Admitamos – mas não é verdade – que não há perigos nas medicinas alternativas e que se está numa situação de “mal não faz e o doente tem o direito de gastar como quer o seu dinheiro”. Mesmo assim, há razões para o Estado, pelo menos, não sancionar ou proteger tais pseudomedicinas.Em primeiro lugar, põe-se uma questão geral do papel do Estado no progresso cultural do povo. Está consagrada a liberdade de opinião e expressão. No entanto, isso não implica que um professor ou um programa escolar tenham o direito de elogiar o fascismo ou o colonialismo, negar o holocausto ou substituir o evolucionismo pelo criacionismo.
Ora é exactamente o que se passa com as medicinas alternativas. Insisto em que não só elas são pseudociência fantasiosa e irracional, e que não demonstram a sua utilidade, como essa utilidade é mesmo negada cientificamente sem margem para dúvida.
Em segundo lugar, há o uso com abuso de dinheiro público, quando unidades do SNS praticam medicina alternativa. É má prática médica e é delapidação de recursos públicos, num sector tão carenciado.
Também há custos indirectos, individuais e colectivos. O comportamento “à Steve Jobs” não leva só à ineficácia terapêutica. É que, optando pela medicina alternativa, o doente não se trata como deve ser e agrava o seu estado de saúde, com riscos porventura fatais e que até podem ter reflexos sociais e económicos públicos.
Politicamente, entre nós, tem sido o Bloco de Esquerda o principal paladino das “terapias não convencionais” (TNC), designação que vamos adoptar adiante, por ser a que consta das variadas leis. Geralmente, tem sido acompanhado pelo CDS, com a abstenção ou, menos frementemente, a oposição do PS e do PCP (no entanto, foi o PCP que propôs a aceitação das TNC na Madeira).
Esta aliança BE-CDS é curiosa, suscitando alguma consideração sobre a correlação social com a atitude neorromântica, niilista e irracionalista em crescimento. Também pode ser muito relevante que seja membro do BE e seu antigo dirigente o “dr” Pedro Choy, o mandarim das TNC em Portugal, com dezenas de estabelecimentos de actividade de TNC.
O argumento principal para a consagração legal das TNC é a necessidade da sua regulamentação. Como elas em todo o caso existem, mais vale, dizem, estabelecer regras e, como uma vez disse João Semedo, o dirigente do BE, “é uma área completamente desregulada, onde tudo é possível, as boas e as más práticas”. Eu gostaria de saber é quais são as boas práticas de TNC…
O Estado deveria assim regular também outras profissões, como vidente, cartomante ou astrólogo, que até têm lugar marcado em programas da televisão pública.
De facto, isto esconde muito mais. Primeiro, assenta numa atitude muito favorável às TNC, não apenas “um mal inevitável” a controlar pela lei. Leia-se o deputado do BE e principal interventor nesta matéria, Moisés Ferreira: “técnicas e terapêuticas com impacto positivo na saúde”; “esses profissionais estão a ter a integração no mercado do trabalho que merecem”; “embora partam de bases filosóficas diferentes da chamada (sic) ‘medicina convencional’, (…) podem representa uma melhoria do bem-estar e da saúde”.
Essa das bases filosóficas é gato escondido com o rabo de fora. Fica claro que as TNC têm uma base filosófica. Agora de certeza o que não tem qualquer base filosófica é a medicina. A sua base é de evidência empírica e, cada vez mais, científica.
Também dificilmente se pode considerar simples intenção regulatória e de defesa dos doentes a isenção de IVA, como no caso dos médicos ou dentistas, aprovada com base em projectos de lei do CDS e do BE e PAN e votada com a abstenção do PS e do PCP. Porquê abstenção? Em consideração pela “geringonça”? E o pior foi a isenção ter efeitos retroactivos, o que valeu só ao tal Pedro Choy uma boa maquia.
A primeira lei sobre as TNC data de 2003 mas só foi regulamentada em 2013. No essencial, identificam-se as TNC a serem reconhecidas, exige-se licenciatura específica e célula profissional para os seus praticantes e abre-se um período de excepção do requisito de licenciatura para os que à data da lei já eram profissionais de TNC.
Isto não satisfez as escolas actuais e os seus alunos, que reivindicam licenciaturas de secretaria para os cerca de 20000 profissionais que as frequentaram, bem como um regime de excepção às leis do ensino superior que as transforme em escolas politécnicas com capacidade de conferir o grau de licenciado. Estas propostas já estiveram em discussão parlamentar, novamente por iniciativa do BE, mas foram reprovadas.
Em 2014 foram publicadas várias portarias que fixam a caracterização e o conteúdo funcional das profissões de TNC. São um mimo de delírio anticientífico, legalmente consagrado. Deixo só alguns exemplos.
A medicina tradicional chinesa é (…) uma terapêutica (…) com uma concepção holística, energética e dialética do ser humano; (…) que investiga, desenvolve e implementa planos de tratamento utilizando a acupunctura, a fitoterapia, a massagem tuiná, a dietética da medicina tradicional chinesa, os exercícios de chi kung e tai chi terapêuticos e outros para melhorar e regular a função e tratar as «desarmonias energéticas» tais como são entendidas pela medicina tradicional chinesa.”
A homeopatia trata as doenças com medicamentos que, numa pessoa saudável, produziriam sintomas semelhantes aos da doença.”
Os medicamentos homeopáticos baseiam-se no princípio de que diluições de moléculas potencialmente activas retêm a «memória» da substância original.”
E o ensino das TNC?
A “lei dos graus” exige para a criação de uma licenciatura que a escola “disponha de um corpo docente próprio, qualificado na área em causa e adequado em número, cuja maioria seja constituída por titulares do grau de doutor ou especialistas de reconhecida experiência e competência profissional”.
Ora não há doutores nessas áreas “científicas”, nem mesmo no mercado internacional. Então o Bloco de Esquerda – sempre ele – apresentou um projeto de lei para a criação da figura de especialistas em TNC, para efeito de preenchimento do requisito da lei dos graus, claro que a atribuir a praticantes das TNC e sabe-se lá com que critérios de avaliação “pelo órgão científico ou técnico-científico do estabelecimento de ensino superior”.
Não passou mas deu-se a volta incluindo nos planos de estudos muitas disciplinas convencionais – que ironia – regidas por doutores.
E ainda como se tudo isto não bastasse, a agência de acreditação de cursos, A3ES, por exemplo tão exigente na avaliação de novos cursos de medicina, todos chumbados, aprova esses cursos de TNC.
Incrível! Mas já estou preparado para licenciaturas, talvez doutoramentos, em ciências divinatórias, em espiritismo ou em tarotologia.
Parte I