Foi maior que o reduto que hoje se olha ora a tocar o céu ora a coroar a ria de nome formosa, que avança e recua aos pés do casario branco fortificado – outrora diferente e bem mais populoso. Há vestígios que testemunham a expansão de um bairro islâmico fora das muralhas. E sepulturas cristãs que suportam a ideia dos recém-nascidos serem enterrados com uma preocupação desusada para a época. É aqui, fora da zona muralhada, que os investigadores pretendem agora “desenterrar” mistérios e caracterizar mais detalhadamente as populações que viveram e morreram na época medieval.
Entre Junho e Julho, a aldeia algarvia de Cacela Velha, concelho de Vila Real de Santo António, foi novamente transformada em campo arqueológico. As primeiras pesquisas, no interior da muralha, descobriram sobretudo cerâmicas do período islâmico e tiveram início nos finais da década 90. A zona das escavações foi entretanto alargada para o exterior da fortaleza que, segundo reza a história, foi das últimas a ser conquistada pelos cristãos e acabou por tornar-se numa importante estrutura militar, por altura da guerra com Castela, e num ponto de defesa estratégico para os ataques da pirataria vinda do mar.
Há muitos segredos por desvendar nesta que é considerada uma “pequena Pompeia”: sepulturas e ossadas confirmaram que no local existiu a mais antiga necrópole pós reconquista cristã no Sotavento algarvio; e aquilo que se esperava ser a primitiva ermida de Nossa Senhora dos Mártires era afinal um bairro islâmico. Centrar a pesquisar nas localizações da ermida, do porto costeiro e da necrópole islâmica é o rumo a seguir nas próximas escavações.
A zona mais a sul, junto à arriba, está muito destruída pela erosão marinha e pela construção do caminho para a praia (infelizmente, esta área já não é recuperável)”
O projeto intitulado “Muçulmanos e Cristãos em Cacela Medieval: território e identidades em mudança” tem duração agendada até 2022. Toda a zona intervencionada foi coberta no final de Julho e na próxima época alta vai novamente ser passada a pente fino. A terra vai voltar a ser peneirada para que nenhuma peça fique sem contar a sua história. Assim está feito o planeamento das campanhas de trabalho que alia a componente de investigação à formação de estudantes universitários (arqueologia, bioarqueologia e património cultural).
Além de consolidar a informação histórico-arqueológica já adquirida, o projecto visa obter novos dados que permitam alargar e detalhar o conhecimento sobre o território onde a povoação de Cacela se estabeleceu, bem como sobre as comunidades humanas que o habitaram ao longo da Idade Média (séculos X–XV). O cerne dos trabalhos será a transição entre a ocupação medieval islâmica e medieval cristã, com foco nas alterações operadas e nas continuidades perpetuadas.
Havendo fonte de financiamento para tal, queremos desenvolver um programa de conservação e divulgação da história e da arqueologia de Cacela-a-Velha”
Este ano estiveram presentes cerca de 55 participantes, entre investigadores da Universidade do Algarve, da Simon Fraser University (Canadá) e da Faculdade de Ciências de Lisboa. No terreno também estiveram envolvidos voluntários estudantes portugueses, canadianos e espanhóis.
O estudo, que está a ser apoiado pela Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, pela Universidade do Algarve e pela Direção Regional de Cultura, tem na direcção dos trabalhos arqueológicos Maria João Valente (professora na Universidade do Algarve e investigadora do Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património – CEAACP) e Cristina Tété Garcia (Direcção-Regional de Cultura do Algarve/CEAACP). Os trabalhos de bioarqueologia são coordenados por Hugo Cardoso (Simon Fraser University, Canadá).
As mais jovens crianças (recém-nascidos e fetos; dos quais temos duas sepulturas este ano) eram sepultadas com o mesmo cuidado dos adultos, o que é raro acontecer em épocas mais antigas”
Em duas décadas de campanhas de escavação foi possível inventariar cerca de oito mil fragmentos distribuídos pelo Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, em Santa Rita, e pelo Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra. Os investigadores deixam no entanto um alerta: para prosseguir com o projecto de investigação e musealização necessitam de financiamentos e apoios, orçados em cerca de 300 mil euros.
Maria João Valente, co-coordenadora dos trabalhos arqueológicos de Cacela Velha, professora na Universidade do Algarve e investigadora revela:
“Cacela tem ainda muitas histórias para nos contar”
Jornal Tornado: Qual a importância das recentes escavações que decorreram em Cacela Velha?
Maria João Valente: Os trabalhos arqueológicos em Cacela-a-Velha foram iniciados ainda nos anos 90 e já intervencionaram várias áreas: umas dentro da própria vila (que corresponderia à antiga Alcáçova islâmica; ou seja o perímetro que seria muralhado ou fortificado), outras fora, em particular na zona do Poço Antigo, zona imediatamente a nascente da vila.
… zona onde decorreram os trabalhos deste Verão?
Sim, as recentes escavações (2018) incidiram sobre esta última zona (o Poço Antigo) onde já conhecíamos a existência de um bairro islâmico dos séculos XII–XIII (Período Almóada) que terá sido depois abandonado, com o espaço a ser reocupado com uma necrópole cristã muito antiga, com fundação pouco a seguir à conquista de Cacela pelas tropas da Ordem de Santiago. Esta conquista ocorreu em 1238–1240 e as datações mais antigas da necrópole apontam para 1260–1280.
Voltámos ao Poço Antigo com vários objectivos: caracterizar melhor o bairro islâmico ali encontrado (cronologias, limites, vivências de quem o habitava) e a necrópole cristã sequente (saber até quando foi utilizada, qual a sua extensão e conhecer melhor a população que ali está enterrada). E com as informações e materiais obtidos desenvolver um conjunto alargado de estudos e análises que inclui também datações, caracterização das dietas e da mobilidade das populações, paleogenética, etc.
Idealmente, e havendo fonte de financiamento para tal, queremos igualmente desenvolver um programa de conservação e divulgação da história e da arqueologia de Cacela-a-Velha. Tal incluirá exposições, catálogo das mesmas, restauro e musealização de algumas estruturas e estabelecimento de um centro interpretativo. Já conhecemos muito sobre o passado de Cacela e queremos passar esse conhecimento para a sociedade.
“Uma outra novidade é a de um enterramento de gato. Este caso, a confirmar-se ser da mesma cronologia da necrópole cristã (necessitamos de datações de radiocarbono para essa confirmação), será um caso muito raro senão inédito e comprovaria o seu estatuto de animal doméstico acarinhado pela comunidade medieval de Cacela”
O que assinala de mais significante nas escavações que possa avançar para já?
As escavações de 2018 abriram três áreas, num total de 88 m2. Existem muitos dados que necessitam de mais análises, mas podemos já avançar algumas informações…
As áreas escavadas demostraram que a localização do bairro e da necrópole não se amplificava para nordeste, mas muito provavelmente se estendia para noroeste em direção à vila de Cacela. Já sabíamos que a zona mais a sul, junto à arriba, está muito destruída pela erosão marinha e pela construção do caminho para a praia (infelizmente, esta área já não é recuperável).
A identificação de duas ruas suporta uma outra ideia: de que o porto de Cacela deve estar a leste, junto à embocadura da ribeira de Cacela. A exacta localização deste porto (e do seu estado de conservação) é algo que gostaríamos de aferir no futuro.
Confirmámos também que a construção do bairro implicou uma estratégia bem organizada de engenharia e arquitectura, com preparação do terreno base (geológico) em socalcos e implantação do bairro em terraços. E que a necrópole cristã se implantou entre as ruínas do antigo bairro islâmico.
Esclarecemos uma outra dúvida: as estruturas que pensámos talvez pertencerem à antiga Ermida de Nossa Senhora dos Mártires (que os antigos documentos mencionam como associada à necrópole cristã) não o são de facto, mas que pertencem a casas do bairro islâmico. A localização dessa ermida é assim mais um objectivo a prosseguir no futuro.
66 sepulturas identificadas
Falta descobrir muito sobre a organização do espaço?
As escavações deste ano indicam também que o abandono do bairro não terá sido total. Entre o abandono geral do bairro islâmico e o estabelecimento da necrópole cristã terão existido reocupações do espaço. Caracterizar melhor essas reocupações, que sabemos terem sido ocasionais e temporárias, é algo que queremos fazer nos próximos anos. (Quem eram estes reocupantes?)
Sobre a necrópole cristã confirmámos que se trata de enterramentos muito simples (em fossa), que existe uma densidade elevada de corpos (ao todo temos agora 66 sepulturas identificadas, 10 delas deste ano) e que a mortalidade infantil seria elevada. As mais jovens crianças (recém-nascidos e fetos; dos quais temos duas sepulturas este ano) eram sepultadas com o mesmo cuidado dos adultos, o que é raro acontecer em épocas mais antigas. Uma outra novidade é a de um enterramento de gato. Este caso, a confirmar-se ser da mesma cronologia da necrópole cristã (necessitamos de datações de radiocarbono para essa confirmação), será um caso muito raro senão inédito e comprovaria o seu estatuto de animal doméstico acarinhado pela comunidade medieval de Cacela.
Há muita investigação para continuar, então?
Ainda há muito para fazer em Cacela do ponto de vista histórico-arqueológico. Para lá do que já foi indicado queremos localizar a necrópole islâmica (por ora só temos identificada a cristã) e caracterizar detalhadamente o modo de vida das populações que viveram e morreram em Cacela. Eram todos locais ou alguns vinham de fora? Dedicavam-se a que actividades? Agricultura, caça, pastorícia, apanha de marisco, pesca? E que tipo de comércio realizavam? E com quem (restante al-Andalus e/ou norte de África)? Como se articulava a vida na Alcáçova com a vida do bairro extra-muralhas? Entre habitantes islâmicos e depois os cristãos existem algumas continuidades ou a conquista implicou o total repovoamento de Cacela? E será que ainda conseguiremos encontrar vestígios bem conservados das ocupações anteriores de Cacela, nomeadamente as de época romana? Cacela tem ainda muitas histórias para nos contar.
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