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Sábado, Novembro 23, 2024

Escrevendo em tempos de pandemia: Boccaccio, Dante, Petrarca, Chaucer

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

A ideia de quarentena se originou na Itália do século 14, atingida pela peste. As cidades italianas foram o berço do capitalismo. Boccaccio testemunhou esses momentos importantes e deu ao mundo um de seus livros mais conhecidos e amplamente lidos, “O Decameron”.

por Jenny Farrel | Tradução de José Carlos Ruy

A Peste Negra foi a pandemia mais devastadora já registrada, resultando na morte de 75 a 125 milhões de pessoas. Atingiu seu pico na Europa entre 1347 e 1351, onde chegou em navios mercantes italianos vindos da Ásia pela Rota da Seda. Na verdade, a ideia de quarentena se originou na Itália do século 14, atingida pela peste, quando os navios que chegavam a Veneza vindos de portos infectados eram obrigados a esperar 40 dias em alto-mar antes de atracar. A palavra quarentena deriva do italiano quaranta giorni, 40 dias.

As cidades italianas foram o berço do capitalismo. Ao lado de Veneza, Lombardia (Milão) e Toscana (Florença) eram as regiões mais avançadas. O comércio e a indústria se desenvolveram ali no século 13, favorecidos por suas rotas comerciais para o Oriente.

Veneza tinha possessões na Grécia, Creta, Chipre e na costa da Dalmácia, do mar Adriático. Os navios venezianos faziam escala em portos europeus e o ducado veneziano se tornou uma moeda internacional. Com 200 mil habitantes, Veneza tinha uma população surpreendentemente grande para a época.

A ordem social do estado veneziano era determinada por seus interesses econômicos e pela nobreza, de modo que sua constituição permaneceu aristocrática.

Era diferente em Florença, a segunda cidade mais poderosa da Itália. Florença tinha uma constituição desde 1293, que excluía a nobreza do governo e transferia a administração exclusivamente para os patrícios. Sua assembleia, porém, excluía os pequenos artesãos e as pessoas comuns. Naquela época, Florença era a única na Europa que tinha uma constituição baseada em princípios democráticos burgueses.

Essa sociedade recém-desenvolvida trouxe grandes mudanças na maneira como as pessoas entendiam o mundo e seu lugar nele. Nas artes, os humanistas do início do Renascimento começaram a redescobrir os livros e a arte dos antigos, e tiveram o foco neste mundo, o mundo que a nova classe, a burguesia, estava prestes a dominar. Esse novo enfoque nos comerciantes, artesãos e patrícios trouxe a crescente importância de seu vernáculo como idioma.

Dante (c.1265-1321), que representa a transição da escrita medieval para a renascentista, não escreveu sua “Divina Comédia” (1308-21) em latim, como se poderia esperar de uma obra desse porte na época, mas em toscano ou o italiano florentino, que ajudou a tornar esse dialeto o padrão para a Itália. Francesco Petrarca (1304-74) e Giovanni Boccaccio (1313-75), seguiram Dante, sendo importantes escritores renascentistas, e ambos escreveram no dialeto florentino.

Boccaccio testemunhou esses momentos importantes e deu ao mundo um de seus livros mais conhecidos e amplamente lidos, “O Decameron”. Escrito e ambientado durante a peste, sua introdução e trama dão-lhe vida. Na presente circunstância, vou abster-me de me aprofundar nos detalhes horríveis da introdução de Boccaccio, e deixarei isso para o leitor interessado.

A ideia de um grande número de histórias coletadas fazendo parte de uma história emoldurada não era totalmente nova. Séculos antes, o Oriente Médio havia produzido “Mil e Uma Noites” (em árabe, alf layla wa layla), cujos manuscritos mais antigos datam do século IX. Refletem um tipo diferente de sociedade, uma sociedade feudal, e mesmo assim o faz com tanta vivacidade e ousadia quanto Boccaccio na descrição de seu mundo.

O poeta persa Hafez (1315-90), por outro lado, escreveu poesia satírica e de amor que tem paralelo em Petrarca.

A trama de Boccaccio descreve dez jovens ricos que deixam Florença para escapar à peste, e se mudam para uma casa de campo, levando alguns criados. E decidem que cada um deve governar por um dia e presidir em um determinado horário todas as tardes, quando cada um conta uma história sobre um tema diferente. O que se desenrola é um panorama da vida florentina do século XIV, com algumas das histórias contadas tendo origem em diferentes culturas. Com a “Divina Comédia” de Dante em mente, a de Boccaccio foi chamada de “Comédia Humana”.

Muitas das histórias satirizam a luxúria e a ganância clericais, as aventuras de mercadores viajantes (e suas esposas em casa), as tensões entre a nova classe comercial rica e as famílias nobres. Muitas histórias são explicitamente sexuais. No entanto, embora isso tenha contribuído para a enorme popularidade do livro, seria errado reduzi-lo apenas ao seu tema sexual.

Na verdade, tornou-se uma fonte rica para escritores da literatura mundial. Um exemplo é a terceira história do primeiro dia, uma história de origem anterior a Boccaccio. O grande poeta iluminista alemão Gotthold Ephraim Lessing descobriu a história e, com base nela, escreveu sua famosa peça “Nathan, o Sábio”, sobre o valor igual de todas as religiões e culturas; foi a primeira peça encenada em muitos teatros alemães após a Segunda Guerra Mundial.

A quinta história no quarto dia foi fonte para o poema de Keats “Isabella, or the Pot of Basil”, um poema sobre o qual Shaw disse que se Marx tivesse escrito um poema em vez de “O Capital”, teria sido este.

Dito isso, não faz justiça ao trabalho simplesmente visualizá-lo como um repositório. Na verdade, a maneira em que foi mais ricamente emulado foi por Geoffrey Chaucer (1343-1400) em seus “Contos de Canterbury”. Chaucer tinha visitado a Itália e era muito culto. Seus contos maravilhosos, escritos entre 1387 e 1400, trazem de Boccaccio a ideia de uma história emoldurada – a viagem de Londres a Canterbury, com trinta peregrinos contando histórias para passar o tempo. Na verdade, eles são semelhantes em seu conteúdo frequentemente obsceno e na sátira do clero.

No entanto, há uma diferença. Os peregrinos de Chaucer vêm de três classes distintas da sociedade – a nobreza, o clero e a gente comum – e todos estão mais preocupados com as coisas mundanas do que as espirituais. Se Chaucer tivesse concluído este projeto de trinta peregrinos contando duas histórias cada um no caminho para Canterbury e duas novamente no caminho de volta, teríamos 120 histórias. Foi um projeto muito ambicioso, que Chaucer não conseguiu concluir. Ele terminou 24 delas, e outras ficaram em fragmentos. No entanto, os contos que temos pintam um quadro igualmente vívido da Inglaterra do século 14, como Boccaccio faz de Florença. E embora tenha sido a peste que uniu os jovens florentinos em seu refúgio no campo, aqui é a peregrinação que une esses diversos ingleses no mesmo lugar ao mesmo tempo.

A peste em Florença (1348) foi descrita no Decameron de Boccaccio – Gravura de L. Sabatelli (Creative Commons)

O plano de Chaucer difere do de Boccaccio também pelo fato de que os prólogos dos contos caracterizam o contador da história em detalhes, em particular linguisticamente. Como apontado, eles mostram o leque de classes na Inglaterra medieval. Por exemplo, a Esposa de Bath só usa adjetivos germânicos, enquanto a Prioresa usa principalmente adjetivos de etimologia francesa, refletindo por um lado uma pessoa do povo comum, por outro uma mulher de origem nobre.

Como Dante, Petrarca e Boccaccio, Chaucer escreveu sua obra-prima em língua vernácula. É difícil imaginar hoje que novo ponto de partida isso representou. Por mais de 300 anos, desde a invasão normanda da Inglaterra, em 1066, o inglês não era falado pela nobreza e pelas classes altas na Inglaterra. O inglês, especificamente o anglo-saxão, foi mantido vivo pelas pessoas comuns da Inglaterra como seu vernáculo. Dado que esta não era mais uma língua de educação, leitura, etc., a língua inglesa se desenvolveu como um incêndio durante o período historicamente muito curto de 300 anos até o inglês médio, uma forma da língua que ainda se pode entender, com algum esforço.

“The Canterbury Tales” é a primeira grande obra da literatura inglesa, e estabeleceu a legitimidade artística do inglês médio vernáculo, em oposição ao francês ou ao latim. Mais ou menos na mesma época, John Wycliffe, um dos primeiros reformadores religiosos, traduziu a Bíblia para o inglês vernáculo (1382). Esse desafio ao latim como língua de Deus foi considerado um ato revolucionário na época, e a Igreja proibiu a tradução. O acesso à Bíblia em língua vernácula foi a chave para a Revolta Camponesa de 1381, onde um dos líderes, John Ball, perguntou em um sermão: “Quando Adão investigou e Eva se estendeu, quem era então o cavalheiro? Desde o início, todos os homens foram criados iguais por natureza.”

O vernáculo foi crucial para a mudança social. Usar a língua que o povo fala significa identificar-se com as pessoas. Significava enfrentar uma classe dominante elitista e exclusivista e capacitar o povo a compreender a injustiça de sua situação, dando-lhes assim uma perspectiva de mudança. Esse uso da linguagem do povo, que o Renascimento trouxe, está profundamente ligado à luta por uma nova era.


por Jenny Farrel, Nasceu em Berlim, mora na Irlanda desde 1985 e trabalha como conferencista no Galway Mayo Institute of Technology. Suas áreas de interesse são a poesia irlandesa e inglesa e a obra de William Shakespeare. Escreve para “Culture Matters” e “Socialist Voice” (jornal do Partido Comunista da Irlanda)  |   Texto em português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy

Exclusivo Editorial PV (Fonte: People’s World) / Tornado


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