Suposto abandono das bases pelas lideranças de esquerda esconde a dura realidade das contradições que assolaram o país nos últimos sete anos, desde as “marchas de junho de 2013”.
Tenho visto uma porção de gente tentando explicar as derrotas sucessivas das forças progressistas, em âmbito nacional e regional/municipal, com uma formulação que considero simplista, limitada e limitante para o entendimento da quadra histórica que vivemos. Essas derrotas aconteceram, segundo os arautos dessa tese, pelo abandono que as forças progressistas – ou “de esquerda” – das “bases”. Por “bases”, compreende-se o povo das periferias, a massa empobrecida da população.
Temos assim, portanto, uma fórmula mágica e infalível para explicar os motivos do “campo progressista” formado por partidos de esquerda e movimentos sociais, terem sido derrotados desde 2016, tendo como ponto de partida o impeachment – ou golpe – sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, passando pelos processos eleitorais de 2016, 2018 (que conduziu Bolsonaro à Presidência da República) e a recém-terminada eleição municipal de 2020.
Nessa interpretação sobre como o mundo e a luta política funcionam, bastava ter vontade de permanecer “nas bases” e nada disso teria acontecido. Portanto, as forças que assim agiram cavaram sua própria sepultura ao abandonarem o povo para cuidar de gabinetes bem refrigerados e confortáveis no gerenciamento de mandatos parlamentares e da máquina pública. Essa visão idealista (no sentido filosófico do termo, não no senso comum do “ter boas ideias”) comporta uma comparação com o crescimento das “igrejas evangélicas” – estas, sim, dotadas de uma enorme capacidade e vontade de fazer “trabalho nas bases”.
Ainda segundo alguns que ostentam essa visão, caberia aos partidos e movimentos fazerem um grande processo de educação popular junto às bases. Como não o fizeram, como não educaram o povo – a redentora educação que livraria as almas de todo o mal capitalista –, lá se foram as bases alegremente para as igrejas e para os braços da direita. Só que a vida é mais complexa, revestida de uma materialidade profunda, que, se não é enxergada, turva a visão de quem busca compreender a realidade das coisas. Daí para simplificações teóricas, é um passo!
Uma primeira questão a ser levantada, de modo muito concreto, é que a comparação entre o trabalho das forças progressistas junto ao povo é completamente diferente do que fazem e pregam as religiões, especialmente as igrejas voltadas para a Teologia da Prosperidade. Reparem: religiões trabalham com uma intensa subjetividade, cristã em especial, de que a adesão a elas resultará, em última instância, numa vida eterna no paraíso ao lado de Deus e do senhor Jesus. São mais de 2 mil anos de pregação sobre esse verdadeiro “nirvana” hebraico-cristão, profundamente entranhado na cultura, no imaginário popular do mundo Ocidental do qual somos parte.
Nas últimas décadas, com a crescente decomposição do capitalismo, que se tornou ainda mais excludente do que já foi, legiões de pessoas do povo são empurradas objetivamente para o desemprego, o subemprego, o desalento e buscam conforto espiritual nas suas crenças, sejam elas quais forem. No caso específico da chamada “teologia da prosperidade”, as igrejas neopentecostais organizaram verdadeiras redes imediatas de alguma proteção social, estimulando a geração de pequenos negócios ou encaminhando fiéis para o emprego em empresas de outros fiéis.
Isso cria, no cotidiano imediato das pessoas, algum alívio financeiro, alimentando ao mesmo tempo as profundas ilusões com o capitalismo como sistema, por meio da ideia de que a liberdade econômica – abrir empresa para evoluir na vida –, é o caminho certo a trilhar. E funciona, é claro! Ao menos por um tempo.
Voltando ao centro da questão: o suposto abandono das bases pelas lideranças de esquerda esconde a dura realidade das contradições que assolaram o país nos últimos sete anos, desde as “marchas de junho de 2013”. Entre 2013 e 2016 (quando da deposição de Dilma), o Brasil foi afetado de modo muito intenso pela continuidade da crise capitalista deflagrada em 2008, após o esgotamento das “medidas anticíclicas adotadas durante o governo Lula, de 2008 a 2010. O prolongamento da crise afetou fortemente a economia brasileira e diminuiu a margem de manobra do governo Dilma para o enfrentamento dos seus efeitos que passaram a ser fortemente sentidos pelo conjunto da sociedade.
Apenas a título de exemplificação, entre 2012 e 2016, a exportação brasileira despencou de US$ 242 bilhões para US$ 185 bi e as importações foram ainda mais afetadas, caindo de US$ 223 bi para US$ 137 bi, quebrando o ritmo do crescimento da economia que vinha se ampliando desde 2003. A queda do ciclo econômico reverberou nas ruas, alimentou a crise política, vitaminou o denuncismo hipócrita sobre “corrupção” e gerou, entre outras coisas, a Operação Lava Jato, sempre com as digitais dos serviços de inteligência do imperialismo.
Naqueles anos, o governo Dilma, portanto, perdeu capacidade de gerenciar a crise econômica. No campo da política, o resultado foi desastroso, num processo de formação da “tempestade perfeita” – crises econômica e política se retroalimentando –, caminhando para o golpe de 2016 e até a fatídica eleição de 2018 que levou a extrema direita ao Palácio do Planalto, com Bolsonaro e todo o movimento de enorme retrocesso que vivenciamos desde então.
Então, ora, companheiros e companheiras, adeptas da tese do “abandono das bases”, em qual país do mundo forças políticas que detinham forte apoio popular – sejam de esquerda ou de direita – resistiram ao vendaval da crise econômica capitalista (desde 2008!) sem perder largamente apoio das “bases” nos seus respectivos países? A crise varreu governos na Europa, nos EUA (primeiro os republicanos, com as duas eleições de Obama e na sequência os democratas, com a eleição Trump), na América Latina. E derrubou o governo Dilma e as forças e partidos de esquerda que dele faziam parte (a parte de “centro” do governo a traiu vergonhosamente, mas desse setor nunca se espera grande coisa, a não ser o fisiologismo de sempre).
Além do denuncismo anticorrupção, a esquerda brasileira – especialmente o Partido dos Trabalhadores – foi desmoralizada perante os olhos de boa parte do povo, que passou a ter uma percepção de que a “esquerda afundou o Brasil”.
Ficam então algumas perguntas: como manter forte apoio nas “bases” com tamanho grau de desacúmulo de forças? Outra pergunta: o povo mais simples, que sobrevive às duras penas no capitalismo e que tinha conseguido alguns avanços importantes na “Era Lula”, ao ver-se diante de rápido retrocesso econômico afetando diretamente suas vidas, teria condições de seguir mantendo o apoio anterior a forças progressistas, ainda por cima vendo seu principal líder político há décadas sendo encarcerado, acusado de corrupção?
Não adianta alegar que tudo foi armação. É preciso olhar de frente sobre como foi a percepção popular diante processo político e da ação avassaladora, como um exército bem disciplinado, da grande mídia para essa desconstrução, amplificando em muitas vezes a percepção negativa de boa parte do povo sobre a realidade do país. Se constituiu um verdadeiro caldo de cultura de ódio, negação dos valores defendidos pelo campo progressista, apoio ao retrocesso, ao conservadorismo hipócrita e ao neofascismo pregado por Bolsonaro.
Sem observar a dura materialidade da vida e como ela se reflete na consciência das pessoas, a tendência é acreditar que apenas a boa vontade basta. Não basta! A esquerda foi colocada sob cerco com objetivo de aniquilação. Não aniquilaram, mas enfraqueceram intensamente e esse enfraquecimento continuou tendo desdobramentos, cujos resultados ainda são muito sentidos em 2020, no processo eleitoral recém terminado.
É claro que o fenômeno não é igual em todas as partes e existem especificidades locais, especialmente em alguns municípios nos quais essas forças progressistas mantiveram, sim, parte do seu capital político-eleitoral, a duras penas, é verdade. Nenhum fenômeno social é absoluto, para o bem ou para o mal, assim como a própria direita também não havia sido aniquilada em suas relações com parcelas do povo durante a “Era Lula”. Vejam o caso do PSDB, que mesmo naquele período se manteve como força política hegemônica no principal estado da federação, São Paulo, e aglutinando em torno da legenda boa parte das prefeituras, inclusive a capital, na maior parte daquele período.
Resta ainda, nessa tese de “abandono das bases”, uma visão que considero tão distorcida quanto, que diz respeito à ineficiência na “educação do povo”, na “politização do povo”. Educação do povo se dá de várias maneiras, claro, mas levem em consideração que o principal elemento de educação das massas é o próprio movimento político. Afinal, as bases supostamente abandonadas pela esquerda deram a ela quatro vitórias presidenciais consecutivas antes da crise, além de inúmeras vitórias em estados e municípios importantes – e deixaram de apoiá-la na medida em que o ciclo regressivo foi se estabelecendo na economia e na política.
O outro lado da “educação do povo” tem relação com o ensino formal, escolar. Num país como o Brasil, federalista, com redes autônomas que se entrecruzam (estaduais, municipais e privadas), estabelecer um novo patamar educacional progressista, avançado, requer imensa força política e reformas estruturais tão profundas que chegariam a ser revolucionárias, o que, claramente não era possível de se fazer no Brasil dadas as correlações de força interna e externa.
Como costuma dizer um querido amigo, problemas complexos têm soluções simples. Costumeiramente erradas!
por Altair Freitas, Historiador | Texto em português do Brasil
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