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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Estado, política e religião

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.
  1. O fim do estado de graça do senhor Presidente

A opinião pública reagiu com indignação às declarações feitas pelo senhor Presidente da República tentando transformar em bons resultados estatísticos nacionais aquilo que é um drama de enormes proporções: constatar que uma instituição que deveria ser um símbolo da moral pública é com efeito responsável pela contemporização com abusos sistemáticos cometidos pelos seus membros contra menores.

Pela minha parte, acho notável que o nosso Presidente tenha conseguido passar todos estes anos a falar sobre tudo e a aparecer em todo o lado sem ter sido censurado pela opinião pública como o está a ser agora. Em parte, isso deveu-se ao facto de ele contar com uma enorme boa vontade da comunicação social e da opinião pública que deixou passar em branco sucessivos deslizes ou mesmo disparates, mas noutra parte isso é mérito seu, ao conseguir dizer inúmeras superficialidades sobre o futebol, sobre as previsões meteorológicas ou económicas ou sobre tudo o resto que acontece no nosso planeta sem ofender a maioria dos que o escutam e, pelo contrário, a julgar pelas sondagens, mesmo com a sua aprovação.

Pelo meu lado, acho que ele tinha mais razões para estar calado neste caso particular do que nos restantes, por que as suas palavras e acções constituem uma interferência do poder político na Igreja e o assunto deveria ser tratado antes pelas instâncias judiciais, pela comunidade católica e claro pela comunicação social, sem que o poder político nele interferisse.

A separação entre a Igreja e o Estado é um princípio moderno, que não é aplicado ainda plenamente, existindo, por exemplo, isenções fiscais que lhe são dadas – como de resto a partidos políticos – que me parecem de todo em todo injustificadas, mas isso não obsta a que seja um princípio essencial a ser observado pelo principal magistrado da nação.

  1. Religião e jacobinismo

Posto isto, devo dizer que nos meus sessenta e cinco anos de vida e por razões diversas evoluí consideravelmente na forma como olho para a Igreja Católica, que avalio hoje positivamente, e como uma instituição em que me sinto integrado. Em parte, isso resulta na minha percepção de que a humanidade precisa de transcendente, e em alternativa à Igreja Católica tende a abraçar crenças normalmente menos iluminadas e mais fanáticas do que as desta (e as mais perigosas são as crenças que querem impor a superstição em nome da ciência), e em parte pela noção de comunidade que ela transporta e pelo que também de positivo a Igreja Católica nos legou.

Acho que a Igreja Católica erra ao não aceitar reformas que foram já postas em prática por outras confissões cristãs, reformas que, creio, ultrapassariam a dimensão do drama acima referido, mas, como alguém periférico à comunidade católica, abstenho-me normalmente de exprimir este ponto de vista, por que é a comunidade que compete ser o motor de qualquer decisão nessa matéria.

Mas quer isto também dizer que não me revejo hoje no jacobinismo anticlerical que informou o pensamento revolucionário da minha juventude. Nomeadamente, acho sem sentido a lógica da proibição da ostentação de símbolos religiosos, na medida em que estes não ponham em causa princípios gerais do Estado de direito.

A título de exemplo, são conhecidas em Portugal as medidas restritivas de uso de trajos que tornam difícil a identificação das pessoas por razões de segurança tomadas ao longo dos séculos. Agora se alguém de sua livre vontade resolver cobrir a cabeça, usar uma corrente com uma cruz ou um crescente ou usar um lenço de cor na lapela, desde que essa decisão não interfira com normas de sanidade pública, ou outras, não vejo razões para o proibir de o fazer, sendo que grande parte da legislação e jurisprudência europeias nesta matéria me parecem absurdas, propiciando a sua manipulação pelo fanatismo islâmico.

É verdade que existem normas que resultam de um ‘consenso social’ e que não têm base objetiva. Mesmo após o 25 de Abril, testemunhei Cabos de Mar em uniforme a interpelar e multar nas praias senhoras por não ter os seios cobertos. É algo que creio ser impensável no Portugal dos nossos dias.

Grande parte dos trajos que usamos são adoptados pela pressão social, mesmo sem multas por qualquer polícia moral. Na minha geração estava na moda o uso de calças de ganga extremamente usadas, rotas, manchadas e sujas. Era uma forma de exprimir um protesto contra a sociedade de consumo, que a sociedade de consumo conseguiu recuperar inteiramente, instituindo processos fabris que por meios químicos e mecânicos fazem buracos e manchas em roupas novas que são usadas massivamente pela juventude, e que as pagam a preços mais elevados que as calças novas.

Proibir o uso de véu parece-me ser uma tontice, e mais tontice ainda se a proibição for acompanhada implicitamente de uma decisão religiosa segundo a qual esse véu é islâmico, numa matéria sobre a qual a justiça não tem qualquer competência e numa decisão sem sentido.

Há naturalmente uma questão social em todos estes hábitos que não deve ser escamoteada, mas que, exactamente por que é social, se deve tratar socialmente sem recorrer ao poder coercivo do Estado, a menos que se constate que se trata de hábitos impostos coercivamente por outrem.

  1. A natureza reacionária do jihadismo moderno

O Jihadismo moderno tem numerosas dimensões, nomeadamente a dimensão geopolítica imperial, tendo sido expressa de várias formas e por vários países, nenhuma mais ostensiva, no entanto, que a assumida pela República Islâmica do Irão. O jihadismo não inventou, no entanto, uma dimensão política para a religião.

A política sempre existiu na religião. A democracia cristã é como sabemos uma criação moderna (o texto mais antigo que conheço sobre ela em Portugal é da autoria do então jovem seminarista António de Oliveira Salazar). Separar o Estado da Igreja parece-me essencial, mas não creio que o mesmo seja exigível à política. A política é cada vez mais submetida a tudo o que acontece na sociedade, sendo disso exemplo o político actor de cinema (Reagan ou Zelensky) ou o político-comentador a propósito do qual começámos esta crónica.

Mas o jihadismo tem também uma dimensão social, e essa dimensão social resulta em primeiro lugar da reacção às vigorosas transformações sociais que se afirmaram ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, nomeadamente as relativas à emancipação da mulher, e nada é mais característico do jihadismo que a sua profunda misoginia como reacção a esse movimento de emancipação.

Como todos os movimentos reaccionários, o jihadismo vive da mitificação do passado exagerando-o ou emprestando-lhe mesmo características que ele não tem, e encontra-se neste caso a cobertura total ou parcial da cabeça das mulheres.

Não há nenhuma leitura equilibrada da literatura ou da prática religiosa do passado que legitime essa conclusão de que o Islão obriga as mulheres a cobrir a cabeça mais que outras religiões, em especial o cristianismo. A burca ou o véu islâmicos são assim embustes criados pelos ideólogos islamistas – embustes em que a nossa sociedade enfiou a cabeça – que visam legitimar o aparelho islamista de repressão das mulheres.

A imposição legal do véu ou da burca é a parte mais simbólica da política retrógrada do jihadismo de submissão das mulheres e é por isso que a sua contestação está no centro da revolução democrática das mulheres maioritariamente muçulmanas do Irão.

É isso que os ideólogos islamistas no Ocidente pretenderam esconder durante todo este tempo, por trás de falsificações históricas com que pretendem inverter a realidade, e que as mulheres iranianas, a custo das suas vidas, estão a desmascarar como falsidade.

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