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Domingo, Dezembro 22, 2024

Escolher os dirigentes da Administração Pública por concurso?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Terá sido António Guterres, ao aceder, em 1995, a primeiro ministro, a lançar, em conexão com a palavra de ordem “no jobs for the boys”, a intenção de passar a escolher os dirigentes da Administração Pública por concurso

Como apareceram os concursos

Disseram-me depois que esta ideia viria dos Estados Gerais Para uma Nova Maioria, onde Guterres teria afirmado que a única excepção seria o Director-Geral da Contabilidade Pública, cuja nomeação deveria ser política. A ser verdade, tal atestaria dramaticamente a falta de experiência governativa e de Administração Pública de António Guterres, que pensaria ser a Direcção-Geral da Contabilidade Pública, um exemplo tradicional de estabilidade de estruturas dirigentes e de colaboração com todos os Governos, uma fábrica de soluções para financiar novas despesas públicas que teria de ser dirigida por alguém de estreita confiança política.

Até certo ponto, contudo,  percebo a sensibilidade dos socialistas nesta época: sob os primeiros governos constitucionais e até ao Governo do Bloco Central a partidarização atingiria sobretudo os lugares  de topo e intermédios dos serviços regionais e distritais criados nos vários Ministérios, cujos nomes que acabavam por ser preenchidos por indicação das federações ou comissões políticas distritais, todavia a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1987, criou a ideia – apesar do Estatuto do Pessoal Dirigente que Isabel Corte-Real quis aprovar em 1989 – de que, mesmo nos serviços centrais, os dirigentes teriam, a prazo, de vir da área social democrata: A reestruturação de Ministérios empreendida a partir de 1993 a partir de impulso originado no Ministério das Finanças, se não conseguiu afastar tantos funcionários como teria sido planeado por o Tribunal Constitucional ter limitado o alcance da legislação sobre “disponíveis”  conseguiu redefinir o elenco dos lugares dirigentes, do topo ou intermédios, do preenchimento dos quais regra geral os membros do PS terão sido excluídos.

De certa maneira estivemos nesta altura perto de entronizar na nossa Administração Pública o spoil system que nos primórdios da democracia dos EUA abrangia não só os dirigentes mas a generalidade dos funcionários. Em recente entrevista João Bilhim refere:  …uma cultura político-partidária que é a do despojo. O que é, quem ganha uma batalha distribui entre os vencedores os despojos da batalha. Sempre foi assim. Se a política é a guerra em tempo de paz, quando um partido ganha eleições porque não há-de distribuir pelos seus apaniguados? Não são processos de intenções, é uma questão cultural e que não resolvemos enquanto não a enfrentarmos.”

No continente europeu a tradição,sendo  diferente, levava a resultados semelhantes. Na mesma entrevista Bilhim afirma:  Em Portugal temos uma segunda razão, que é o patrimonialismo. Desde a Idade Média que o soberano distribuía os cargos políticos como se fossem propriedade do próprio.

Os concursos para dirigentes intermédios

Guterres avançou assim a partir, creio, de 1997 com os concursos para dirigentes intermédios, deixando de lado a nomeação dos dirigentes de topo, e valendo-se, com alguma má fé, da ideia disseminada pela comunicação social de que os primeiros também eram cargos de nomeação política. Ora cabia aos directores gerais a sua escolha dentro do pessoal de carreira, e certamente, descontando casos de amiguismo, quando a escolha recaia em quadros dos seus organismos, era elementar que a responsabilidade fosse sua, já que a gestão de uma organização implica conhecer os quadros e poder escolher os que estão em melhores condições de colaborar com a Direcção, e, tratando-se de não vinculados à função pública, já  era obrigatório o concurso documental. O membro do governo nomeava então sob proposta do dirigente máximo do organismo. Nomeação política?

De qualquer forma Durão Barroso, em 2004, manteve a solução, o que sendo útil para a estabilidade da policy image, deixou os dirigentes de topo já fragilizados, ainda mais desresponsabilizados. A solução nunca foi, que eu saiba, objecto de avaliação, mas desde muito cedo se inaugurou o expediente de preencher em substituição os lugares a pôr a concurso, para não falar do bullying sobre alguns dos dirigentes entrados por concurso quando havia mudança de director-geral ou de presidente. Entretanto novas reestruturações, e sobretudo as associadas ao PRACE de Sócrates e ao PREMAC de Passos Coelho, extinguiram ou fundiram numerosos organismos, e/ou impuseram o “achatamento de estruturas”, fazendo desaparecer muitos lugares de dirigentes intermédios. Onde estes se mantiveram passou a ser menos importante o conhecimento do trabalho de serviço e mais a capacidade de gerir dezenas de funcionários.

Quanto à nomeação de dirigentes de topo e de gestores públicos os esforços de nomeação em  função da competência nunca passaram pela abertura de concursos e, em geral, nunca foram muito credíveis. Mesmo Luís Filipe Pereira, ao propor a empresarialização dos hospitais públicos e o preenchimento dos lugares em conselhos de administração com gestores com formação empresarial não escapou à acusação de ter nomeado incompetentes com o cartão conveniente.

A CRESAP e a selecção / validação dos dirigentes de topo

Genericamente a CRESAP, instituída por Pedro Passos Coelho, organiza procedimentos concursais para lugares dirigentes de topo da Administração Pública, com base, e muito bem, numa projectada carta de missão, que é assim tornada pública, apresentando ao Governo não um vencedor mas uma lista tríplice, e pronuncia-se sobre as escolhas do Governo para lugares abrangidos pelo Estatuto do Gestor Público.

Chegado aqui ressalvo que sendo indiscutível que a escolha dos dirigentes deve assentar na competência, não me parece que a livre escolha recaia necessariamente sobre incompetentes e que os procedimentos concursais levem necessariamente a escolher os melhores. No entanto, reconheço o esforço da CRESAP e estaria disposto em princípio a lançar a seu crédito que a sua existência e funcionamento impedem nomeações totalmente desadequadas.

As debilidades que têm sido apontadas ao procedimento são de vária ordem:

  • em primeiro lugar, que tendem a ser torneados pela previa nomeação para o lugar, em regime de substituição, do  candidato desejado pelo Governo, que assim assegura com grande probabilidade, se não uma vantagem imbatível (quem concorrerá sabendo que já está alguém escolhido e em funções ?) pelo menos um lugar na lista tríplice;
  • em segundo lugar que é comum numa lista tríplice ocorrer a existência de pelo menos um candidato da área do PSD ou CDS e de outro da área do PS, sendo escolhido  o mais próximo do Governo que estiver em funções,

Tanto num caso como noutro o que era prática sob o governo PSD/CDS estará, diz-se, a ser repetido agora a favor do PS.

  • em terceiro lugar, last but not the least, saber se a saída de João Bilhim por jubilação afectou irreversivelmente a independência da CRESAP e a qualidade das suas decisões.

De qualquer forma, a gestão é um exercício de capacidade de escolha, mas também de bom senso. Um ministro que recebe um ministério deve ter o  poder de fazer alguns ajustamentos nas equipas de dirigentes de topo, mas em geral deve saber trabalhar com a estrutura e com os dirigentes em funções. O mesmo se dirá dum novo director-geral em relação às equipas de dirigentes intermédios. Empiricamente, apontaria a proporção de 1/6 para os ajustamentos  que poderiam ser introduzidos em cada mandato, mas vá-se-lá escrever uma coisa destas em lei …

Alternativas

Independentemente de ser crítico do actual desenho dos procedimentos julgo conveniente manter alguma estabilidade e deixar consolidar a formação de um pool de dirigentes escolhidos – ou pelo menos considerados para efeitos de listas tríplices – ou validados pela CRESAP havendo o cuidado de colher um feed-back quanto ao exercício de funções e à avaliação da  actividade desenvolvida.

Na verdade, julgo que a experiência da CRESAP, ela própria, ganharia em ser avaliada de forma independente antes de reformulado o desenho da escolha de dirigentes, mas nesta avaliação deve estar incluída a adequação do desempenho dos seleccionados às expectativas.

Pessoalmente recomendaria que se recorresse a procedimento concursal – com escolha do candidato a nomear ou, se quisermos, elaboração de lista tríplice – quando o governo não tivesse de facto um nome seleccionado – e que nas restantes situações se aplicasse o procedimento previsto actualmente para o estatuto do gestor público ou seja, a validação da escolha, mas a CRESAP aí deveria saber dizer “não” e ousar fazê-lo, não se podendo repetir o que se passou recentemente com o caso do deputado  indigitado para a ERSE.

Em qualquer dos casos, deve ser de imediato posto fim ao expediente fraudulento de nomeação em substituição dos já escolhidos de facto. Ou as nomeações em substituição quando se verifique vacatura de lugares dirigentes de topo se cingem a funcionários do próprio organismo, preferencialmente já exercendo funções como dirigentes intermédios,  ou se declara a inibição dos nomeados para participarem no procedimento concursal relativo ao preenchimento do lugar em comissão de serviço.

Inibição da acumulação de funções dirigentes com a actividade partidária

No trabalho a que já fiz referência no artigo anteriormente publicado no Jornal Tornado, José Maria Sousa Rego, Secretário-Geral da Presidência do Conselho de Ministros de 2002 a 2016, inclui nas cinco medidas a serem adoptadas, conjugadamente, para “reequilibrar o sistema”, sendo muito incisivo na quarta:

Defendemos a obrigatoriedade de suspensão da actividade partidária de dirigentes em cargos superiores da administração pública, durante o exercício dos respectivos mandatos”.

O Estatuto do Pessoal Dirigente contêm já, julgo, um conjunto de características profissionais a que deve obedecer a actividade dos dirigentes, designadamente dos dirigentes de topo, não me repugnando embora que, em sede de delimitação negativa das obrigações, se fixe que os deveres inerentes prevalecem sobre quaisquer outros (e não só dos inerentes à filiação partidária).

Não me repugnaria, que à luz do que já se prevê no Estatuto, ficasse claramente legislado que dirigentes de topo não podem exercer funções de direcção, fiscalização ou outras quaisquer, incluindo nos órgãos sociais, nacionais, regionais ou locais em qualquer outra organização, incluindo partidária, ou instituição.

Já a suspensão da actividade partidária parece-me constituir uma compressão inadmissível do direito de opinar e participar na construção da orientação de um colectivo. E poderá ser uma exigência inconstitucional, por afectar o direito dos destinatários a uma opção partidária.

 

O que não quer dizer que nessa altura o PSD tivesse encontrado facilmente gente suficiente para preencher todos os lugares. Sei de uma nomeação de um subdirector-geral para o Ministério da Educação pertencente aos TSD  que foi declarada nula porque a licenciatura do nomeado era falsa, o que muito afligiu o Secretário de Estado que, pessoa séria e com currículo na área da gestão, havia tomado sobre si seleccionar nomes a indicar ao Ministro e aos seus colegas.
Já se o dirigente do organismo escolhesse um funcionário de carreira de outro quadro, como a lei então permitia, a questão poderia ser mais complexa, e na época das reestruturações houve directores-gerais que, nomeados para um novo organismo, trouxeram consigo a sua equipa.
Curiosamente Durão Barroso veio a criar a possibilidade de existência de coordenadores de estruturas abaixo dos níveis de direcção de serviços  e de divisão,  ou seja, complexificou-se a estrutura para poupar nas remunerações dos dirigentes.
Com as devidas adaptações essa poderia ser também a solução para a escolha de dirigentes intermédios que voltaria tendencialmente a ser feita pelos directores gerais.
No Centro do Poder, Governo e administração pública em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018.

 

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