As fronteiras do Ministério da Administração Interna
Quando em 1974 o Ministério do Interior se passou a denominar Ministério da Administração Interna abrangeu temporariamente as matérias relacionadas com a Administração Pública que têm vindo a oscilar entre a colocação na Presidência do Conselho de Ministros, a elevação a pasta própria e a integração no Ministério das Finanças. A tutela da Administração Regional e Local ficou também a pertencer à pasta até que perdeu, com Miguel Macedo, os Governos Civis, únicos serviços externos do Ministério, como António Costa assinalou na altura. Ver no Jornal Tornado de 7 de Julho de 2021 “Recordações dos Governos Civis”.
Bem, conseguiu-se constituir a Protecção Civil e a tutela autárquica passou a ser missão da Coesão.
Na prática, o titular do Ministério da Administração Interna ficou com António Costa a tutelar os polícias, o combate a incêndios e os estrangeiros e fronteiras. Constança Urbano e Sousa estaria preparada para um trabalho de fôlego no domínio das migrações onde não teve tempo de mostrar a sua capacidade, não atacou a intrincada situação na PSP motivada pela pulverização sindical e veio a sair queimada pelos grandes incêndios de 2017. Eduardo Cabrita e José Luís Carneiro geriram as várias valências, articulando-se o segundo com a Presidência do Conselho de Ministros quanto á criação da Agência das Migrações.
A Ministra da Administração Interna do actual Governo tem ficado fora dos problemas da Agência, que têm sido geridos pela Presidência do Conselho de Ministros. Não tocou nos incêndios recentes, a Protecção Civil geriu a crise por si própria e o Ministro da Coesão prontamente apareceu com os cheques. Ficou com os polícias, para ser o rosto do Governo nos aumentos remuneratórios, e enfim a sua experiência como Inspectora-Geral da Administração Interna deu-lhe ideias sobre reestruturação da função policial e a noção do que é politicamente correcto dizer sobre os problemas que afectam as corporações.
Só que a ideia de reestruturação parece ter sido interiorizada como “Lei Mental” pela Ministra e não se traduziu ainda, que tivéssemos visto, em projecto estruturado, servindo como justificação para afastar o Director Nacional da PSP recentemente empossado no cargo – depois da oferta de uma nomeação como oficial de ligação em Moçambique – e toda a equipa recentemente constituída por este, e nomear outro, que constituiu uma equipa totalmente nova.
Isto num contexto em que o corpo policial havia sido pacificado por um reajustamento salarial, e havia toda a conveniência em não introduzir novos factores de perturbação.
Uma péssima inspiração pois não basta dizer que é preciso reestruturar. Deveria ser preciso fundamentar a substituição de responsáveis com a impossibilidade de quem está em funções implementar correctamente a reestruturação, uma vez delineada esta.
Odair Moniz
É-me difícil ver na recente morte de Odair Moniz um reflexo directo das alterações introduzidas na Direcção Nacional da PSP. No entanto a comunicação veiculada para o público parece-me reflectir dificuldades no funcionamento da nova equipa, fruto talvez de falta de rodagem enquanto tal, sendo que, por razões de que não localizei notícia, o Director Nacional titular não esteve no comando nos primeiros dias.
Naturalmente a comunicação inicial assentou no debriefing dos dois agentes da patrulha envolvida, sendo verosímil que não tivessem sido canalizadas para a comunicação oficial suposições que não pudessem ser de imediato confirmadas.
Entre estas suposições estaria a de que Odair Moniz se estaria a deslocar num carro roubado – um BMW que afinal tinha legitimamente adquirido – sendo que quando esta versão caiu, apareceu a de que teria pisado um traço contínuo, com um ou outro jornalista a recordar ao público que de facto a PSP era muito severa com quem pisasse um traço contínuo, e com outros a ironizar sobre esta nova versão. O cenário do confronto durante o qual um dos agentes disparou quatro tiros foi descrito como se se tratasse de uma situação de legítima defesa perante a exibição por Odair de uma arma branca, só que no interrogatório da PJ isso não terá sido confirmado (e houve telemóveis que registaram conversas), e agora temos o advogado posteriormente constituído pelo agente autor dos disparos a dizer que que se baseará na versão oficial da PSP. Para coroar este esforço de informação (?), veio a divulgação do cadastro da vítima, que envolveria actos violentos, no que parece um esforço de credibilizar a tese de que os agentes teriam corrido riscos durante o confronto.
Entretanto foi sendo divulgado por outras reportagens que o Bairro do Zambujal seria um bairro sereno, multicultural, com cuja associação Odair colaborava, que nos últimos oito anos aquele não se tinha envolvido em nada, que era cozinheiro e tinha recentemente aberto um estabelecimento no bairro, que se afastava de conflitos que pudessem ocorrer, que tinha família constituída, que era popular entre os jovens, que por vezes lhes dava oportunidade de conduzirem o seu BMW. Numa das reportagens até apareceu uma foto sua com Marcelo Rebelo de Sousa durante a pandemia (bem sei que Marcelo já esteve em todo o lado e já tirou fotos com toda a gente). E, testemunho da preocupação criada com as circunstâncias da sua morte, a Embaixada de Cabo Verde em Lisboa, o Presidente da República de Cabo Verde, e o Primeiro Ministro de Cabo Verde(i), tiveram a preocupação de difundir mensagens apelando para os seus patrícios emigrantes em Portugal confiassem nas instituições portugueses para esclarecerem o sucedido. Pela família e amigos foi dada a indicação muito precisa de que na noite em que foi morto se encontrava numa festa na Amadora e até tinha ido buscar carne ao seu bairro.
Será difícil reconstituir as circunstâncias em que se verificou a alegada perseguição pela PSP mas impende sobre o DIAP de Lisboa do Ministério Público uma responsabilidade acrescida. Como já referi, não me admiraria que na sua raiz estivesse a aparente “incongruência” entre a cor do condutor e a marca do veículo em que se deslocava (como no célebre anúncio muito antigo “Um preto de cabeleira loura ou um branco de carapinha…”). A PSP tem de colaborar no apuramento dos factos e ainda bem que o Director Nacional explicou para o país, mas também para dentro da sua corporação, que ninguém está acima da lei, nem sequer a Polícia(ii).
Desacatos, distúrbios, tumultos …
Não sei se os leitores ainda têm presentes os incidentes registados há uns anos no Bairro Jamaica do Seixal e a realização em Lisboa de uma manifestação que foi dispersa pela PSP. Falou-se então da possibilidade de constituição de grupos de acção para defesa das comunidades que tivessem de enfrentar a PSP, mas a ideia não terá sido imediatamente concretizada(iii).
Algum tempo depois escrevi dois artigos no Jornal Tornado visando criticar algumas teses que vinham sendo associadas a alguma retórica anti-racista:
Não posso, na mesma linha de preocupações, deixar de criticar as acções que no presente ensejo acabaram por ocorrer e que foram sendo quase invariavelmente rotuladas pela comunicação social como “desacatos” e mais tarde como “tumultos”, qualificação que me parece um exagero pois está geralmente associada ao envolvimento de multidões, quando o que foi sendo reportado remetia para a acção de pequenos grupos, ou quando muito, de concentrações de uns vinte elementos que compareceram em certos locais a certas horas previamente determinadas (iv).
E se critico as acções em causa é sobretudo por ter consciência de que funcionam como provocações a uma intervenção desproporcional das autoridades, exigida pelas populações, intervenção que depois reforçaria (talvez) o protesto, etc.
Estiveram em causa, ao que me fui apercebendo
- a vandalização, geralmente com fogo posto, de equipamentos locais como caixotes do lixo e paragens de autocarro, que foi ocorrendo em vários concelhos, sendo que a PSP conseguiu capturar ou identificar alguns dos protagonistas;
- o incêndio de quatro autocarros que operavam sob a marca Carris Metropolitana, sendo um desviado na Portela de Carnaxide e outro no bairro do Zambujal (o elemento que pensava liderar a operação deu uma entrevista em que confessou ter sido ultrapassado pois a ideia seria atravessar o autocarro numa passagem mas os envolvidos largaram-lhe fogo, como na mesma noite sucedeu ao de Carnaxide), um na Arrentela, e o quarto em Santo António dos Cavaleiros, com utilização de um cocktail Molotov, ficando o motorista com queimaduras;
- incêndio de umas trinta viaturas particulares, sendo dez numa noite em Benfica e dez na noite seguinte, tendo a PSP capturado o presumível responsável de uma das operações (e talvez de ambas).
De modo geral a opinião pública reagiu ao atentado contra o motorista da Carris Metropolitana em Santo António dos Cavaleiros, e ao incêndio de viaturas particulares – que poderia ter acontecido a qualquer um de nós – sendo que a comunicação social, sem abordar outras possibilidades, foi explicando que para as companhias de seguros suportarem os prejuízos seria necessário que os proprietários lesados tivessem seguro de danos próprios, com cobertura expressa de riscos de vandalismo, etc.
Especialistas em Segurança
Temos vindo a assistir à prosperidade crescente da tribo dos especialistas em segurança, sobretudo nos meios de comunicação social. Até os militares comentadores dos conflitos na Ucrânia, Médio Oriente, etc. nos são apresentados como especialistas em segurança. Na discussão sobre os relatórios de segurança interna tudo vai bem: há uns grupos de extrema direita que estão mais ou menos controlados, a extrema esquerda reduz-se a uns ambientalistas loucos…
A irrupção de reacções em vários pontos da Grande Lisboa, aliás narrada como se estivesse a haver tumultos tipo americano em toda a capital ou em toda a área desta, deu origem a momentos de puro pânico.
Um destes especialistas terá chegado a defender que a PSP entrasse em todas as casas do Bairro do Zambujal. Ora efectivamente terão entrado 15 polícias de cara tapada em casa de Odair numa altura em que familiares e amigos apoiavam a família, mas logo tiveram de se retirar não vindo o comando a assumir a existência desta intervenção.
Transcrevo a propósito resumo de uma intervenção : “… especialista em segurança, analisa os distúrbios da última noite, considerando que a PSP não deveria estar preocupada em prestar esclarecimentos sobre o que está a acontecer em vários concelhos da Grande Lisboa. “É importante que alguém da tutela, que não a PSP, informe a população que a polícia está na rua e que há mais polícias para irem para a rua e que temos ainda a GNR se for preciso. Estado tem meios para que a população esteja segura“, observou. Mas esta informação, com a pérola da referência à GNR, acabou por ser veiculada, ao que li, pela própria PSP.
Fico inquieto ao ver como os nossos especialistas em segurança encaram estas situações.
Pagamento de indemnizações
Em minha opinião seria justo – e decente – fazer a família de Odair Moniz beneficiar do pagamento de uma indemnização em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado, desligando-se esta questão da relativa à responsabilidade do jovem agente que desfechou os tiros.
Também convém recorrer à legislação já existente, julgo que desde os tempos das indemnizações às vítimas de terrorismo, para pagamento de uma indemnização ao motorista do autocarro da Carris Metropolitana que ficou com queimaduras no atentado em Santo António de Cavaleiros, e de indemnizações aos proprietários de viaturas particulares destruídas ou danificadas nos acontecimentos. Tal como a lei está configurada, estes pagamentos são tramitados como adiantamentos de indemnização, sem prejuízo da condenação dos responsáveis, e facilmente o Ministério Público e a Comissão de Vítimas de Crimes existente no Ministério da Justiça poderão desde já definir a lista dos pagamentos a efectuar.
As empresas de transportes ao serviço da Carris Metropolitana devem estar cobertas nestas eventualidades pelos contratos de prestação de serviços celebrados.
Os municípios a quem queimaram os caixotes do lixo e outros equipamentos podem pedir directamente indemnizações aos autores de distúrbios que forem identificados e condenados em tribunal, com trânsito em julgado.
Notas
(i) Este cabo-verdiano, nascido na Ilha de Santiago, era pois um africano, e não um “afro-descendente” e manteve a sua cidadania originária.
(ii) Pese embora o que se terá pretendido alcançar com a divulgação do cadastro do morto, não me parece ilógica a suposição que, encontrando-se este bem inserido na comunidade, procurasse evitar interacções com patrulhas da PSP.
(iii) Julgo no entanto que nessa mesma noite arderam viaturas em Santo António dos Cavaleiros.
(iv) Foi este último o cenário reportado na queima de um autocarro em Arrentela, no concelho do Seixal , em relação ao qual o Presidente da Câmara colocou em dúvida que os participantes fossem do concelho.