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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Espanha nação, Catalunha nação – I

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

João Almeida Santos publicou há dias, neste jornal, um artigo sobre a situação na Catalunha, “¿Qué va a hacer, ahora, Mariano?”, incidindo em particular nos aspectos jurídicos e institucionais. Não o vou repetir, antes complementá-lo dando mais ênfase à perspectiva política.Afirma a constituição de 1978 que se fundamenta na indissolúvel unidade da Nação espanhola e que reconhece o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram. Mas nação e nacionalidade são entidades diferentes? Foi tentativa de iludir a questão, usando o termo bem definido de nacionalidade (isto é, a relação jurídica individual com o Estado – fulano tem nacionalidade portuguesa) como qualquer coisa que não se quer que seja nação mas que é mais do que simples região. Ora isto não faz esquecer que há mesmo várias nações em Espanha: Catalunha, País Basco e Galiza.

Pode Espanha ser uma nação e a Catalunha também? Não me parece paradoxal, sendo o conceito de nação suficientemente elástico para poder haver uma nação que contenha outra.

Se pensarmos em nação como um conjunto de pessoas que partilham uma história colectiva comum, com tradições estabelecidas, costumes consagrados e generalizados a toda essa comunidade, quase sempre a mesma língua e origem étnica, e principalmente a consciência nacional (passe a falaciosa petição de princípio) e um sentido colectivo de “querer viver juntos”, a Catalunha é inegavelmente uma nação.

Mas é esse mesmo critério essencial de consciência nacional que une os diferentes povos ibéricos salvo o português numa entidade social e cultural que se construiu em conjunto desde os reis católicos, que assim se afirmou na conquista e no império e que sempre se sentiu uma comunidade com identidade, para além das diversas identidades nacionais, embora com flutuações, em sucessivos períodos, no sentido de pertença a essa identidade de identidades e ao balanço centro-periferia. É assim um caso muito especial, esta Espanha feita de espanhas bem diferenciadas. Uma nação de nações. É óbvio que, sendo o estado uma forma política de instituir a vida colectiva da nação (ou de mais do que uma), o caso espanhol merece uma solução própria, como discutiremos no próximo artigo.

O nacionalismo (em sentido positivo, não exclusivista, isolacionista ou xenófobo) nem sempre corresponde a um independentismo, isto é, a identidade estado-nação. Há muitas nações históricas, como a nossa, que desde há séculos tem um território, um autogoverno independente (com o breve interregno filipino) e, depois, um estado. Mas também há muitos estados plurinacionais – China, Rússia, Canadá, África do Sul, etc. – e mesmo em relação aos EUA parece-me duvidoso que um Sioux se considere membro da nação americana. No outro lado, um povo que inegavelmente faz uma nação, como os ciganos, está disperso por muitos estados.

Todo o independentismo tem uma justificação nacionalista, excepto poucos casos de instrumentalização política circunstancial, como a separação entre a Índia e o Paquistão, a secessão do Bangladesh ou as tentativas pós-25 de Abril nos Açores e Madeira, sendo óbvio que não há uma nação açoriana ou madeirense. Por outro lado, nem todo o nacionalismo tem decorrência independentista. Por exemplo, mesmo na Espanha, a nação galega nunca nos tempos modernos reivindicou a independência.

O actual processo catalão tem tido muitos simpatizantes movidos, superficialmente, por princípios correctos, como o direito à autodeterminação. No entanto, é preciso ver as coisas como elas são, complexas, e não abstractamente. O princípio foi concebido numa época em que o problema se identificava com a descolonização e não foi pensado para algumas situações europeias, como a Catalunha, o País Basco, a Córsega (e nem se pensava na Escócia). Mesmo em relação às colónias, a situação era de tal forma complicada que a própria OUA defendeu sempre o princípio da manutenção das antigas colónias como estados agora independentes, apesar de eles não fazerem sentido em termos de etnias ou nações.

A situação europeia agravou-se, em termos de direito à independência nacional, pela grande mobilidade, transformando as nações tradicionais, como a catalã, num puzzle étnico. Quem anda por Barcelona vê grande parte das pessoas falando o espanhol como língua nativa ou língua franca. Dir-se-ia que talvez para comunicação dos falantes de catalão com os residentes e visitantes espanhóis ou turistas estrangeiros. Mas, nas lojas e por toda a parte se vê que, entre colegas, podendo falar catalão, continuam a exprimir-se em espanhol. Quantos cidadãos da Catalunha se estarão a sentir partidos, neste processo independentista, entre o povo catalão de adopção e o povo espanhol de origem? Podendo ainda pôr-se a possibilidade de posteriores segregações ou exclusões, como em relação à enorme minoria russa nos estados bálticos.

E com uma diferença de 165.000 votos não se consegue, pacificamente e unindo o povo, ir-se para uma declaração unilateral de independência. Por detrás disto, há medo, que nunca ajuda em política. E também, como escreveu Imma Aguilar Nàcher no eldiario.es, “esto iba de sentimientos identitarios y de emociones bien gestionadas”.

É certo que o independentismo catalão se tem aguentado na rua e merece respeito, para mais tendo em conta a repressão desmesurada depois da invocação do artº 155º. No entanto, a esquerda não deve apoiar um processo que divide sectores sociais que partilham a mesma política de direita, sendo o processo principalmente uma luta de rivalidade interclasse, numa velha tradição de competição entre as altas burguesias barcelonense e madrilena. Assunto em família. Dupond e Dupont. Puigdemont é o herdeiro de uma linha de direita catalã que teve expoente no corrupto Jordi Pujol.

O independentismo é a muleta para enganar o pobre povo, touro poderoso mas sempre domável. Ganha a direita catalã e ganha a direita espanhola. Para a esquerda é que fica a perda.

Como declarou Alberto Garzón, coordenador da Esquerda Unida, “a independência da Catalunha não vai permitir às classes populares viver melhor nem emancipar-se do capitalismo”. E também, “quando o direito de autodeterminação é exigido pelas partes mais ricas, há que suspeitar”.

Nestas condições, como se deverá proceder, politicamente, de um lado e outro? Fica para a segunda parte, na próxima semana. Entretanto, Bom Ano para todos, permitindo-se-me destaque para os meus bastantes amigos catalães.

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