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Domingo, Novembro 3, 2024

Esquerda: Do Hara-kiri brasileiro à revelação americana

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A esquerda brasileira parece empenhada em dar razão a Bolsonaro que repetidamente vaticinou que a vitória de Haddad nas eleições se traduziria na transformação do Brasil numa Venezuela.

1. Do Hara-kiri Brasileiro

Diz a jornalista e escritora portuguesa com vasta obra sobre a realidade brasileira, Inês Pedrosa, que ‘A reacção da esquerda brasileira à situação na Venezuela ajuda a perceber como é que o Brasil chegou a Bolsonaro’.

E com efeito, a esquerda brasileira parece empenhada em dar razão a Bolsonaro que repetidamente vaticinou que a vitória de Haddad nas eleições se traduziria na transformação do Brasil numa Venezuela.

Lula da Silva divagou sobre os méritos do número limite dos mandatos presidenciais, mas não alterou esse limite, presidiu a uma lamentável montagem político-financeira, mas não se transformou num barão do narcotráfico e da lavagem de dinheiro; acima de tudo não criou esquadrões da morte ou instrumentalizou os militares; não semeou a fome nem espalhou a doença; na verdade o seu programa de ‘Fome Zero’ de que o mais conhecido é o ‘Bolsa Família’ foi de tal forma bem-sucedido que Bolsonaro já prometeu que em vez de acabar com ele vai fazer o ‘Super Bolsa Família’.

Mas a esquerda brasileira (e não só) já fez o favor a Bolsonaro de esquecer tudo isso e substituiu a sua imagem de marca de luta contra a pobreza pela imagem de Maduro pregado a um altar pelo seu antiamericanismo, ou seja, pelo marialvismo nacionalista versão ibero-americana.

O que mais me impressiona é ver como existe tanta gente disponível para acreditar nas mais mirabolantes teorias da conspiração, mas que se recusa a ver a bem documentada marcha triunfal conjunta dos exércitos vermelho e nazi a celebrar a primeira vitória na segunda guerra mundial a 22 de Setembro de 1939 em Brest-Litovsk.

A ‘esquerda do socialismo real’ acertou em várias circunstâncias, ou errou menos que outros, por exemplo, quando acabou por se opor ao nazismo, mesmo se apenas depois de Hitler desencadear a operação Barbarossa, ou quando ajudou à sobrevivência de Israel em 1948, ou ainda quando produziu sistemas de educação e saúde que se apresentam com algumas vantagens em relação aos oferecidos pelas democracias, mas em regra, o seu historial é negro, e esse facto não deveria precisar de ocupar muito do nosso tempo para ser adquirido.

O ‘socialismo real’ projectado no terceiro mundo vai desde a revolução cultural chinesa, copiada pelos Khmers vermelhos no Camboja, ao peronismo passando pelo castrismo, pelo baathismo e pelo nasserismo, que na melhor das hipóteses se comparam aos regimes fascistas e que no caso maoista ultrapassam em horror tudo, ou quase tudo, o que se tinha antes visto.

2. Passando pela alternativa aparente

A imprensa e as redes sociais exultaram com a ‘nova esquerda’ apresentada por mulheres islamistas surgida das eleições parciais americanas de 2018. Quando constatei no local, que a Marcha das Mulheres de Washington DC de Janeiro de 2017 que juntou milhões de mulheres (esmagadoramente da classe média, branca e progressista) tinha na sua direcção um quadro da ‘Irmandade Muçulmana’ dei-me conta que isso iria inevitavelmente acontecer.

O islamismo da ‘Irmandade Muçulmana’ só se consegue distinguir da velha doutrina salazarenta da fada do lar pelo seu radicalismo, violência e hipocrisia. A questão é que quando a velha doutrina reaparece na nossa comunicação social (aconteceu recentemente no ‘Observador’) levanta um coro inflamado de protestos, mas quando ela aparece convenientemente disfarçada na versão islamita recolhe aplausos e simpatia.

Alexandria Ocasio-Cortez

As razões para este estado de coisas prendem-se com a ignorância, a massiva campanha de desinformação mantida pelo jihadismo na imprensa ocidental e uma larga dose de condescendência (para não dizer racismo) perante o outro, neste caso a mulher muçulmana, que é supostamente menos interessada na liberdade do que a sua congénere ocidental, por obscuras razões que ninguém ousa discutir.

O novo membro do Congresso que se autodefine como socialista – Alexandria Ocasio-Cortez – tem, tal como Bernie Sanders, o decoro de esclarecer que o seu socialismo é o da Suécia e não o da Venezuela, não cometendo o mesmo erro que os seus congéneres brasileiros, mas não deixa por isso de levantar inúmeras questões quanto à coerência e solidez do que diz.

Parafraseando o Francisco Louçã nos seus comentários a propósito dos vinte anos do Bloco de Esquerda, não creio que haja entre o que escrevem e dizem as novas congressistas americanas algo que seja mais interessante ou esclarecedor do que aquilo que podemos ler ou escutar diariamente entre nós por parte de Catarina Martins.

3. Os trabalhadores que regressam ao léxico

Richard Ojeda foi mantido na obscuridade pela nossa comunicação social, e aparentemente com boas razões, porque acabou por anunciar a desistência da corrida presidencial, depois de ter perdido a corrida para o Congresso no coração da velha indústria mineira da Virgínia Ocidental que a elite democrática tinha há muito abandonado e entregue aos cuidados dos Republicanos.

Richard Ojeda apenas foi visto com algum interesse por ter ousado desafiar o núcleo duro laboral apoiante de Trump. Registou uma grande subida de votação para os democratas, subida que não chegou no entanto para vencer. Resolveu então demitir-se do Congresso estadual para se lançar nas presidenciais, mas foi uma aposta de curta duração porque cedo percebeu que não iria lá chegar.

Aparentemente, mais um perdedor, como diria Trump, e há sem dúvida muito em Ojeda de integridade moral que raia o quixotismo no cenário político calculista a que estamos habituados, mas creio que com ele ou com qualquer outra personagem se abriram as portas a uma esquerda que ousa falar em trabalhadores, em greves e sindicalismo, rompendo com a corrupção moral e financeira da elite convencionalmente liberal, abrindo cautelosamente para os temas do ambiente, da despenalização das drogas e sendo clara nos domínios da solidariedade social.

Depois de 24 anos como paraquedista – começou como soldado e reformou-se como major – Richard Ojeda, descendente, entre outros, de imigrantes ilegais mexicanos para a duríssima actividade da mineração do carvão em galeria, aterrou na sua terra adoptiva onde foi eleito Senador em 2016.

Apoiante da campanha de Bernie Sanders e depois de Donald Trump, como grande parte dos democratas da Virgínia Ocidental, foi o protagonista de uma intensa batalha política nas eleições de 2018 em que o presidente americano se empenhou pessoalmente contra ele.

Fez questão de recusar contribuições políticas que não fossem de sindicatos ou pessoais e abertas e utilizou uma linguagem terra a terra que lhe granjeou o epíteto de ‘populista de esquerda’ por parte da imprensa institucional americana.

Richard Ojeda demonstrou que uma esquerda que não foi seduzida pelas virtudes do Gulag nem hipnotizada pelo dinheiro, que mantém intactas as ligações populares ao seu eleitorado, nomeadamente aos trabalhadores, que entende a importância da defesa nacional e que toma para si os temas do ambiente, da despenalização controlada do consumo de drogas, dos direitos das mulheres mantendo o discurso e a atitude popular, tem um futuro em frente de si.


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