O filme que tem de ganhar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro
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Há um pouco mais do que um forte prognóstico na nossa arrojada afirmação. É que não nos lembramos de sentir uma sensação tão forte ao ver O Filho de Saul, e aqui suprimimos claramente uma ordem de lógica temporal, visto que a experiência é tão arrasadora que bloqueia um lado mais racional.
Seja como for, assim nos sentimos na estreia mundial do filme do húngaro Lázsló Nemes, quando foi exibido na secção competitiva do festival de Cannes em Maio passado.
Sem sabermos ao que íamos, eis-nos enclausurados no frenesim dos afazeres da Solução Final, em que aos Sonderkommando, os judeus mais robustos a quem era dada a possibilidade de adiar o seu destino, ao trabalharem como funcionários da máquina de extermínio e alimentar com a maior diligência os crematórios de Auschwitz. Vão entrar mais dois mil que terão de ser ‘despachados’ até madrugada, cito de cor, já depois de ter revisto o filme em San Sebastian, onde finalmente falámos com o realizador do filme que mais nos arrebatou o ano que passou.
O Filho de Saul não ganharia a Palma de Ouro, como desejávamos (pois foi o melhor da competição), mas o Prémio do Júri, uma espécie de segundo classificado, digamos assim.
E até ao final do ano se manteve como o melhor filme que vimos. É difícil de esquecer o permanente incómodo de sentir uma tal proximidade com o horror.
Não que Nemes opte por mostrar, não. Nem precisamos, porque sabemos. Ou julgamos saber.
Nemes mostra e deixa entrever, mas submete-nos a proximidade (demasiado próximos) com Saul, o tal Sonderkommando numa permanente agitação a receber os comboios repletos de famílias judias, ajudá-los a despir, a separarem-se das malas, a encaminhá-los para “o banho”.
Tudo isto numa mescla febril de sons, gritos e um linguajar em várias línguas, que se apagará depois de se abrirem as portas das câmaras de gás para logo ser substituído pelo rugir das chamas nos fornos crematórios.
É claro que tudo isto já foi abordado em inúmeros filmes, documentários, em particular as descritivas dez horas de Shoah, de Lanzmann, se bem que Nemes defenda na nossa entrevista que procurou ir para além da realidade que conhecemos dos campos de concentração e extermínio.
A melhor forma de o fazer foi colocar-nos na cabeça do homem que vagueia nos túneis desta unidade fabril, cumprindo tarefas de forma maquinal. Frequentemente, Nemes coloca a câmara por detrás de Saul, como na posição de terceira pessoa, como sucede normalmente nos videojogos, enfatizando assim essa ligação do público àquela personagem.
Por isso vemos o que ele vê. Mas não vemos o ecrã todo porque o seu corpo ocupa parte do ecrã. Ou talvez os seus próprios olhos se recusassem a aceitar, a ver.
A certa altura diz-se, mas nós já estamos mortos, como se essa proximidade tão grande com a morte lhes desse esse estatuto de zombies – os tais seres com um X marcado nas costas, como se vivessem um inferno na Terra.
A centelha de vida irá encontrar Saul ao descobrir o corpo de uma criança retirado ainda com vida do interior da câmara de gás, embora diligentemente finalizado pelo médico local rodeado por oficiais nazis.
Para a história assume-se que a criança era seu filho, e que Saul iria definir a sua vida de modo a poder enterra-lo de acordo com rituais judaicos. E também a assumir uma revolta.
Embora, a nosso ver pouco importa se seria na verdade o seu filho, já que poderia simbolizar todos os filhos, num derradeiro acto de redenção.
O Filho de Saul é, antes de mais, um filme que ultrapassa a sua condição e se assume como uma experiência de transe em que todos os sentidos estão em alerta máximo embora com uma enxaqueca permanente.
Só mesmo o cheiro nos falta para viver a agonia. Um efeito muito eficaz que Names consegue com o seu director de fotografia Matyas Erdely, numa recuperação do esplendor do formato de 35mm.
Apesar da extrema dificuldade em Nemes arranjar financiamento para o filme e mesmo depois de ter sido recusado no festival de Berlim do ano passado, O Filho de Saul acabou por vingar na grande montra de Cannes.
De imediato um candidato incontornável aos Óscares de Melhor Filme estrangeiro, que deverá ganhar. Arriscamo-nos a acrescentar, que terá de ganhar. Mas, sobretudo, que tem de ser visto.
Nota: A nossa opinião de * a *****
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