos privilégios do sistema financeiro.

Penso que o Governo deveria ter começado com a austeridade sobre si mesmo – reduzindo significativamente a sua exagerada dimensão – e ter tratado imediatamente de estancar a hemorragia para as ruinosas parcerias público-privadas e para as subvenções à banca.

Penso igualmente que o Governo não deveria ter enveredado pela via de querer desfazer o que estava feito e que melhor seria usar qualquer folga financeira em programas de dinamização económica e justiça social.

A factura dessa lógica está agora a vir ao de cima, com algumas das corporações a crivar o erário público com reivindicações insustentáveis e como se Portugal não fosse um país com um endividamento extraordinário que ninguém pode ignorar.

Creio que daqui até ao próximo Natal, tudo isto terá de ser repensado com a maior das atenções.


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