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Quarta-feira, Dezembro 25, 2024

A escola que liberta

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa

Despacho Normativo 1 H/2016. Tem designação que parece de gripe de aves mas está a fazer mossa. Com ele, o Governo pretende cumprir os contratos em vigor de associação com escolas até ao termo de validade e não celebrar novos contratos onde já exista oferta de escola pública bastante.

Vejamos o que está em causa. Os 139 milhões de euros que o Estado gasta em contratos de associação devem suprir dificuldades de oferta da rede pública. Cessando as dificuldades, os contratos não devem ser renovados.

Não se trata de impedir crianças e adolescentes de frequentar colégios; assim haja quem os pague. Trata-se de que o dinheiro dado pelo Estado a instituições com contratos de associação é para os donos dos colégios privados.

Esta medida escorreita e necessária vai incidir, após avaliação, sobre uma pequena fracção de 80 escolas e 45 mil alunos, uns 1800 professores e 170 funcionários. Representam apenas 3% da rede de escolas privadas do país; as restantes 97% não dispõem de apoios.

Dito isto, uma parte do país está a ser manipulada; nas televisões, nos jornais, nas redes sociais, fala-se como se o ensino estivesse ameaçado. Agita-se a “liberdade de escolha” que é só de alguns. O dr. Passos Coelho veio insinuar que o ministro da Educação representa “interesses”, alegadamente da FENPROF. Mais bom senso revelou a Federação Regional de Lisboa das Associações de Pais (FERLAP) que tomou posição pública contra os contratos de associação.

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A ocasião é de ouro para repensar o que é e o que pode ser a escola pública. E tentar colocar na posição certa as bandeiras que surgem às avessas.

Em primeiro lugar, o caso tem de ser trazido às devidas proporções. Entre 2001/2002 e 2012/2013, a população escolar registou a quebra de uns 83 mil alunos. Desde 2001, perdeu 23 mil professores. Desde 2001, menos 7024 escolas, de 14 mil para menos de 7 mil. Cortes brutais nos orçamentos em todos os graus de ensino pelo ministro Crato. Racionalização dos recursos, redução da natalidade, diz-se. Isto sim, representa uma ameaça ao ensino até porque o serviço da dívida soberana ultrapassou o orçamento do ministério da Educação.

Como bem sistematiza Norberto Pires, existem vários apoios à rede privada. Contratos simples para 372 escolas e 22130 alunos garantem o direito de opção educativa das famílias. Contratos de desenvolvimento apoiam 463 escolas e 7390 alunos no pré-escolar. Contratos de patrocínio apoiam 67 escolas e 6782 alunos do ensino especializado. Contratos de cooperação apoiam 123 escolas e 1401 alunos com necessidades educativas especiais

E chegamos aos contratos de associação: 80 escolas e 45633 alunos que, diz a imprensa, escreveram 52 mil cartas ao primeiro-ministro e 48 mil ao presidente da república. Estas escolas obrigam-se por concurso público, a aceitar todos os alunos até ao limite da sua lotação. Como cada turma vale 80500 euros, é toda uma indústria escolar que tem de ser reavaliada.

Olhando para além das 80 escolas que se agitam, o que me parece ser a questão de fundo é que, sendo positiva a existência de ensino particular, a escola pública é a única que tem os meios, a capacidade e a aspiração para defender os valores da sociedade e o bem comum, sem privilegiar interesses minoritários.

Foi este motivo que levou a geração de 1850 a criar de raiz um sistema de ensino público que chegasse a todos. Esse Portugal do séc. XIX entendeu que a literacia e a cultura eram a arma para sair do abismo e ganhar prosperidade. Percebeu que os novos castelos de Portugal eram as escolas.

Essa escola pública é, simplesmente, o maior legado da monarquia constitucional do séc. XIX. Numa época em que não havia colónias de monta, nem glória nem riqueza, nasceu um plano que atravessou regimes que apostaram na aprendizagem e na literacia.

Foi há 150 anos. Com analfabetismo assustador. Na cauda da Europa. Calcula-se que Portugal tinha uns 85% de analfabetos em 1850, tal como a Rússia e os Balcãs, enquanto os protestantes Países Nórdicos e Alemanha já só tinham 5%. Nos anos 1950, Portugal teria ainda uns 45% mas a Rússia soviética já só tinha 5%. Em 2011, Portugal atingiu os 5% de analfabetos. Foi a escola pública que deu essa literacia os portugueses. Só agora estamos iguais à Europa.

É esta realidade maciça que deve vir ao de cima. Os defensores da chamada “liberdade de escolha” não conseguem ver que as reformas no ensino público são o nervo da literacia portuguesa e devem ser feitas com rigor e calma. Mas não; procedem como uma variante de “Mários Nogueiras”. Apregoam provincianamente um modelo free to choose desde que seja o estado – nós, os contribuintes – a pagar essa liberdade, o que até faria o tio Miltie corar.

Para desengano dos arautos da desgraça, Andreas Schleicher, diretor do departamento de Educação e Competências da OCDE, e responsável máximo pelos testes PISA, em conferência da Gulbenkian a 7 de Maio, afirmou que Portugal registou desde 2000 uma grande melhoria entre os países da OCDE nos índices de literacia. A qualidade do ensino é uma conquista a acarinhar.

Creio que é essa memória e essa esperança que dá força a todos os professores que foram também alunos e que hoje sabem como devem mudar a escola, a começar pela sala de aula. Deve ser a mesma força que move a Secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão, que foi muito clara sobre o Despacho Normativo 1 H/2016.

Mas isso fica para um próximo capítulo.

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