O realizador que era jurado no festival Spirit of Fire, em Khanty Mansiysk, na Sibéria (Federação Russa), falou-nos dos seus novos projectos: um deles é I Hate Trains (na altura, o título provisório do que viria a ser Treblinka), que acabara de filmar com Isabel Ruth a bordo de uma viagem de comboio no Expresso Transiberiano, na altura, com contornos diferentes.
No entanto, uma viagem que propiciou ainda material diverso que poderá originar um projecto diferente; também na calha está a adaptação de Seara de Vento, adaptação do livro de Manuel da Fonseca, com Isabel no papel de “uma espécie de Mãe Dalton”. E ainda um documentário “comovente” sobre o cante alentejano (que seria, naturalmente, Alentejo, Alentejo).
É o seu segundo ano consecutivo no festival Spirit of Fire. O ano passado esteve cá com Viagem a Portugal, que viria a ganhar o primeiro prémio da competição oficial. Regressa agora no papel de jurado. Que comparação poderá fazer entre estas duas experiências?
É um prazer ver primeiras e segundas obras e verificar que os programadores fizeram essencialmente uma selecção de filmes de autor. Por acaso não tinha visto ainda nenhum deles. É um privilégio estar a ver estes filmes aqui.
Depois de ter sido avaliado, não é estranho estar agora no papel de juíz?
Não, até porque dirigi festivais durante alguns anos (DocLisboa). E confesso que de alguma maneira sempre me surpreenderam as decisões dos júris (risos). Quando ganhei aqui, apesar de ter ganho prémios em outros lugares, surpreendeu-me ainda mais, porque estava em competição a Câmara de Ouro de Cannes (Las Acacias) e outros filmes premiados em outros festivais.
No caso deste ano, foi difícil a vossa decisão?
Não, nem por isso. Foi até unânime em relação aos três melhores (Lore, Everybody in Our Family e My Own Honour Bright). Tratou-se apenas de decidir em que posição ficariam.
Qual a sua atracção por esta região? Visto que este lugar não é um território novo…
Não, não é. Primeiro, o Viagem a Portugal, numa primeira versão, tinha três partes, e a história da personagem (da Maria de Medeiros) tinha sido rodada na Ucrânia. Depois, tinha passado um mês em São Petersburgo, para aprender a língua.
Curiosamente, é também na Rússia que nasce o seu novo projecto… (que viria a ser Treblinka)
Sim, é um filme sobre a Marceline Loriden-Ivens, a viúva do documentarista Joris Ivens. É uma personagem muito especial e difícil. Quando li o livro dela fiquei absolutamente fascinado. Uma mulher incrível, com o seu 1,45m, o cabelo ruivo incendiário, sobrevivente de Auschwitz-Birkenau. Pode ser uma figura minúscula, mas é também muito forte e capaz de inflamar uma assembleia quando fala.
Trata-se de um documentário ou ficção?
É uma ficção com elementos de documentário, em que a personagem principal é a Marceline (Isabel Ruth), que apanha o Transiberiano para ir para Pequim, porque o médico a desaconselha a voltar a apanhar aviões. É aí que irá encontrar o Joris Ivens, ou a sua imagem, o seu fantasma.
Um fantasma?
Sim. A coisa mais bela que descobri no livro da Marceline são os fantasmas. Ou seja, o diálogo de uma pessoa solitária com o pai que morreu em Auschwitz. Existe o fantasma do marido, do irmão… Aliás, o que eu lhe disse foi que queria fazer um filme sobre os fantasmas. E achei que a ideia do Transiberiano e de tentar reencontrar a imagem do marido em Pequim era uma maravilhosa forma de construir essa viagem ao passado.
Como foi a viagem pelo Transiberiano?
Fui eu, a Isabel (Ruth), bem como o João Ribeiro, o director de fotografia e a Catarina, a intérprete. Apanhámos o Transiberiano, durante três dias. O que posso dizer é que existe muito material deslumbrante filmado nestes três dias de Transiberiano, mais um dia em Irkutsk e outro no lago Baical que poderá vir a ser um filme.
O filme já tem um título?
Pode ser algo como I Hate Trains ou em francês Je Deteste Trains (Detesto Comboios)… (risos)
Será assim mesmo?
Porque não?! Tem a ver com a versão de uma pessoa que foi deportada e que odeia comboios. Mas não sei ainda o que vai ser o produto final. Tudo pode acontecer (risos)… Depois de ter feito uma ficção em dez dias (Viagem a Portugal) achei que poderia fazer um em seis dias… (risos)
E o que podemos esperar da Isabel Ruth?
Ela faz uma evocação da Marceline. E acompanha a estrutura do filme baseado em cartas, vídeo-cartas – são os fantasmas.
Pelos vistos, não se cansa de trabalhar com a Isabel…
Ela é a nossa diva. Tenho uma veneração pela Isabel Ruth.
Escrevi os diálogos do Viagem a Portugal para ela.
Estou a escrever uma adaptação do Seara de Vento, do Manuel da Fonseca, em que uma das personagens, uma espécie de Mãe Dalton é para ela. Eu acho-a um monstro. Arrepiante.
Outro projecto? Para quando será então o Seara de Vento?
Estou a acabar o guião para entrar no ICA. Tenho já uma versão impressa. Mas é um dos melhores romances portugueses do século XX. É um western. Sobre a fome, sobre uma forma de miséria no Alentejo, o orgulho, o silêncio. E sobre uma coisa que é muito importante: uma consciencialização política importante.
Tanto quanto sei, trabalha ainda em outros projectos…
Sim, estou a trabalhar do projecto de cante alentejano, que gosto muito, muito, e que me faz chorar imenso.
Porquê?
É um filme muito próximo do Lisboetas, pois é um retrato de uma região e da força telúrica das pessoas, da sua alma. Toca-me muito a força do cante alentejano.
Pelo que temos estado a falar, este filme rodado na Rússia não será dos mais caros em termos de orçamento…
Não, não custou nada… (risos)
(Entrevista publicada a 3/3/2013 no jornal Correio da Manhã, agora editada)
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